Este dossiê é sobre o escritor japonês Yukio Mishima. Um contador de histórias vencido pela História. Sua morte espetacular só não foi maior do que a própria obra literária por esta ser realmente o melhor de sua curta vida. Quase uma centena de livros, tão bem-vistos ao ponto de ter sido cogitado para o Nobel de Literatura.
Por mais pretendida uma vocação para a anti-historicidade, a literatura também resulta de tempos e circunstâncias. Alguns dirão ser ela, sobretudo, ou, mesmo, somente, isso. Outros proporiam o apagamento da ideia em si de ‘autor’. É assim que temos no famoso texto de Roland Barthes, de O rumor da língua. Um trecho:
“O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’. É pois lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à ‘pessoa’ do autor. O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário íntimo, a sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; a crítica consiste ainda, a maior parte das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, que a de Van Gogh é a sua loucura, a de Tchaikowski o seu vício: a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua ‘confidência’.”
Antes de Barthes, foi Paul Valéry quem pôs o tema no seu devido lugar:
“A História da Literatura não deveria ser a história dos autores e dos acidentes de sua carreira ou da carreira de suas obras, mas a História do Espírito como produtor ou consumidor de literatura. Esta história poderia levar-se a cabo sem mencionar um escritor sequer. Podemos estudar a forma poética do ‘Livro de Jó’, sem a menor intervenção da biografia dos seus autores, que são inteiramente desconhecidos.”
Os rumos tomados pela literatura na pós-modernidade e outros pós terminaram provando o contrário. As biografias dos autores se afirmaram como imperativos categóricos e a literatura tornou-se por vezes uma espécie de serpente uroboro. Prospera, atualmente, o gênero esdrúxulo da autoficção, que representa a culminância desse narcisismo de muitas caras. Por conseguinte, devemos considerar ambas as propostas válidas: a ausência da História e o excesso de histórias, inclusive as que representam um prolongamento do ‘eu’.
Não há, por esses e todos os outros motivos, modos de dizer algumas coisas sobre a literatura japonesa e Mishima sem uma referência breve à história do seu país. Evita-se, propositadamente, o biografismo.
As profundas transformações na sociedade japonesa começaram alguns anos antes do nascimento de Yukio Mishima. Na imposição de uma data, podíamos, quem sabe, escolher 1912 como um marco dessa transição, pois é quando morre o imperador Meiji. Ingressa-se, então, no período Taisho (1912-1926); Taisho por ser o nome do novo imperador. Tempos de conflitos, vários deles decorrentes de lutas trabalhistas. A despeito disso, ou dentro disso, houve mais participação popular. Daí poder-se dizer que foi uma era democrática, em contraste com a caótica anterior (Meiji, 1868-1912), e a militar posterior (Showa, 1926-1989).
Sobre o contexto da modernização pondera o historiador W. G. Beasley que a morte de Meiji deu-se após um reinado de 45 anos. De transformações espetaculares:
“Seu próprio status tinha sido elevado: de um recluso Inoperante, considerado pelos visitantes estrangeiros como algo semelhante a um papa, ao de um monarca semidivino de uma vigorosa nação. Depois de anos de debilidade internacional, seu país havia ganhado duas guerras e adquirido os começos de um império. Seus súditos tinham aprendido e empregado novos meios de fazer fortuna. Começavam já a mostrar as consequências disto em seu nível de vida. Estavam também mais eficientemente governados, melhor educados e tinham mais consciência de participar na vida nacional que nunca até então. Em suma, a primeira fase da modernização havia sido completada com sucesso.”
Está, portanto, claro que a ocidentalização do Japão rimando com modernização já se esboçava no início do século 19. Num processo crescente e imparável. O Japão abriu-se como um leque, ou simplesmente, um porto. Isto significou, para alguns, não um canal de novas conquistas, mas uma ferida. Embora tal ferida e suas cicatrizes já fossem parte do percurso, como a Ítaca de Kafávis, sempre ficou em alguns como uma ferida aberta. Mishima estava entre eles.
Nascido em 1925, tinha já 20 anos de idade Mishima após a humilhação completa sofrida pelo Japão, após a Segunda Guerra Mundial. Sua literatura madura foi sendo gestada numa época de dominação estrangeira sobre o seu país. Sua vida, então, transcorreu antes, durante e depois disso, sob a égide de crises.
Vale a pena uma breve reflexão sobre a etimologia de ‘crise’ e o sentido de civilização. Se entendemos esta última, sobretudo, como um estilo de vida, a do Japão teve de equilibrar-se em antagonismos – para empregar uma ideia freyriana sobre o Brasil. O Brasil prodigalizou-se sempre em assimilar com a máxima pressa possível os estrangeirismos. Raras vezes não considerou os estrangeiros até acima de sua própria identidade. No Japão, pelo contrário, o estrangeiro inclui-se entre os seus muitos pontos de tensão, para dizer pouco.
Imagine-se alguém imbuído dos seus próprios modos de pensar, sentir, fazer e agir sendo submetido a um comando alheio. Tendo, a partir disso, que pedir permissão para muitas coisas. Quando se trata de um indivíduo o esmagamento de sua liberdade pode desencadear uma série de perturbações emocionais.
Obviamente, no caso dos países, a dominação de um por outro, quando produto direto de uma guerra, misturam-se na vida de todos os dias o hard e o soft. Nas manifestações políticas o controle talvez não seja de todo distinto de uma liberdade sob condições. As atmosferas e as ações foram sendo modificadas paulatinamente. Os movimentos de esquerda viviam sob pressão. O direito dos sindicatos de declarar greve sempre havia estado submetido aos que passaram a ocupar e ser os verdadeiros dirigentes do país. A greve, num contexto assim, podia siegnificar algo além dos motivos econômicos. Como informa W. G. Beasley, em 1948 foi proibida a greve aos funcionários públicos. No ano seguinte, foi revista a Lei dos Sindicatos, e novas imposições e restrições foram adotadas. Na prática, um cerceamento dirigido principalmente contra os comunistas.
“Conta-se que mais de vinte mil foram demitidos das tarefas que desempenhavam no governo, na educação e na indústria entre 1949 e 1950, alguns deles inclusive dirigentes dos sindicatos. Também em 1949, MacArthur autorizou o governo japonês a revisar a aplicação das ‘purgas’ de 1948 e 1947. Neste sentido, o avanço foi lento, a princípio, mas o passo se acelerou depois de julho de 1950, de modo que quase todos os originalmente afetados por ela haviam reconquistado seus direitos políticos no final de 1951.”
Poucos conseguiram retomar o seu antigo poder e influência, mas isto bastou para afetar a vida pública, aumentando o conservadorismo. Reitera Beasley:
“Uma prova mais de que os forjadores norte-americanos da política reconsideravam o passado se apresentou a propósito da questão do rearmamento. A constituição de 1946, supostamente por insistência do Comandante Supremo, havia incluído uma cláusula que dispunha: ‘o povo japonês renuncia para sempre à guerra como um direito soberano da nação’. Também o obrigava a não manter nunca mais um exército, uma marinha ou uma aviação militares. Na situação que se apresentou imediatamente após a guerra, em que o Japão aparecia como inimigo derrotado cujo ressurgimento militar havia sido impedido, semelhante cláusula parecia ter sentido comum; mas houve muito o que dizer sobre isso em 1950, quando se trocou o aliado potencial. Concordantemente, em julho desse ano se lhe permitiu criar uma Reserva Policial Nacional, força militar composta de 75.000 homens, que substituiria a responsabilidade das tropas norte-americanas quanto à segurança dentro do país. Adiante, as exortações norte-americanas acrescentadas ao apoio da ala direita japonesa aumentaram o número da força e foram estendendo gradualmente suas funções - apesar da feroz oposição daqueles japoneses que eram contrários ao custo disso ou à flagrante evasão da constituição que isso acarretava - até que, em 1960, com o novo nome de Força de Defesa Nacional, surgiu como uma organização cabalmente militar, possuidora de substancial quantidade de armas de terra e ar, equipadas com os mais modernos projéteis.”
Quem já pensou na expressão ‘separar o joio do trigo’ encontrou sem querer uma correlação com a palavra crise, etimologicamente. Em grego, crise significa separar ou decidir, ambas ligadas ao mundo rural; à ideia de separar o trigo do joio, portanto. Quem pensasse num neologismo como “decindir” estaria propondo uma curiosa síntese.
No entanto, a etimologia – isto também ocorre com a estatística – é uma máquina de verdades aparentes, ou de meias verdades. Quase todos caem na tentação de tirar conclusões, nada mais saber das raízes de uma palavra ou de médias numéricas. No caso da palavra crise a armadilha captura facilmente qualquer um.
Foi a partir das declarações, para efeito retórico, feitas por políticos como JFK e outras celebridades estadunidenses, que se fixaram derivações imprecisas sobre a palavra crise em japonês e chinês. Nessa interpretação a palavra crise seria o resultado de caracteres significando, um perigo, e, o outro, oportunidade.
O problema não está na leitura do perigo, mas da oportunidade. Explica-se: segundo Victor H. Mair, professor de língua e literatura chinesas na Universidade da Pensilvânia. O segundo dos caracteres que formam a palavra crise não significa, literalmente, oportunidade. É polissêmico, e aproxima-se muito mais da ideia de ponto crucial. Ele afirma:
“O jī de wēijī, de fato, significa algo como ‘momento incipiente; ponto crucial (quando algo começa ou muda).’ Assim, um wēijī é, de fato, uma crise genuína, um momento perigoso, um momento em que as coisas começam a dar errado. Um wēijī indica uma situação perigosa quando se deve ser especialmente cauteloso.”
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