Do incômodo e da provocação

Álvaro Filho constrói um narrador de dicção lusitana sem recorrer à paródia ou à sátira. Seu policial sempre tem um pé nas questões contemporâneas

A condição do imigrante é incômoda. Mesmo os mais adaptáveis enfrentam dificuldades em encaixar-se, poucos se firmam em seu ofício de origem. Se é ofício de linguagem, o número é reduzido; se pretende dedicar-se à literatura, a adaptação total é quase impossível. Por isso, um escritor brasileiro que abre caminho em Portugal, como Álvaro Filho, é algo notável.

Recifense e jornalista, graduou-se pela Universidade Federal de Pernambuco e é mestre na mesma área pela University of Westminster de Londres. Atuou como repórter, editor e cronista em diversos jornais e revistas, além de ter sido comentarista de rádio e TV. Com esse currículo, conseguiu espaço na hostil Lisboa: colaborou com o Diário de Notícias e atualmente é repórter e cronista do jornal A Mensagem de Lisboa, além de ser correspondente para as revistas Pernambuco e Continente.

Mas Álvaro sempre se interessou pela literatura. Acompanho seu trabalho desde Curso de escrita de romance, nível 2 (Cepe Editora, 2017), romance vencedor do Prêmio Pernambuco de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos. Ali, já os traços de sua escrita: um humor ácido e o tratamento mordaz de questões éticas e políticas.

Os prêmios seguiram: seu mais autoficcional, político e igualmente inventivo O meu velho guerrilheiro (Jaguatirica, 2016) recebeu prêmio de Melhor Ficção da Academia Pernambucana de Letras; em Portugal, Álvaro venceu o Prêmio Talento FNAC de Literatura 2018 com o conto “Otelo” e o Prêmio Rogério Rodrigues de Crônica em 2023. Mas no policial, ele se sente mais confortável. Não é à toa que sua carreira acadêmica seguiu para este lado: atualmente cursa o doutorado em Literatura e Cultura no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa, com tese sobre o romance policial em estados que viveram autocracias.

O policial de Álvaro Filho sempre tem um pé nas questões contemporâneas.  Em Alojamento letal (Planeta, 2019), seu livro de estreia em Portugal, coloca o dedo na ferida na gentrificação lisboeta promovida pelo modelo de ocupação urbana via AirBnb — chamados alojamentos locais por lá. Nuno Cobra investiga uma série de assassinatos contra proprietários que se recusaram a vender seus imóveis para esse tipo de ocupação no Bairro de Alfama, um dos mais afetados pelo turismo predatório.

Álvaro constrói um narrador de dicção lusitana sem recorrer à paródia ou à sátira, numa estratégia que chamo de imigrant masking. Com isso, debate um tema que, tratado por um estrangeiro, seria ainda mais incômodo ao leitor português. Mas se a adaptação linguística no jornalismo escrito talvez seja uma questão de sobrevivência nas redações lusitanas, na literatura quase inexiste entre os escritores brasileiros que publicam em Portugal. Se isso não demonstra o grau de ousadia desse autor imigrante, não sei o que demonstraria.

Por isso, não me surpreendeu que Álvaro seguisse incomodando portugueses com seu novo romance, O mau selvagem (Urutau, 2024). Na trama, o alter ego de Álvaro, um brasileiro aspirante a escritor que trabalha numa livraria passa a procurar um antigo funcionário, famoso por sua insubmissão e que desapareceu sem dar vestígios. Ao contrário do imigrante que aceita os maus tratos calado, esse misterioso personagem se rebela. É o terror para Rousseau e para os portugueses que acham que os brasileiros têm que dar graças pelo “privilégio” de viver na terrinha.

Álvaro venceu o Prêmio Literário Armando Baptista-Bastos 2023 com Disfarça, que lá vem Sartre (inédito), policial que ficcionaliza a famosa vinda do francês ao Recife em 1960 e o envolve numa trama de roubo de uma relíquia holandesa. O título vem de uma lenda: contam as más-línguas recifenses que a frase era dita por intelectuais da cidade sempre que o chato Sartre se aproximava da conversa. Pura provocação. Será lançado no Brasil este ano. Promete.