Estrela Leminski: versão feminina de si mesma

Filha de dois poetas, Paulo Leminski e Alice Ruiz, ela é um nome bem conhecido no meio da poesia e da música brasileiras. Agora, estreia no romance, com o livro Quando a Inocência morreu

Estrela Ruiz Leminski pode ser considerada uma mulher-orquestra. Tomada esta expressão com o seu sentido original que se refere a múltipla capacidade ou a variados talentos. Filha de dois poetas, é um nome bem conhecido no meio da poesia e da música brasileiras. Sua origem familiar multiétnica num estado multiétnico, o Paraná, parecia já dar o tom de um destino assim plural. Não é uma amadora na Música, pois se formou nessa arte no Brasil e se tornou mestra na Espanha. Se tem razão Verlaine ao afirmar “música acima de tudo”, e “tudo o mais é só literatura”, Estrela já havia acostumado o público ao seu lirismo na poesia. Agora mostra a boa prosa, que é também uma forma de arte poética e de memorialismo, em parte real, em parte inventado. Invenção é palavra associada aos poetas, desde pelo menos Ezra Pound, mas também melopeia, fanopeia e logopeia. Essas três Graças podem ser vistas no romance de estreia da autora, que, nesta entrevista exclusiva, explica um pouco da sua trajetória e dá algumas chaves de sua razão e sua sensibilidade.

No título do seu livro, a Inocência é tratada como um ser vivo, e sendo-o, está sujeito ao tempo e à morte. Como e por que a Inocência morreu? Qual o propósito da metáfora ou alegoria, na hipótese de assim considerá-la?
— Do ponto de vista de metáfora, acabou sendo irresistível, porque eu parti de uma pessoa real, dessa minha bisavó, e eu percebi que quando eu fazia perguntas simples sobre ela, parecia literatura. Então, dentro dessa ideia de trabalhar o limite mesmo entre a ficção e a realidade, entre narrativas familiares e literatura, veio essa questão e esse título de cara. E eu realmente tinha uma dúvida sobre a morte da inocência e dessa minha bisavó. E a história desse falecimento dela também teve a ver, porque eu perguntei para a minha tia-avó como a inocência tinha morrido e a resposta foi que deve ter sido de parto. E eu descobri que não só não foi de parto, como foi de pneumonia, que era como as pessoas, no período da gripe espanhola, eram catalogadas. E ela morreu no ano da gripe espanhola em Curitiba. Então, eu percebi que ficou mais uma... Ao invés de eu conseguir encerrar, eu abri mais lacunas e mais possibilidades de histórias. Do ponto de vista metafórico, é isso que vai permeando. Eu acho que quando eu vou contar, criar histórias, criar personagens para homenagear cada um dos quatro avós, eu estou falando muito sobre o não pertencimento, sobre a invisibilidade da mulher, mas também estou falando sobre crescimento e amadurecimento de cada um desses personagens. Dentro desse processo, existe muita inocência perdida. Existe também algo nessa ideia de narrativas familiares, de sagas familiares – ficam as histórias de superação e a gente perde justamente esses lugares de angústia, de inquietude, de medo. A gente fica muito com datas, com uma narrativa do que aconteceu, mas não por que as coisas aconteceram. Então, dentro desse processo, fez muito sentido para mim trabalhar tanto a perspectiva de uma pessoa real, quanto a ideia de inocência do meu personagem sendo perdida. A ideia de inocência dos meus personagens, sendo perdida nesse processo, e da minha própria sem dúvida.

Estrela é uma versão feminina de Paulo Leminski?
— Não, eu acho que Estrela é uma versão feminina de si mesma. Claro, existe uma questão de um ramo, uma questão de vivência, uma questão até de uma inquietude parecida. Então, acho que existe uma perspectiva que é um ramo de Paulo Leminski, mas também é um ramo muito importante de Alice Luiz. Acho que existe, sim, um resultado, que é um resultado mais de vivência do que outra coisa. Mas, enfim, de qualquer forma, eu gosto muito da perspectiva, seja um ramo, seja uma versão, de realmente trazer uma visão feminina mesmo da multiplicidade da arte.

Poesia, música, e agora uma narrativa em prosa. O quanto se sente à vontade e completa em cada um desses gêneros?
— Eu sempre me senti completamente dividida na música e na poesia. Sempre uma apaixonada, desde criança, apaixonada por essas duas facetas e muito interessada, inclusive, nos tangenciamentos mesmo de uma e da outra. O meu mestrado foi justamente sobre o texto como dispositivo criativo para ideias melódicas e musicais. Então, essa questão e essas fronteiras, o que elas têm em comum e o que elas não podem se encostar nunca, porque a música, enfim, a rigor, não é uma linguagem, mas ela compartilha de alguns elementos. Eu acho que sempre fui uma apaixonada por esses dois lados e sempre tive fases em que estava mais conectada com uma coisa ou outra. E a prosa, de alguma forma, me atropelou dentro de uma inquietude mesmo. Eu acho que quando esse livro nasceu, entendi que precisava trabalhar com o universo da prosa mesmo. No meu primeiro impulso, eu fiquei completamente preocupada, insegura, questionando e fui fazer cursos de escrita criativa e mergulhei fundo num processo longo com a Julia Funk, que é doutora em escrita criativa na PUC Rio Grande do Sul e a da ESC, Escola de Escrita, e lá entendi, inclusive, que todos esses elementos que acabam entranhados em mim da musicalidade, no que eu faço, tanto musicalmente quanto poeticamente, quanto às minhas questões de quebra e visualidade dentro da poesia, também poderiam ser bem-vindas num livro de prosa. E isso fez com que eu ficasse bem mais à vontade de quebrar alguns protocolos dentro até do que é um formato clássico de romance.

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