Pelé, o negão planetário, o novo livro de Antonio Risério, antropólogo baiano, um estudioso que foge do lugar-comum, com obras provocativas e ponderações que vão contra a corrente, principalmente, as patrulhas identitárias da atualidade. Ele traça um perfil multifacetado do jogador de futebol Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, como fenômeno não apenas esportivo, mas cultural e social.
Na introdução, Risério avisa que a obra não é uma biografia, mas um estudo sociológico de Pelé e do futebol brasileiro. De fato, o livro é um dos trabalhos mais detalhados sobre o futebol brasileiro. Além de um manifesto sobre a grandeza do jogador, em contraste com os discursos identitários contemporâneos e com o apagamento do seu papel histórico por setores que Risério classifica como “esquerda woke”.
O trabalho esmiúça o perfil e a trajetória de Pelé, assim como toda historiografia do futebol nacional, trazendo um histórico do esporte desde sua primeira partida oficial - em 14 de abril de 1895, sob o comando de Charles Miller - quando apenas os da elite eram autorizados a frequentar as equipes, até os dias atuais. Fenômeno mudaria duas décadas depois de sua chegada ao Brasil, quando ficou constatado que os times mestiços eram bem melhores do que os dos grã-finos que se autodefiniram como brancos.
“O que houve de realmente relevante foi que logo teve início a apropriação cultural popular do futebol. Moleques e malandros começaram a bater bola ao ar livre, onde fosse possível. A simplicidade das regras (dezessete apenas) facilitava a popularização do novo esporte, e a bola podia ser feita de qualquer coisa… O que significa que não houve maior defasagem temporal entre a prática esportiva de elite e as jogadas da gente mestiça mais pobre ou da classe média”, escreve Risério.
O autor lembra que, no Rio de Janeiro, clubes como Fluminense, Botafogo e Flamengo não admitiam que negros vestissem sua camisa. Em São Paulo, o Palmeiras resistia. O Paulistano, clube do Jardim Paulista, preferiu fechar sua seção de futebol a ter de aceitar pretos em seu time. No Rio Grande do Sul, o Grêmio Porto-Alegrense também era intransigente; em Pernambuco, o Naútico”.
Para piorar, em 1921, Epitácio Pessoa, então presidente da República, proibiu a convocação de negros para a seleção nacional. Não queria que o Brasil passasse para o mundo a imagem de um país de pretos. A grande virada veio em 1923, com o Vasco da Gama. “Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com time de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos (como as nossas futuras seleções de futebol) era o campeão da cidade.”
“Desaparecia a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, o analfabeto, o mulato, o preto. Era uma revolução que se operava no futebol brasileiro.”, escreveu, à época, o jornalista Mário Filho (irmão de Nelson Rodrigues), que acabou dando nome ao estádio do Maracanã.
Essa adaptação de mestiços e negros ao esporte é explicada por Risério, com base em diversos autores, como uma substituição da bola pela capoeira, que havia sido proibida em 1910. A ginga de corpo e os movimentos elásticos dos capoeiristas, permitiram que negros e mestiços criassem um estilo de futebol totalmente diferente do inglês.
“Uma das características mais fortes do povo brasileiro é a capacidade que ele tem de transformar tudo em música e ritmo, o que faz pelos espetáculos populares, pelo canto, pela dança - pela festa, enfim. É dentro do mesmo espírito que o futebol foi adaptado aqui, de modo absolutamente nosso, peculiar, singular, um modo que corresponde às estruturas físicas e psicológicas do nosso povo”, explicou Ariano Suassuna, em depoimento resgatado pelo autor de Pelé, o negão planetário.
Risério também ressalta a importância que o futebol teve para a inserção do negro e do mestiço na sociedade no Brasil.
Pelé
No livro, Antonio Risério parte do corpo de Pelé – negro, atlético, saudável e belo – para discutir o impacto civilizatório de sua presença no cenário mundial. O “negão planetário” é descrito como um corpo que dançou e brilhou em todos os campos, desafiando estigmas raciais, coloniais e estéticos.
Para justificar o nome dado ao livro, Risério ressalta que o fenômeno Pelé foi algo nunca antes visto. Dá exemplos da sua popularidade no cenário mundial. A revista Times o listou como um dos heróis e ícones do século XX, ao lado de Marilyn Monroe, Madre Teresa de Calcutá, Anne Frank e Che Guevara. Andy Warhol pintou um retrato seu. Frank Sinatra, Mick Jagger, Rod Stewart, Wood Allen e Michael Jackson eram seus fãs. Steven Spielberg chegou a lhe propor fazer um filme. De fato, como diria o autor, das selvas africanas às cidades mais cosmopolitas, todo mundo sabia quem era Pelé.
Antonio Risério também explica os motivos de Pelé não ter se engajado em lutas raciais, apesar das cobranças de que se comportasse como o lutador de boxe Cassius Clay, que hostilizava abertamente os brancos americanos. Várias vezes Pelé explicou que sua realidade era diversa. Tinha sido criado num ambiente misto, com japoneses, negros, brancos, mestiços, todos amigos; portanto, não tinha vivido na pele as dificuldades que o americano passara. O que jamais foi perdoado pelo movimento negro, que o considerava um “vendido”.
Nesse sentido, outra crítica pesada que se fazia a Pelé era sobre seu casamento com mulheres brancas. Muitos o acusavam de nunca ter se interessado por uma negra. O que o jogador justificava: jamais se casaria com uma mulher pela sua pele, mas por amá-la.
Sua primeira esposa foi Rosemeri, com quem casou e agiu, conforme observa o antropólogo Risério, como um autêntico homem da sua época. “Se as putas eram as quase sempre adoráveis vagabundas, as esposas pertenciam a outra categoria. Eram mulheres de respeito, destinadas ao reino do lar…E não fechemos os olhos para o fato de que a nossa personagem central, quando se casou, era a própria encarnação do tradicionalismo, reduzindo sua mulher-esposa à esfera doméstica do trabalho e ao lazer familiar: um jovem ainda interiorano, com uma formação católica igualmente paroquial.”
As traições a Rosemeri foram constantes. O próprio Pelé admitiu que um dos relacionamentos mais escandalosos que teve, após o casamento, foi com Xuxa Meneghel, modelo que se tornaria estrela de televisão. Mas, segundo Pelé contou, não quis ter um caso com a gaúcha, porque ela era virgem. O que ela resolveu rapidamente, perdendo a virgindade com um namorado. No entanto, ele sempre relutou em ter uma história mais séria com ela, descrevendo o relacionamento como “aberto”.
Pelé também era homofóbico, como a maioria dos jogadores da sua época. “Homem, homem mesmo, manteria distância de veados. Garrincha e Pelé, evidentemente, não fugiam à regra… Mas Pelé não passou imune a isso: chegou a penetrar num homem e a gozar dentro dele. E foi seu jogo de estreia.” Nem precisou que ninguém revelasse a história. O próprio Pelé contou, na primeira entrevista que deu à revista Playboy, em princípios da década de 1980. “Minha primeira experiência sexual foi com uma bicha que nosso time inteiro comeu lá em Bauru, mas, depois, não tive mais esse tipo de transa”. A repercussão foi enorme e ele tentou voltar atrás. Mas não adiantou.
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