Retratos do artista quando jovem
Em Curitiba, quem segue caminho a Cruz do Pilarzinho – bairro onde morou, mais de uma vez, Paulo Leminski –, passa, antes, por Santa Felicidade. Aí vive um dos seus amigos mais próximos, o fotógrafo Dico Kremer, que produziu alguns dos seus retratos e flagrantes emblemáticos. Foi também graças a ele que veio à luz, em 1980, Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase... Cópias de diversos poemas desse e de outros livros recebeu-os de presente do autor. Guarda-os como um tesouro. Joias tão preciosas quanto a memória que desfia, conta a conta:
- A primeira vez que eu vi e ouvi o Paulo foi na Avenida Marechal Deodoro, quase na Marechal Floriano. Uma palestra dele sobre a poesia concreta. Mas nos aproximamos mesmo, quando prestava serviço às agências de publicidade. Sempre fui fotógrafo de publicidade, nunca fiz reportagem. Eu comecei minha carreira atendendo a P.A.Z., uma agência onde ele trabalhou. Ficava na Rua Mateus Leme. Não foi ali que Leminski começou na publicidade, e sim na Lema, situada na Praça Osório. O dono da agência era um carioca chamado Carlos Augusto Machado Sampaio.
Também frequentávamos o mesmo cineclube, que havia no Colégio Marista Santa Maria, onde estudei. Localizava-se ao lado do Guaíra e tomava a quadra inteira.
Lembro-me de quando ele foi professor do Curso Abreu. O objetivo era preparar os alunos para passar no vestibular. Por isso costumo dizer, brincando, que ele conduzia os alunos à universidade, como Moisés guiando o povo escolhido à terra prometida.
Naturalmente, o gosto pela leitura fortaleceu nossa amizade ainda mais. Paulo era um poeta, não apenas nos escritos, na forma de viver. Tinha, junto com o bom humor, um conhecimento fabuloso das coisas, dominava diversos idiomas.
A nossa amizade foi muito intensa. Houve um tempo em que todos os domingos eu ia à casa dele, depois do almoço. Conversávamos sobre literatura, cinema e política.
O Paraná não o reconheceu de imediato como o autor genial que ele é. Havia uma turma, mais antenada, que gostava dessas coisas de vanguarda que sempre o reconheceu. Mas o reconhecimento mesmo veio depois que ele faleceu.
Eu tenho um monte de poemas dele, cópias, de quando ele trabalhava na P.A.Z. A agência ficava perto de onde hoje está o Shopping Mueller. Na época o meu estúdio era na Alameda Augusto Stellfeld. Leminski ia constantemente lá. Simplesmente para conversarmos. A literatura era o tema dominante. Foi com ele que aprendi a gostar de James Joyce, embora eu continue a considerar Finnegans Wake ilegível.
Ele foi um pouco Joyce no Catatau, que tenho comigo, com uma dedicatória dupla. Dele e de Alice. O lançamento do livro aconteceu na Livraria Ghignone, às 19h do dia 19 de dezembro de 1975. A Ghignone foi a primeira grande livraria de Curitiba. Ficava na XV de Novembro, 423.
Se eu fosse definir Leminski num verbete de dicionário, poderia escrever simplesmente: Gênio, complexo. Ele tinha uma sensibilidade, uma rapidez de raciocínio muito grande. Uma cultura imensa. Uma memória... parecia não se esquecer de nada. Ele me guiou em muita coisa na literatura.
Era, fundamentalmente, poeta, mas escrevia prosa muito bem. Quando ele me apresentava um texto e me agradava, eu não poupava adjetivos, advérbios etc. Quando não gostava, eu ficava em silêncio, e ele percebia.
Em nome do pai
Depois de Kremer, em Santa Felicidade, a próxima conversa acontece no Pilarzinho. Com as filhas de Paulo Leminski. Áurea comanda a gestão de seu legado, juntamente com a irmã, Estrela, e a mãe, Alice.
Estrela não apenas vibra com o trabalho intelectual e artístico do pai, segue os seus passos, pois é escritora, poeta e compositora. Ela acaba de enveredar pela prosa de ficção. Seu primeiro romance – Quando a inocência morreu – está sendo lançado pela Editora Iluminuras.
Um trabalho verdadeiramente antológico foi o CD duplo que ela editou com as músicas do pai: Leminskanções. Que também pode ser visto e ouvido no YouTube:
Com as filhas a conversa em flashes vai compondo um retrato mais íntimo do poeta. Ambas com nomes que evocam luzes e brilhos. A diferença de idade – 10 anos – entre elas, e o momento vivido então pelo pai, definiram dois estilos diferentes de criação. Áurea se lembra bem disso:
- Quando eu era criança e adolescente, ele estava escrevendo, compondo muito, numa efervescência enorme. Era o tempo quase todo voltado para a criação e a struggle for life. Quando Estrela nasceu, essas tensões já não existiam tanto, ele já havia realizado uma porção de coisas, e a ansiedade havia diminuído. Podemos dizer que ele já atravessara as divisas dos estados, tinha um reconhecimento nacional, e, assim, podia viver um momento mais contemplativo, e a plenitude de ser pai. Comigo, infelizmente, pelas circunstâncias, ele não pode dedicar tanta atenção. Estrela foi um grande presente.
Convivemos na casa do Pilarzinho até os meus 16 anos. Era uma casa bem de polaco, de madeira, e até meio oriental. Ele viveu no Pilarzinho em duas casas de estilos diferentes. Na segunda foi onde mais recebeu as pessoas de fora. O escritório ficava no meio da sala. Ele não se isolava para produzir. Era tudo meio que ao mesmo tempo: a rotina da casa e a produção artística. Por essas e outras demos a uma sala da exposição Múltiplo Leminski o nome de Usina Leminski. Aquilo não era um escritório, era uma usina.
Ao mencionar a palavra usina, Áurea, sem querer, evoca um dos poetas favoritos de Leminski, que foi por ele traduzido. Vladimir Maiakovski definiu-se como uma usina/fábrica/indústria: “eu mesmo me sinto como uma fábrica soviética de manufaturar felicidade”.
Numa coisa, porém, as duas filhas, tiveram uma experiência idêntica: a casa dos pais estava toda semeada de livros, “livros à mancheia”. Recorda-se Áurea:
– Crescemos em meio a uma superbiblioteca, e com os amigos literários – os das estantes e dos que compareciam pessoalmente. Acompanhamos também a expertise dos dois na construção da obra. Ambos eram publicitários, espíritos práticos, com a consciência do fazer e do fazer acontecer. Do contexto histórico, inclusive, de que meu pai tinha uma consciência impressionante. Basta pensar que nem se sonhava com a internet, e ele antecipou coisas que são o nosso cotidiano hoje, pela afinidade que tinha com o futuro. Acompanhamos e aprendemos esse processo de gestão de carreira.
Tudo favoreceu para que não partíssemos para carreiras que não tivessem nada a ver com as coisas de que eles mais gostavam. Nosso pai não estando mais aqui, podemos continuar a gestão, pois a obra escrita por ele é tão fresca, não datada, que facilita para nós a recepção e a promoção. Vejo pessoas com 20 anos de idade que nos dizem que começaram a gostar de poesia graças a Paulo Leminski.
Estrela é enfática quando responde à pergunta: Leminski é mesmo valorizado pelas novas gerações? Estrela responde:
- Ele bebeu em fontes complexas, que vão além do eruditismo. Daí ter alcançado o auge no primeiro livro publicado. Mas ele não quer apenas o complexo. Quer ser compreendido pelas massas. É sua clareza, o impacto dos textos, da legibilidade deles que faz com que grafiteiros, rappers, bandas novas o celebrem e se inspirem nele.
Isso serve tanto para os artistas quanto para os professores, na educação até mais tradicional, pois os poemas dele são constantemente usados em livros didáticos. Há o Leminski consumido nas redes sociais, e o Leminski que pode ser chamado de clássico, leitura desde a infância, obras infantojuvenis.
Na cidade, no centro de Curitiba um grafite gigante homenageia Leminski. De autoria do artista Gardpam. Fica na Rua XV de novembro. Quem passa por ali pode encontrar na imagem enorme o primeiro motivo de alumbramento diante do autor e remeter à curiosidade para ler sua obra. Nos seus livros, qual o texto mais impactante, surpreendente, epifânico?, cada leitor pode responder tanto quanto as filhas.
Estrela Leminski cita não um texto, mas um conjunto de livros. As biografias que ele escreveu de Cruz e Souza, Jesus, Trotsky e Bashô. Ela comenta:
- Além da enorme beleza do texto, fico impressionada com a generosidade do olhar dele sobre esses personagens. Mas o alumbramento mais profundo foi perceber o quanto há nisso de autobiográfico. Entendo melhor a obra dele ao ler o perfil biográfico dessas quatro figuras. Falam demais dele, das suas questões, das suas inquietações mais profundas.
- O meu alumbramento – diz Áurea – é ver o deslumbramento das pessoas quando descobrem a obra dele. Algumas até se emocionam por saber que estão conversando com a filha de Paulo Leminski. A exposição que fizemos já esteve em 18 cidades diferentes, do Brasil e do exterior. É bom saber que aquela etapa de convencimento está mais do que superada. Ele está no topo. Não me refiro às massas, mas às pessoas com sensibilidade especial, do meio artístico e acadêmico.
Na jornada de nacionalização e internacionalização da obra do pai, Áurea tem mostrado o quanto a obra dele é universal. Com isto vem um cuidado maior com as traduções para outros idiomas. Algo especialmente difícil no caso da sua poesia tão cheia de jogos verbais. Mesmo quando parece expressar-se em prosa pura, é numa dicção, num diapasão poético que o faz.
À frente dos bons tradutores Áurea cita Charles Perrone, que pôs na língua de Ezra Pound Toda a poesia de Paulo Leminski.
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