O arco cronológico da produção de Deolindo Tavares é pequeno: de 1935, tomando por base o seu primeiro poema, “Na rua que eu moro vê-se coisas”, escrito quando tinha 17 anos, até 1942, quando da sua morte. No entanto, isso não o impediu de se aventurar, com ousadia, nas mais diversas temáticas e formas, nos legando um conjunto de composições poéticas que impressiona pela quantidade e qualidade produzida em tão curto espaço de tempo.
Se for levada em consideração a classificação que impera em manuais, o nosso escritor estaria inserido na Segunda Geração dos Modernistas (1930-1945), mas, dada a multiplicidade de linhas temáticas em que atuou, empreendeu um diálogo que se estende do Romantismo e Simbolismo às Vanguardas Europeias, entre as quais, especificamente, tece uma profunda relação com o Surrealismo. Também é interessante apontar que o poeta, sem ser regionalista, incorporou em algumas de suas produções componentes folclóricos de sua terra natal, em um nítido aceno ao programa do Modernismo; e enquadrá-lo em determinado estilo ou escola literária é incorrer em redução de sua temática, dado que uma categorização redundaria arbitrária.
Sensível ao seu tempo, Deolindo Tavares criou uma expressão temático-existencial particular diante de um mundo em profundas mudanças nos valores éticos e estéticos, afetando o seu estilo compósito que carrega a força de uma linguagem marcada por acontecimentos como a filosofia pessimista de Arthur Schopenhauer; a teoria da evolução biológica das espécies proposta por Charles Darwin; o pensamento contestador de Friedrich Nietzsche; o método de investigação e do funcionamento do psiquismo humano propostos por Sigmund Freud; a Teoria da Relatividade de Albert Einstein, a alterar as concepções de espaço e de tempo; sem deixar de lado a grande novidade no campo do entretenimento, com o surgimento do cinema falado nos anos de 1920.
Todo um conjunto de descobertas que provocaram o derretimento das certezas propostas pela metafísica tradicional, que se refletiu da economia à política, da filosofia às ciências, delineando a história da segunda metade do século XIX e início do XX, que se enriqueceu desse húmus, originando os movimentos artístico-culturais europeus, que se espalharam pelo mundo. O nosso continente não ficou fora dessas vanguardas, nossos artistas e escritores foram sensíveis aos novos paradigmas. Deolindo Tavares, em seus poemas, faz reverberar nas formas livres e nas temáticas que não se intimidou, e revela um mundo poético em que tudo se integra e se relaciona: a terra, a água, o ar, a pedra, o raio, as estrelas, a lua, o céu, o mar, o rio, os lagos, os icebergs, as montanhas, os vales, as flores, os pássaros, os peixes, os seres marinhos, que remetem a um diálogo com Charles Baudelaire, em sua “correspondência”; o que se pode conferir ao longo dos 14 poemas em prosa cujo centro é o personagem Willy Mompou, mas não só.
José Alcides Pinto em Letras e Artes, 5 de outubro de 1952, escreve que Deolindo criou uma poética contagiante que, em sua maior parte, vem “dosada de melancolia e de um realismo que o torna por vezes trágico e cômico”, sem, no entanto, chegar a ser depressivo. Em certos momentos é o abatimento que seus poemas provocam, mas é o “das coisas marcadas pela fatalidade de que não há mesmo remédio”, como ocorrem em: “Os canteiros de violetas...”, “O Palhaço”, “Quero morrer do outro lado do mar”, “Não me revoltarei...”, “Via-láctea”, “Agora e sempre”, “Este silêncio se abate sobre mim...”, “Carnaval”, “Este mundo...”. Em outros, apresenta um cantarolar despreocupado, em meio aos entraves como em “Tra-la-li Tra-la-la” e o bem-humorado “Poema de um dia de fome”.
Na perspectiva de Otávio de Freitas Junior em Ensaios de crítica de poesia (1941), Deolindo Tavares foge ao comum de uma poética subjetivista, e se pode acrescentar que há um caráter romântico atestado por “Eu te amo”, “Inquietação”, “Ciúme”, “Libertação”. Outra característica é que Deolindo escreve como se estivesse pintando uma tela, de modo que o poeta “vê a poesia, e escrevendo não faz mais que gravar, como um pintor, imagens justapostas, fundidas na unidade do poema”.
Além do pictórico descritivo, ele recorre ao movimento, como acontece em uma película cinematográfica, é o que se observa em “Canção de uma menina, de um rio e de um cão”, que se inicia com uma cena estática e aos poucos há a quebra de expectativa, por um lento movimento da personagem, como se quadros de um filme, antes congelados, ganhassem velocidade da máquina projetiva. Em “O trio do Diabo”, as imagens se movem, o efeito em linguagem verbal sugere o desenrolar de um desenho animado. Já em “Ofélia”, a visualidade acontece por meio do tom dramático das exclamações interrogativas, como se atores em um palco estivessem diante de espectadores.
Deolindo Tavares introduz imagens, movimentos, vozes, sons com efeitos que vão da religiosidade das práticas judaico-cristã, com menções a Jeová, David, Golias, Cristo, Maomé, Salomão, Job, às de matrizes africanas com os seus orixás: Ogum, Odê, Iemanjá, os santos Cosme e Damião. Dos mestres clássicos da música aparecem Debussy, Mozart, Strauss. Faz referências a escritores e artistas como Picasso, Chirico, Nijinski, Mary Duncan, Lawrence, Shakespeare, Rimbaud, Verlaine, Murilo Mendes, Patrice de La Tour du Pin. Da mitologia incorpora Vulcano, Vênus, Saturno. Dos nomes emblemáticos da literatura surgem Madalena e Esmeralda; Caliban e Ariel. Dos lugares que guardavam uma aura mítica estão: Alexandria e o Oriente, Índia, Sudão, Etiópia, Madagascar, Ilha Formosa, Mosela, Sena, Loire, Paris. Dos personagens da História estão Ana Bolena e Zumbi. Cada uma dessas menções, muitas vezes de passagem, mas acaba por se transformar em focos que amplificam a temática, gerando uma iluminação que aprofunda as questões referidas.
Um dos diálogos que se destaca é com O retrato de Dorian Gray (1891), romance do escritor e dramaturgo Oscar Wilde que, em linguagem faustiana, relata a história do personagem que perde a própria alma em troca da juventude. Deolindo se reporta a esse clássico da literatura em várias oportunidades, em algumas o faz de forma explicita, em outras sutilmente: “Evasão”, “Poema à dama de negro do retrato da sala de visitas”, “As paredes estão sem retratos...”, “Retrato de Willy Mompou”.
Incorpora em sua poética temas prosaicos como os jogos de tabuleiro e roleta, como em “O jogo”, e em outros poemas, de teor metalinguístico, a partir do título, faz referência à máquina de escrever e à caneta tinteiro. Valoriza a prece, como se dá em “A noite é um asilo”, “Se tens necessidade...”, “Há homens que vem...”, “Prière”, “O encontro”, “Oração”. Além de fazer poemas como quem conta uma fábula, como se dá em: “História dos sete sábios de Kalagrtianhrla”, “Cantiga da princesa tentada”, “As duas bailarinas de máscaras”, “O capitão...”.
Nascido ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Deolindo Tavares veio a morrer em meio à Segunda Guerra (1939-1945) e, pelo fato de suas experiências terem sido atravessadas pelas notícias de um mundo em crise, a problemática internacional marcou definitivamente a sua expressão poética. Em muitos momentos, o jovem poeta recifense externa o seu desencantamento com o mundo, o que não é de se estranhar, uma vez que o tema dos conflitos sempre esteve presente, embora os combates não acontecessem diretamente em nosso território.
As duas guerras mundiais foram devastadoras, tanto em termos de destruição material quanto das ideologias vigentes, acionando o toque de despertar do sono dogmático, que embalava a humanidade, de que progredia em ritmo cada vez mais crescente em direção ao progresso. Frente às barbáries praticadas, essa crença se desmoronou. Esses choques atingiram a todos indistintamente, e não é de se estranhar que o tema da morte, do sono e do sonho estejam tão presente nos poemas de Deolindo Tavares, e tratados de forma singular, sem o pessimismo peculiar que tange a questão.
Esses reflexos ressoam em “Poema dos corações mortos”, nos seus personagens François e Hans. Observa-se a intenção de Deolindo em homenagear os soldados colocados como inimigos em lados opostos das trincheiras, de um lado a França e do outro a Alemanha. Nesse contexto, o poeta mostra o quanto era atento e integrado à turbulência do mundo e faz referência ao poeta Patrice de La Tour du Pin, que esteve preso durante alguns anos, em decorrência de um dos combates que transcorriam na Europa. A ele, Deolindo dedicou: “Mensagem para Patrice de La Tour du Pin”, “Balada a Patrice de La Tour du Pin”, “Poème pour Patrice de La Tour du Pin”.
O que se destaca é que Deolindo tratou do tema da morte sob várias óticas. Nesse sentido, se em alguns momentos esteve presente o desencanto, em outros, transformou-o em ponto de inflexão de passagem, de renascimento, como ocorre em “Uma estrela sobre cinco continentes”.
Na contrapartida, fluem em seus versos não apenas os assombros decorrentes dos conflitos bélicos europeus, mas está presente uma herança cultural luminosa, que foi a da Belle Époque Recifense, cujas raízes francesas eram cultuadas e incentivadas pela sociedade brasileira de um modo geral. Havia um verdadeiro culto ao modo de vida parisiense, é o que se observa em “As florestas dos Boulevards...”, aportando detalhes sem sequer ter lá estado, tal a ideia que se projetava, nos meios em que o jovem transitava, dos modus operandi e vivendi da cidade luz. Deolindo irradiou vivamente essa francesa realidade, e não é de se espantar que recorresse a títulos de poemas como “Prière”, Poème pour Patrice de La Tour du Pin”.
Diálogos com Rimbaud
Um dos pontos altos da poética de Deolindo Tavares está centrado em diálogo com a de Arthur Rimbaud, um claro exemplo acontece com o poema “Ophélie”, do poeta francês, ao qual se junta “Ofélia” do pernambucano, em que ambos fazem referência ao “Hamlet”, de Shakespeare. O interesse de Deolindo sobre o autor de Uma estadia no inferno (Une saison en enfer), se deu de forma ampla, não ficou circunscrito à poética, mas ampliado às questões biográficas, colocando em destaque a relação conflituosa entre Rimbaud e Verlaine, temática dominante, como acontece em “Poema ao irmão adormecido”.
Já em “Poema Biográfico de Rimbaud”, Deolindo o designa le voyou Rimbaud, pelas experiências do poeta francês. Não só isso, imprime intensa musicalidade, buscando modular o ritmo dos passos fou, loucos, de Rimbaud em suas aventuras/desventuras pelo continente africano:
Éter, Ester Etiópia, “le voyou Rimbaud”,
corpo arroxeado,
face estranha, azulada,
um mundo de pirilampos
boiando no lago escuro dos teus olhos;
outro homem vindo não sabes donde,
em ti, importuno, como um delicioso perfume,
dormindo impassível em teu espírito.
Éter, Ester, Etiópia, le beau Rimbaud,-
viste os mapas desenhados
na palma de tuas mãos
com rios de absinto,
com ilhas de sexos
com mares de lágrimas,
com perspectivas loucas de viagens
em terras de ouro, de sal, de cinzas,
sobre montes de seios, de ventres suaves?
Éter, Ester, Etiópia, Rimbaud,- la jambé coupée –
éter é o único que leva a todas as rotas,
navio sem velas, sem cor, sem forma e sem calmaria,
singrando o hemisfério luminoso de tua cabeça.
Ester é o vulcão que sentirás em teu corpo
expelindo mel e flores numa erupção constante,
é a mão de Golias te estrangulando,
suave como um sonho de David.
Éter,
Ester,
Etiópia,
la solitude, l´angoisse, mon Dieu,
cette immense angoisse...
Em “O corpo arroxeado”, cujo título já sugere a morte e os excessos pelos quais o jovem poeta francês passou, bem como também seu estilo de vida errante, sua volta a Paris e o enfrentamento das dificuldades para se tratar, indo de um lugar a outro na tentativa de minimizar seus problemas de saúde, que acabaram por consumir a sua breve existência aventureira. Uma variante de “Poema biográfico de Rimbaud”, dado que em “O Corpo arroxeado” o poeta se vale da mesma premissa do corpo arroxeado, da face azulada.
Raízes nordestinas
Em seu ofício poético, o jovem poeta pernambucano refletia o seu vasto leque de interesses, entre os quais se situam as figuras do cotidiano de sua terra natal. Deolindo Tavares é um nordestino e, como tal, essa identidade transparece nos poemas folclóricos: “A negra da tapioca”, “A negra do manguzá”, “O vassoureiro”, “O vendedor de pitomba”, “Rolete de cana caiana”, que mostram sensibilidade à vida comum da sua Recife, tão plena do ritmo das vozes dos vendedores de rua, que geravam ladainhas na divulgação de seus produtos.
Desde a libertação da escravatura, essa foi uma forma de sobrevivência da antiga população escravizada e de seus descendentes: eles vendiam os mais variados artefatos, frutas e verduras, sem contar os alimentos preparados pelas cozinheiras negras. Nessa linha, avultam esses temas em “A negra do manguzá” e “A negra da tapioca” – ambos remetem à culinária, uma função das escravas. Essas negras mulheres se tornaram exímias cozinheiras, por combinarem o conhecimento ancestral dos temperos às novidades alimentares das terras brasileiras, cujos resultados foram mesas diversificadas em nutrientes e fartas em cores, sabores e cheiros irresistíveis.
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Venda avulsa na Livraria da Cepe