"A Sra. Handler jamais havia se encontrado pessoalmente com Malcolm antes daquela visita fatídica. Serviu-nos café e bolo, enquanto Malcolm falava com o jeito cortês e gentil que tinha em particular. Percebi imediatamente que a Sra. Handler ficara impressionada com Malcolm. A personalidade dele ocupava inteiramente a nossa sala de estar.”
“Depois que Malcolm se retirou, a Sra. Handler ficou muito quieta e pensativa. Subitamente, ela levantou a cabeça e disse: – Quer saber de uma coisa? Tive a sensação de estar tomando chá na companhia de uma pantera negra.
A descrição me surpreendeu. A pantera negra é uma aristocrata do reino animal. Trata-se de um animal lindo e perigoso. Como homem, Malcolm X tinha o porte físico e a confiança interior de um aristocrata nato. E era potencialmente perigoso. Nenhum homem em nosso tempo despertou tanto medo e ódio no homem branco quanto Malcolm. É que nele o homem branco sentia um inimigo implacável, que não poderia ser dobrado, qualquer que fosse o preço, um homem incondicionalmente empenhado na causa de libertar o homem preto na sociedade americana, ao invés de integrá-lo nessa sociedade.”
A observação acima, tecida por Michael S. Handler, repórter do New York Times, foi extraída da introdução da Autobiografia de Malcolm X. A publicação, elaborada a partir de uma longa entrevista ao escritor Alex Haley, foi apontada, em 1998, pelo crítico Paul Gray, da Time, como um dos 10 livros de não ficção mais importantes do século XX. Nessa obra, a única assinada pelo líder negro – as outras, dentre as centenas de livros lançados sobre o ativista, são coletâneas de discursos e entrevistas –, ele narra sua trajetória, revelando acontecimentos, pensamentos e sentimentos dolorosos ou curiosos, desde sua infância até a fase adulta.
Lançada postumamente, em 29 de outubro de 1965, nove meses após o assassinato brutal do ativista, ocorrido em 21 de fevereiro daquele ano, a autobiografia serviu como referência para a elaboração do filme Malcolm X, lançado em 1992. Os direitos haviam sido comprados pelo produtor Marvin Worth, em 1968. Enquanto os romancistas James Baldwin e David Bradley e os dramaturgos David Mamet e Charles Fuller tentavam escrever um roteiro, os atores Billy Dee Williams e Richard Pryor expressaram interesse em interpretar Malcolm, e Sidney Lumet e Norman Jewison consideraram dirigir o projeto. Mas ninguém queria fazer o filme mais do que Spike Lee.
“Quando soube que Jewison tinha autorização para o projeto, Lee iniciou uma campanha de protesto, argumentando na imprensa que apenas um diretor negro poderia fazer a coisa certa com a história de Malcolm e importunando Worth com inúmeros telefonemas, insistindo: ‘Eu sou o cara, eu sou o cara’. Worth finalmente cedeu, e Jewison desistiu. A Warner Bros. concordou em financiar o roteiro de Baldwin, reescrito e dirigido por Lee, estrelado pelo vencedor do Oscar Denzel Washington. ‘Acho que eles sentiram que seria um evento maior, com Spike’, diz Worth”, escreveu Janice C. Simpson, na matéria The battle to film Malcolm X, publicada em 16 de março de 1992, na Time.
Com um orçamento de 32 milhões de dólares, Malcolm X não foi tão bem nas bilheterias. A produção teve um faturamento modesto, 48 milhões de dólares. No entanto, lançada, em 18 de novembro de 1992, nos Estados Unidos, a obra surtiu efeito quase como uma peça de propaganda do líder negro. De figura mais conhecida por ativistas, políticos, professores e pesquisadores norte-americanos, seu nome passou a ser propagado no mundo inteiro, se tornando um ícone pop para a juventude negra contemporânea, com sua imagem aparecendo em camisetas, botons, bonés, grafites e inspirando mais livros sobre sua vida e seu pensamento.
Mesmo com esse impacto, houve quem criticasse o longa-metragem. Realizado com as melhores intenções por Spike Lee, que brigou com a Warner para conseguir fazer um filme com 3h22 de duração (o cineasta usou as 3h26 de JFK, de Oliver Stone, como argumento) e ainda investindo parte do seu cachê de 3 milhões de dólares, a cinebiografia recebeu uma crítica afiada de uma das mais respeitadas intelectuais norte-americanas, bell hooks (ela escrevia seu nome com iniciais em letras minúsculas). A autora não poupou esforços para dissecar vários aspectos da adaptação cinematográfica da autobiografia, que contou, inclusive, como coautor do roteiro Alex Haley, também criador do best-seller Raízes (1977).
Antes de tudo, bell hooks apontou a barreira que existe para que uma pessoa negra possa criticar a obra de outra pessoa negra. “A mensagem não é que os negros devem interrogar as imagens que os brancos produzem, enquanto consomem passivamente imagens construídas por negros; devemos olhar criticamente para todas as imagens. Malcolm encorajou o desenvolvimento de um olhar negro crítico, que confrontaria, desafiaria, interrogaria. No entanto, tanto na academia quanto nas ruas, admiradores negros de Spike Lee tentaram desacreditar qualquer voz que não celebrasse inequivocamente seu filme Malcolm X. Críticos negros do filme correm o risco de serem vistos como traidores da raça ou pessoalmente hostis a Spike. (O próprio Lee tende a ser rápido em denunciar seus críticos.) O cineasta Marlon Riggs, entre outros, alertou que tal silenciamento impede o desenvolvimento da crítica cultural negra”, observou a professora e teórica no livro Cinema vivido: raça, classe e sexo nas telas (1996).
“É igualmente verdade que não há lugar para a raiva militante masculina negra em Hollywood. Finalmente, é a militância de Malcolm que o filme apaga. Lee parece principalmente fascinado não por Malcolm, o revolucionário político – não pela crítica do racismo em conjunto com o imperialismo e o colonialismo, e certamente não pela crítica do capitalismo – mas pela visão inicial de Malcolm do racismo como uma luta de poder falocêntrica masculinista entre homens brancos e negros.”, avaliou.
“Nenhuma de suas críticas poderosas ao capitalismo e ao colonialismo é dramatizada. Além disso, Lee não explicou por que mostrou um preso fictício levando Malcolm ao islamismo em vez do próprio irmão e irmã de Malcolm (como Malcolm descreve em sua autobiografia). De fato, o personagem de Malcolm é construído como sem família, embora membros de sua família sempre estivessem presentes em sua vida. Apresentando Malcolm como um órfão simbólico, Lee apaga suas relações complexas com mulheres negras – sua mãe, sua irmã – fazendo parecer que as únicas mulheres importantes para ele eram suas parceiras sexuais. O efeito de extirpar o envolvimento de Malcolm com a família e a comunidade é colocá-lo como o herói solitário, reinscrevendo-o em uma venerável tradição de Hollywood”, apontou.
A crítica de bell hooks faz sentido, quando são lembradas figuras femininas como as irmãs mais velhas, Ella e Hilda, a mãe Louise Norton, e a poeta Maya Angelou. O filme também não concedeu a devida importância à primeira fase da vida de Malcolm X, sua infância sofrida. O primeiro capítulo da autobiografia com título sugestivo, Pesadelo, é crucial para entender a motivação pessoal de toda a fúria do líder negro contra os homens brancos. Sua família foi submetida a sofrimentos terríveis. A pele mais clara de Malcolm, dentre os sete irmãos, devia-se ao fato de carregar, em seu DNA, os genes do homem que estuprou a sua avó materna e que nunca foi condenado pelo crime.
Tragédia familiar
Quando estava grávida de Malcolm, Louise viu o marido ser ameaçado por integrantes da Ku Klux Klan montados a cavalo, na frente de sua casa, em Omaha, no estado de Nebraska. Ela era casada com Earl Little, um pastor que seguia as teorias de Marcus Garvey, ativista jamaicano que defendia o pan-africanismo — a unificação dos povos do continente africano com a diáspora africana. Earl tinha medo de que ele ou algum de seus filhos tivesse o mesmo destino de quatro de seus cinco irmãos, que foram assassinados por homens brancos. Então, se mudaram para Lansing, no Michigan.
Lá, um grupo de supremacistas chamado Legião Negra incendiou a casa dos Little. Em seguida, transferiram-se para outra residência. Perseguidos por morarem numa área de brancos, perto da Universidade Estadual de Michigan, tiveram que se mudar novamente. No novo endereço, a família viu sua casa ser incendiada. Depois, quando estavam se recuperando da violência, Earl desapareceu. Foi linchado e colocado nos trilhos ferroviários, o que simularia um suicídio. A falsa causa da morte inviabilizou a retirada de uma apólice de seguros por parte de Louise Little.
Numa época em que os empregos considerados mais nobres para os negros eram os de garçom, engraxate e faxineiro, como disse o próprio Malcolm, sua mãe teve dificuldade para permanecer nos subempregos que conseguia, por causa de sua raça. Apesar de ter a pele clara, em algum momento, sua origem como negra e esposa de Earl era descoberta pelos patrões. Este era o período em que vigorava o sistema de segregação instituído pelas Leis Jim Crow, que tornaram a discriminação racial um fato onipresente nos Estados Unidos entre 1865 e 1968. Para piorar, o contexto da Grande Depressão agravava a miséria dos Little. Em meio ao luto, Louise enfrentava uma dificuldade extrema para manter seus oito filhos razoavelmente alimentados, o que começou a abalar sua saúde mental. Enfim, quando o romance de dois anos com um novo parceiro acabou, ela passou a ficar depressiva e deslocada da realidade, falando sozinha, deixando a casa sem limpeza e os filhos sujos e maltrapilhos. Um acesso de loucura fez com que a assistência social acabasse por separar o que restava da família. A mãe terminou sendo levada para um hospício, onde passou 26 anos, chegando a esquecer quem era Malcolm; os dois filhos mais velhos permaneceram na residência e os mais novos foram distribuídos para adoção.
Malcolm, que, faminto, começara a praticar furtos de comida, foi o primeiro a conseguir um lar adotivo, antes mesmo da crise mental da mãe. Recebeu o amparo dos Gohannas, uma família amiga de seus pais, e dormia no quarto de seu melhor amigo. Como era um garoto esperto e traquinas, tudo mudou após uma brincadeira com um professor que o havia humilhado por ele ter chegado de chapéu na sala de aula. Malcolm revidou colocando uma tachinha em cima da cadeira do mestre. Após o berro do professor, o aluno, mesmo tirando notas altas, foi expulso da escola e teve também que sair da casa da família que o acolhera, indo parar numa prisão para menores.
Mas algo pendia a seu favor, seu carisma e inteligência conseguiam conquistar as pessoas, mesmo as brancas. Ele passou a ser abrigado pelo casal que gerenciava o estabelecimento. Apesar de bem-tratado, ele considerava que era visto quase como um animal de estimação por ambos. Daí, a explicação do título do segundo capítulo de sua autobiografia, Mascote. Nessa parte, ele narra as duas vezes em que tentou ingressar no boxe, seguindo o exemplo do irmão, Philbert, que já tinha até um núcleo de fãs. O esporte ganhava popularidade entre os jovens negros norte-americanos após o lutador negro Joe Louis ter nocauteado o campeão mundial dos pesos-pesados, o branco James J. Braddock, em 27 de junho de 1937. A vitória foi considerada “o maior feito de orgulho da raça que nossa geração já conhecera”, recordou Malcolm. “Todo menino negro com idade o bastante para andar queria ser o próximo campeão.”
Nocaute
Com humor, Malcolm contou sobre a sua estreia num ringue. Na ocasião, lutou contra um menino branco chamado Bill Peterson: “Os danos à minha reputação foram tão grandes, que praticamente tive que me esconder. Um negro não pode ser derrotado por um branco e voltar para a sua comunidade de cabeça erguida, especialmente naquele tempo, quando os esportes e o show business, em grau menor, eram os únicos campos abertos à evolução dos negros e o ringue era o único lugar em que um negro podia bater num branco sem ser linchado”.
Em seguida, o jovem Malcolm treinou o que considerava ser o bastante para convocar o rival para uma revanche: “A única coisa melhor na nova luta foi o fato de quase nenhum conhecido estar presente para presenciá-la. (…) No momento em que o gongo soou, avistei um punho avançando em minha direção, em seguida a lona subiu ao meu encontro. Dez segundos depois, o juiz estava gritando ‘Dez!’ por cima de mim. Foi provavelmente a ‘luta’ mais curta da história. Fiquei estendido, ali escutando a contagem, mas não conseguia me mexer. Para ser franco, não tenho muita certeza se queria me mexer. Aquele garoto branco foi o princípio e o fim da minha carreira como lutador. Muitas vezes, nos anos que se passaram desde que me tornei um muçulmano, tenho pensado naquela luta, refletindo que foi Alá quem me impediu de continuar como boxeador e ter acabado ‘sonado’”
Apesar da humilhação, Malcolm continuou a ser fã de boxe e foi assim que conheceu Cassius Clay, em 1962. Em 1959, o pugilista começou a se interessar pelo grupo religioso Nação do Islã Perdida e Reencontrada – Malcolm X havia aderido à organização em 1953, um ano após sair da prisão, por influência do irmão Philbert. Por sua eloquência e desenvoltura, se tornou ministro religioso da instituição, que, por causa dele, aumentou de 400 para 40 mil seguidores, estes chamados pela imprensa de “muçulmanos negros”. A Nação do Islã defendia que os brancos eram “demônios” e que os negros americanos eram a tribo asiática perdida de Shabazz – que, mais tarde, seria o último sobrenome de Malcolm, sua esposa e seus filhos.
Por influência da Nação, Cassius e Malcolm trocaram seus nomes — pelos preceitos, os convertidos deveriam rejeitar seus sobrenomes de escravos, substituindo-os pela letra X, representando o desconhecido. Depois, receberiam, então, seus sobrenomes “originais”. Malcolm já havia abandonado o vínculo colonial do sobrenome Little para usar o X e Cassius Clay se tornou Muhammad Ali. A história dessa amizade pode ser conhecida no documentário Irmãos de Sangue: Muhammad Ali e Malcolm X (Netflix, 2021), baseado no livro Blood Brothers: The fatal friendship between Muhammad Ali and Malcolm X (2016), de Randy Roberts e Johnny Smith.
A relação fraternal entre eles ruiu após Malcolm desvincular-se da Nação do Islã, em 1964, motivado pela descoberta de que o mentor da seita, Elijah Muhammad, tinha engravidado cinco de suas secretárias, sem, ao menos, assumir a paternidade dos filhos. Um ano antes, Elijah também havia proibido Malcolm de emitir declarações políticas públicas, após ter se manifestado sobre o assassinato de John F. Kennedy, em 1963. Nesse período, Malcolm já havia se tornado um nome frequente nos debates na TV, no rádio e nas universidades.
Malcolm e Muhammad Ali se encontraram pela última vez em 1964, em Accra, Gana, onde o primeiro cumprimentou o segundo com empolgação: “Irmão Muhammad! Irmão Muhammad!”. Ali, no entanto, respondeu: “Irmão Malcolm, você não deveria ter contrariado o Honorável Elijah Muhammad” e foi embora. Após o homicídio do ativista negro, em 1965, o boxeador lamentou profundamente sua reação: “Malcolm X foi um grande pensador e um amigo ainda maior. Eu nunca teria me tornado muçulmano se não fosse por Malcolm. Se eu pudesse voltar e fazer tudo de novo, eu nunca teria virado as costas para ele”.
Lições do cárcere
Malcolm X passou 13 anos na Nação do Islã, que o ajudou, no ano seguinte à sua saída da prisão por roubo e tráfico de drogas, após cumprir penas entre 1946 e 1952. No grupo, Malcolm abandonou o vício do álcool e das drogas e as práticas criminosas do submundo da sociedade. No entanto, sua transformação já havia começado no período em que passou na cadeia. “Eu sempre digo aos meus alunos que Malcolm X chegou tanto à sua espiritualidade quanto à sua consciência como pensador quando teve solidão para ler. Infelizmente, tragicamente, como tantos jovens negros, essa solidão só veio na prisão”, afirmou bell hooks.
A frase da ativista antirracista ganha um certo ar de romantismo, quando sabemos que Malcolm passou por maus bocados em uma prisão fétida, onde xingava, literalmente, Deus e o mundo, ganhando, assim, o apelido de Satã. Dentro do cárcere, ainda conseguia se drogar com noz-moscada moída, até que conseguiu uma transferência para Charlestown State Prison, onde não se dava bem em nenhuma modalidade de serviço em que fosse colocado, até que na fundição conheceu um ex-ladrão, também alto e de pele clara, chamado John Elton Bembry (Bimbi). Este homem mudaria sua vida.
“Bembry, cerca de 20 anos mais velho do que Malcolm, deslumbrou o jovem com sua habilidade intelectual. Foi o primeiro homem negro que Malcolm conheceu na prisão (e possivelmente fora da prisão também) que parecia conhecer quase todos os assuntos, e tinha habilidade verbal para manter praticamente qualquer tipo de conversa. Intelectualmente, Bembry tinha interesses espantosamente diversos, sendo capaz de falar sobre a obra de Thoreau a qualquer momento, e, em seguida, sobre a história institucional da prisão de Concord, Massachusetts. Malcolm sentiu-se particularmente atraído pela capacidade daquele homem de ‘colocar a filosofia ateísta num contexto’. Os pensamentos de Malcolm ganharam vida sob a tutela de Bembry”, explicou o historiador, cientista político e professor da Universidade de Columbia Manning Marable, na biografia Malcolm X – Uma vida de reinvenções (2011), livro vencedor do Prêmio Pulitzer.
Os dois prisioneiros foram designados para a oficina de placas de carro, onde, depois do trabalho, detentos e até mesmo guardas se reuniam para escutar os discursos de Bembry. Após semanas observando, este desafiou o jovem colega a usar o intelecto para melhorar sua situação na prisão, insistindo para que fizesse cursos por correspondência e usasse a biblioteca – a irmã Hilda já havia dado um conselho semelhante, para “estudar inglês e caligrafia”. Malcolm, enfim, aceitou a proposta deles.
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