Em um mundo distópico, onde androides eliminaram por completo homens e mulheres, o escritor norte-americano TJ Klune criou o cenário para o seu novo livro A vida entre marionetes. A história seria mais uma entre dezenas que abordam o extermínio dos humanos por máquinas que eles próprios inventaram, não fosse uma particularidade: é inspirada na marionete criada no século XIX pelo italiano Carlo Collodi, o boneco de madeira que ganha vida pelas mãos do mestre Geppetto. Nesse livro específico aparece como um “Pinóquio” queer.
A história, portanto, vai além da ficção científica: nessa fábula moderna, encontramos um “Pinóquio” rodeado por fantasia e afeto queer, termo guarda-chuva que pode se referir a qualquer pessoa cuja identidade, gênero ou orientação sexual fuja das normas cis-heterossexuais. Uma narrativa, portanto, que sai do usual por abordar elementos LGBTQIAPN+. Marca registrada dos livros de TJ Klune e, certamente, um dos motivos da sua boa aceitação no mercado de fantasia e ficção.
A vida entre marionetes, na verdade, não apenas inova na abordagem amorosa, mas inverte a ordem da história clássica de Carlo Collodi. O “Pinóquio” em questão é Victor Lawson, único humano da narrativa. Com uma particularidade: assim como Pinóquio foi criado por um homem, Victor foi criado por seu pai, o androide Giovanni, e é o único ser humano existente na sociedade comandada por máquinas inteligentes.
A história começa mostrando Victor vivendo com três androides excêntricos, numa floresta isolada. Giovanni Lawson, seu pai, um robô humanoide que se destaca pela capacidade de criação e invenções; Ratched, uma enfermeira sarcástica com tendências homicidas, e Rambo, um aspirador de pó ansioso e ingênuo. A rotina do grupo é abalada quando Victor encontra um androide desativado, Rap, e decide consertá-lo. Isso colocará em risco tudo que ama e revelará verdades sobre seu passado e o mundo ao seu redor.
A partir da reativação de Rap, o garoto Victor, que viveu isolado durante toda a vida nessa floresta, descobre que o mundo que o cerca lhe é totalmente hostil, inclusive, que o próprio pai havia sido um exterminador de humanos no passado e que o robô que reativou tinha sido uma criação de Giovanni, para matar homens e mulheres.
As revelações caem como um raio em cima do garoto, que, não bastasse ter contato com tantos segredos escondidos debaixo do tapete, acabou sendo detectado como humano pelas autoridades robóticas. O episódio aconteceu no momento em que, ao resgatar Rap num lixo de robôs descartados, cortou o dedo, deixando uma gota de sangue cair no chão. Pista que imediatamente foi detectada pelas máquinas que vigiavam cada centímetro do Planeta Terra à caça de vestígios humanos.
A consequência disso foi uma invasão quase instantânea na afastada casa na floresta, o sequestro do pai e a aniquilação do local. Por sorte, Giovanni, que sabia do perigo que todos corriam, pois havia desertado do governo das máquinas, havia construído um bunker, onde Victor e seus amigos metálicos puderam se abrigar. Lá, através de um vídeo, conta ao filho tudo que não lhe explicara nas décadas passadas juntos: que ele havia sido o criador do próprio Victor – algo que só será esclarecido capítulos adiante – e que fora um dos principais responsáveis pela extinção da humanidade.
A fuga para a floresta e a posterior criação do menino – de uma espécie que ele tanto odiava – era atribuída a uma falha nos seus comandos, que, de repente, se rebelara contra as ações das máquinas. Ao descobri-lo na floresta, os autômatos levam Giovanni de volta à Cidade dos Sonhos Elétricos, onde será restaurado e voltará a caçar humanos.
O restante da história segue a trilha óbvia dos mocinhos das obras de aventura: Victor e os três robôs saem em busca da Cidade dos Sonhos e correm perigos para resgatar o pai da garra dos “bandidos”. Nesse percurso, a convivência entre ele e Rap alcança proporções nunca sentidas por ambos: há um envolvimento amoroso e afeto, apesar da relação não envolver ato sexual. Mas ela é forte o suficiente para mudar a visão da vida e revelar o que é o amor para os dois.
Apesar de ter uma proposta interessante, o livro podia, facilmente, ser mais enxuto, conciso. Nas 478 páginas de texto sobram lugares-comuns, frases melosas, ideias batidas e soluções ingênuas para explicar como dois robôs assassinos, Giovanni e Rap, foram gradualmente humanizando-se.
No caso de Giovanni parece ter sido um processo lento, mas que se acelerou quando ele construiu uma bateria em formato de coração, e um pingo do sangue proveniente do filho molhou suas articulações. A partir daí, Victor – que também se tornaria inventor como o pai - reformaria todas suas outras engenhocas - a enfermeira Vic, o aspirador Rambo e o andróide Rap - usando o mesmo método: um coração em forma de bateria, banhado por sangue. Ou seja, batizado com o DNA humano, capaz de inspirar bondade e emoções, tese defendida pelo autor, que muitos (atentos ao estado de tensão e guerra em que vivem as nações na atualidade) questionariam a veracidade.
No meio da história, que, na maior parte do tempo, pouco nos remete às aventuras do endiabrado Pinóquio de Carlo Collodi, outra passagem nos traz de volta ao conto de fadas italiano. Para encontrar o pai na Cidade dos Sonhos Elétricos, Victor recorre a uma entidade conhecida como Fada Azul, não por acaso, o mesmo nome dado à fada que transformou a marionete Pinóquio - no conto original - em uma criança. Fada Azul não só o ajuda, como revela que o embrião humano com o qual Giovanni conseguiu conceber Victor, lhe havia sido presenteado por ela. Uma forma engenhosa de explicar como um robô criou um humano do nada.
O livro certamente agradará aos menos exigentes dos fãs de ficção científica e fantasia, que não vão se incomodar com as menções ingênuas à solidariedade, à amizade e ao amor. “O que nos torna humanos não é o corpo, mas a capacidade de amar e escolher o bem.” é uma frase que explicita bem a qualidade literária do livro. É compreensível. Os livros do autor têm como alvo um público jovem adulto, aficionado por sci-fi e romances de fantasia e aventura. Muita ação e pouca preocupação com escrita literária.
No que diz respeito às escolhas do Pinóquio queer, elas são tratadas pontualmente no início do livro, quando o garoto ainda se considerava assexuado. “Foi somente quando a Enfermeira Ratched disse que a sexualidade fazia parte de um espectro que as coisas começaram a fazer mais sentido. Ela explicará que não era inédito pessoas se identificarem como assexuais, o que significa que ‘aces’ não experimentam atração da mesma maneira que os outros”, explica o autor, antes de Victor conhecer o androide Rap.
Depois, várias cenas ternas transcorrem entre os dois. “Quero lhe mostrar tantas coisas. As árvores no verão. O formato da lua cheia. Todas as constelações. Talvez possamos partir em busca do oceano”, diz Victor para seu amado, quando já existem evidências suficientes mostrando que a relação possui um caráter romântico.
Com frases óbvias ou não, A vida entre marionetes, de TJ Klune, já recebeu vários prêmios, incluindo o de Melhor Ficção Científica no Goodreads Choice Awards de 2023, além do Lambda. O livro também foi premiado com o Alex Award e o Mythopoeic Fantasy.
TJ Klune é autor best-seller do New York Times e do USA Today. Ele assina vários outros livros, entre eles, A casa do Mar Cerúleo, Sob a porta sussurrante, Wolfsong: o chamado e Ravensong: os laços. Também é autor das séries Green Creek, para adultos, e Extraordinaries, para adolescentes.
Klune escreve desde os oito anos de idade, e acredita na importância de representar, “agora mais do que nunca”, personagens queer de maneira positiva, uma vez que faz parte da comunidade LGBTQIAPN+.
Vários Pinóquios
O Pinóquio utilizado por TJ Klune tem mais semelhanças com as adaptações do conto feitas pela Disney, e principalmente, com um filme produzido em 2003, do que com a versão original criada pelo fiorentino Carlo Collodi (pseudônimo de Carlos Lorenzini), publicada, inicialmente, em 1881, no Giornale per i bambini, com o título: A história de uma marionete, cuja marca registrada é o humor negro com moralismo.
O sucesso da publicação foi tano que, ao tentar encerrar a história no capítulo 15, Collodi foi obrigado a retomá-la, em 1882. O número de capítulos chegou a 36. A partir daí, pouco tempo depois, foi publicado o livro As aventuras de Pinóquio, compilando todos os fascículos que haviam saído no jornal.
As situações registradas no texto original, hoje disponível no Brasil no livro Pinóquio, publicado pela Darkside, não caberiam na adaptação de TJ Klune, nem nos livretos distribuídos às crianças atuais. Por vários motivos: a história do mestre Geppetto e sua criação, a marionete Pinóquio, que falava e cometia diabruras com seu pai e com quem estava no seu entorno, era de uma dureza e inadequação, que até mesmo, à época em que foi lançada, teve que fazer adaptações.
Inicialmente, Collodi pretendia encerrar a história enforcando Pinóquio, o que chegou a ser considerado de mau gosto. Ele, então, optou por enforcar e ressuscitar o boneco, com a interferência da “bondosa” Fada Azul, que o faz renascer e lhe dá nova chance de ser um bom menino. Mesmo assim, o capítulo 15, onde ele é colocado para morrer pendurado numa árvore, e os ladrões ficam esperando que dê seu último suspiro, é certamente uma leitura desagradável.
Uma conferida no texto mostra o quão sombria era a proposta. “Pouco a pouco os olhos embaçaram-se; e embora sentisse a morte se aproximar, ainda assim esperava que, de uma hora para outra, surgisse uma alma caridosa que o socorresse. Mas quando, depois de esperar e esperar... viu que não apareceu ninguém, ninguém mesmo, então lhe veio em mente seu pobre pai… e balbuciou quase moribundo. ‘Ó meu paizinho! Se você estivesse aqui!...’ E não teve hálito para dizer mais nada. Fechou os olhos, abriu a boca, esticou as pernas e, após um estrebucho violento, ficou ali como que retesado.”
Graças à interferência do público da época, esse final não foi aceito. É quando a Fada Azul interfere, resgatando-o e recolhendo para curá-lo. Obviamente, somente muitos capítulos à frente, depois de enfrentar o tubarão branco, prisões e agruras de toda a sorte, Pinóquio aprenderia a lição e seria elevado ao status de humano, novamente com a ajuda da fada. Com sua ascensão moral, o pai Geppetto também conseguiu prosperidade material. Não por acaso, a história termina com o velho explicando a ele que “quando os filhos maus, tornam-se bons, têm a virtude de conferir uma feição nova e sorridente também a todo o seio de sua família.”
As características do Pinóquio atual - principalmente o crescimento do nariz, quando diz uma mentira - e a companhia do grilo falante que lhe aconselha em todas as ocasiões, são abordadas no livro, mas sem a importância que têm na atualidade. No original, o grilo foi morto esmagado por Pinóquio no primeiro capítulo (voltando depois como fantasma) e o nariz crescia, mas sem o foco dado pelas narrativas de hoje, quando seu nome virou sinônimo de mentiroso.
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