Viagem a Assaré

À beira dos 50 anos, ainda tenho vigor e resistência, e só por isso consigo atravessar em silêncio abnegado o sertão do Cariri. Viajamos em direção a Assaré, pequena vila em meio ao cerrado, onde vive o poeta Patativa. Avançamos pela mata branca, seguindo as pistas de um antigo mapa que se dobra ao vento, mas continuamos perdidos. Antes estivemos no Crato, até ali tudo parecia ensolarado e nítido, mas agora a paisagem se esfuma. Será que chegaremos, me pergunto?

Seguimos, abnegados, em meio ao grande vazio. O silêncio, em vez de me apaziguar, me massacra. Descubro que o silêncio pesa tanto quanto uma pedra. Digo para Celso, o fotógrafo e amigo: “Será que Assaré existe mesmo?” Ele me puxa para ao chão: “Claro que existe, está no mapa. E já estamos perto”. Entrego-me a uma resignação que se parece com a apatia. O vento forte da caatinga me entorpece. Deixo-me levar. Sempre confiei no Celso, ele sabe o que faz. Assim espero.

Até que avistamos um vulgo borrado que se arrasta à beira da estrada. Uma esperança vaga toma conta de mim. “Só para te acalmar, vamos perguntar ao velho se estamos na direção certa”, Celso me diz. O homem veste um paletó surrado e carrega uma bolsa de couro. Paramos a seu lado. “Esse é o caminho para Assaré”? – meu amigo que lhe pergunta. O velho nos olha, cismado. “O que vocês estão procurando? Em Assaré não tem nada”, ele diz. Carrega o deserto nos olhos. Não se altera nem mesmo quando ouso corrigi-lo: “Tem sim, é lá que vive o grande poeta Patativa”.

Parece desconhecer o poeta, pois não reage. Celso pergunta se ele aceita uma carona. “O senhor também vai para Assaré?”. Responde com outra pergunta: “Onde eu posso me sentar?” Abrimos a porta, ele se acomoda no banco de trás, a meu lado. Só agora percebo que está coberto de poeira e que emana o cheiro do sol. A poeira e a luz do sertão. “De onde o senhor vem?” Responde por responder: “Venho lá do fundo”, e aponta para trás. Os cabelos chupados, a roupa que fede a vento, a aparência em destroços, o velho parece arrancado da paisagem desértica que nos cerca. Tão concreto e objetivo quanto uma pedra, ou um cacto. “Será que ele nasceu do pó?” – eu me pergunto. Fecha a cara, não está para conversa. Ou talvez só esteja cansado. Certamente está muito cansado. Eu lhe ofereço uma garrafa d’água, que ele engole com pressa.

Continuamos em silêncio, mas o silêncio me irrita, não consigo sustentá-lo. Não consigo deixar de perguntar: “O senhor mora em Assaré?” O homem me olha com desânimo, mete os dedos entre os cabelos ralos e sujos, e diz: “Por que tantas perguntas?” Só me resta escapar pela via profissional: “Acontece que sou repórter”. Encara-me com olhos foscos, de boi sonolento, e diz: “Não acontece nada em Assaré, por que vocês vão para lá?”

Passo a meditar sobre o modo trágico com que os poetas se dissolvem na paisagem. Como se evaporam entre as pessoas comuns, o modo com que não são vistos. “Poetas, na verdade, não existem”, eu penso, mas não digo. O velho não me entenderia. “Poetas só existem para si mesmos.” Trato de refrear os pensamentos, não quero assustá-lo. Calo-me. Em meio à desolação do Cariri, ele se tornou nosso único guia e não estamos em condições de perdê-lo.

Enfim, entramos, devagar, na pequena Assaré. “Podem me deixar naquela casa lá em frente”, ele pede. Aponta uma casa antiga, perdida no anoitecer. O motorista estaciona bem diante dela. O velho desce. “Obrigado pela carona”, despede-se. Nosso motorista volta a se acomodar diante do volante. Em um tom de voz mais alto, o velho pergunta: “Onde vocês pensam que vão?” Paciente, em um tom monástico, Celso repete: “Como lhe dissemos, viemos procurar o poeta Patativa.” O velho solta uma gargalhada que sacode tudo. “Então chegaram, o poeta sou eu.”