O fabuloso Mauricio de Sousa

Ao completar 90 anos de idade, o criador da "Turma da Mônica" continua a multiplicar personagens e produtos e não pensa em aposentadoria

Os personagens de Mauricio de Sousa saem dos quadrinhos e se multiplicam em programas de televisão, filmes, produtos licenciados e parque temático
Os personagens de Mauricio de Sousa saem dos quadrinhos e se multiplicam em programas de televisão, filmes, produtos licenciados e parque temático

O mundo das HQs está em festa. Neste mês de outubro, Mauricio de Sousa completa 90 anos. Para comemorar a data, a MSP Estúdios preparou uma celebração especial: no próximo dia 23, estreia Mauricio, o filme, que mostra momentos marcantes da vida do artista. Traz o jovem Diego Laumar – que o interpreta na infância – e Mauro Souza, seu filho, que o representa na idade adulta. Um legado que se destaca de qualquer outro trabalho na área de desenho já realizado no Brasil. 

O “império” de Mauricio de Souza começou a ser construído no final dos anos 1950, com o surgimento de Bidu e Franjinha, e alargou-se com criaturas inspiradas em familiares e amigos. 

Mais de 65 anos depois de ter publicado a primeira tirinha de Bidu, na Folha da Manhã, vieram dezenas de títulos, que vão do público infantil ao adulto. Com filmes, produtos licenciados de vários gêneros, além de games, vídeos para internet e montagens teatrais. Em números, a saga de Mauricio de Souza impressiona: nessas mais de seis décadas, teve cerca de 1 bilhão de revistas publicadas em 40 idiomas, por 60 países. Um empreendimento que agrega, atualmente, 180 colaboradores efetivos no MSP Estúdios.

Mauricio de Souza costuma ser comparado ao norte-americano Walt Disney, cujo “império” de patos, ratos, princesas e outros milhares de personagens, pode ser visto em todos os recantos do planeta. Considerando-se a magnitude do seu trabalho, o brasileiro, de fato, conseguiu a façanha de criar na América do Sul um formato de negócios que lembra o de Disney. Mas, no que diz respeito ao conteúdo das obras, à criatividade empregada nos roteiros das histórias e, principalmente, nos personagens, ele é, para os fãs, obviamente, melhor do que o estadunidense.

A sua personagem Mônica foi o primeiro modelo de empoderamento feminino para várias gerações de brasileiras. Quem leu suas aventuras cresceu com a certeza de que as meninas também podiam se dar bem. Contrariava toda a caretice das margaridas, minnies, luluzinhas e outras personagens que os demais gibis apresentavam.

Além disso, o feeling de Mauricio com o público infantil funciona em potência máxima. As histórias dele se pautam em algo muito simples, no conhecimento nato do que pequenos ou adultos idealizam para uma infância feliz: a liberdade de brincar nas ruas, livres, cercados de amigos, aventuras e travessuras. 

Outro ponto essencial nas suas histórias é a ausência de preconceitos de cor, de classes, de qualquer gênero. Numa época em que divórcio era tabu, apresentou Xaveco, cujos pais são separados. Jeremias, dos anos 1960, foi o primeiro garoto negro a protagonizar HQ de uma forma não pejorativa. 

Também foi nas histórias de Mauricio que Hiroshi, um nissei, brilhou nas páginas das HQs muito antes da chegada dos mangás ao Brasil. Na Turma da Mônica, circularam, ainda, garotas e garotos com estas características: André (autista), Sueli (surda), Luca (cadeirante), Edu (com distrofia muscular de Duchenne) e Tati (com síndrome de Down), entre outros. Ou seja: muito antes das cobranças do politicamente correto dos dias atuais, há décadas, os roteiros de Mauricio já apresentavam diversidade e um universo plural. 

Apesar disso, as críticas ainda chegam: o autor recebeu queixas de que suas histórias incentivam o bullying entre crianças e que Chico Bento era uma ironia aos caipiras. Reclamações que o incomodaram, mas que não o levaram a mudar a estrutura dos personagens. Ainda bem.

Em suas narrativas, Mauricio cria personagens que enfrentam situações de proibição e controle. E que se insurgem contra elas. Exemplo: em um planeta onde se cerceava a livre expressão do canto, um jovem desafiava essa proibição. Em outra, um rei leonino queria saber o que aconteceria no dia seguinte no jornal, o que pode ser visto como uma crítica à censura. 

Uma cartilha em parceria com o Ministério da Defesa, produzida durante o governo Michel Temer, em 2018, foi largamente criticada. Nela, o autor explica as diferenças entre as Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica – , mostra os personagens em meio a armas e veículos de transportes, como submarinos. Um projeto comercial, como outros produzidos pela MSP, que não foi bem-digerido. Mas que está longe de representar a defesa de ideias reacionárias, ou que demonstre um alinhamento do autor com o regime militar de décadas antes. 

Patrulhamentos à parte, Mauricio criou universos à disposição dos leitores que os fazem transitar entre mundos e realidades paralelas. Enquanto a turma da Mônica vive brincando nas ruas urbanas do bairro do Limoeiro, Tina e sua turma adolescente namora, ouve discos, reproduz comportamentos que refletem os novos modismos da sociedade. Chico Bento, por sua vez, resgata a calmaria e poesia do mundo rural; Horácio e Piteco enfrentam os desafios da Pré-História; Jotalhão e outros animais circulam no reino comandado pelo rei Leão; Penadinho e seus amigos protagonizam histórias no além-túmulo. O Astronauta viaja pelas galáxias, visitando planetas, salvando a humanidade e ajudando populações extraterrestres em perigo. Além de Papa-Capim e sua tribo, que resistem, numa aldeia distante. 

Não bastassem esses cenários, Mauricio criou o Anjinho, um ser celestial que transita entre os humanos; o Louco, que vira de cabeça para baixo os roteiros da turminha, e o Capitão Sujo, um anti-herói que dissemina a poluição por onde passa. 

Entre todos os seus personagens, um lhe é especialmente caro: o tiranossauro rex Horácio, que é vegetariano e extremamente sensível. Ele é conhecido por ser o alter-ego de Mauricio. Horácio estreou nas tiras de Piteco em 1963, e, depois, ganhou suas próprias histórias, com um tom mais reflexivo. Até há pouco tempo, o desenhista não permitia que ninguém trabalhasse com o personagem. Dificilmente aceitava que o roteirizassem. “O Horácio é meio filósofo, as historinhas dele são meio filosóficas.”, costumava justificar, para explicar a recusa dos roteiros que rejeitava. 

Biografia

Mauricio de Sousa nasceu em 27 de outubro de 1935, em Santa Isabel, no interior de São Paulo. Filho de um poeta e de uma pianista, que eram obrigados a exercer outras atividades para sobreviver. Logo cedo, mudou-se com a família para Mogi das Cruzes. O pai chegou a ser radialista e barbeiro. A família toda engajou-se nos seus programas radiofônicos. O próprio Mauricio fazia ponta nos programas de auditório. Mas sua praia era mesmo a arte. Foi com os gibis que aprendeu a ler e a desenhar. 

Aos 10 anos, possuía uma cultura de HQ ampla. “Adorava personagens que pareciam de carne e de osso, gente como a gente… De tudo o que li, da infância até hoje, ainda considero insuperável a qualidade do traço do Alex Raymond, o criador de Flash Gordon, e de Hal Foster, desenhista de O Príncipe Valente. Eles me mostraram que era possível fazer histórias memoráveis sem super-heróis indestrutíveis, lutas do bem e do mal ou lições de moral”, contou o autor, no livro Mauricio, a história que não está no gibi.

Mas sua paixão maior — que perdura até hoje, segundo contou, em entrevista exclusiva à revista Pernambuco — é The Spirit. Criado pelo norte-americano Will Eisner, o pai das modernas graphics novels, que influenciou muito a forma de Mauricio diagramar seus “retro” quadros. Sem se ater aos convencionais uso da página, os personagens extrapolam suas histórias.

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