“A esquerda identitarista é uma barata tonta"

O antropólogo Antonio Risério traça um perfil multifacetado do Rei do futebol no livro "Pelé, o negão planetário"

A esquerda identitária demonizou palavras que eram usadas normalmente pela população. Nesse sentido, quero saber: Pelé é realmente um negão de tirar o chapéu?

A esquerda identitarista é a encarnação perfeita da figura da barata tonta: não sabe o que fazer com a história, nem com as palavras. Veja o caso do 13 de Maio, data da abolição da escravidão entre nós. Durante anos, a data foi violentamente atacada pelos movimentos negros. Como o governo cedia sempre às suas pressões, a data deixou de ser feriado, embora o 13 de Maio de 1888 continue sendo, até hoje, a maior revolução social ocorrida no Brasil. Cheguei a publicar ensaio em livro e artigo no jornal O Estado de S.Paulo mostrando a ignorância dos movimentos negros sobre o assunto. Eles não viam o fato elementar de que o 13 de Maio fora conquista alcançada pela maior coalizão de cores e classes sociais já formada em nosso país. E que, por isso mesmo, era também uma grande conquista negra. Além disso, dos cinco principais líderes do movimento, três eram negros: André Rebouças, Patrocínio e Luiz Gama. Hoje, depois de anos execrando o 13 de Maio, os movimentos negros começaram a voltar atrás, a reconhecer a importância da movimentação que desembocou na chamada Lei Áurea. O mesmo se dá com relação às palavras. Os identitaristas “neonegros” querem impor uma ditadura do pensamento único entre nós – e seu correspondente, no plano verbal, é o projeto de impor uma ditadura linguística. Eles querem que o povo inteiro traia a sua língua e passe a falar do modo que os identitaristas querem que eles falem. É um absurdo – e, de um modo geral, a universidade, os políticos profissionais e a mídia se comportam de forma totalmente submissa e mesmo covarde diante desse projeto fascista. Foi assim que quiseram vetar, como “racista”, a palavra “negão”. Uma cretina do movimento negro tentou justificar – e o fez da forma mais ridícula possível: disse que a prova de que “negão” era “racista” estava no fato de que não existia a palavra “brancão”. É um dos argumentos mais burros que já vi. Pelé sempre foi tratado de negão por seus companheiros – e sempre tratou jogadores e outros profissionais negros do futebol, chamando-os, afetuosamente, pela palavra “negão”. Isso nada tem de racismo, a não ser em cabecinhas imbecis ou doentias, que querem ver racismo em tudo – até, quem sabe, no fato de a fumaça sair preta, quando o papa ainda não foi eleito. Ah, sim, é claro que Pelé é um negão que merece todos os tira-chapéus do mundo. 

No seu livro, você redime Pelé, que foi alvo de todas as cobranças possíveis: políticas, raciais, religiosas, machistas... Por que Pelé foi alvo de tanta cobrança, até do próprio movimento negro? 

Porque ele nunca rezou pela cartilha “progressista” da esquerda, assim como nunca, mais tarde, se ajoelhou diante dos dogmas pseudo-progressistas do identitarismo “woke”, transplantados, mecanicamente, sem nenhum sentido crítico, da realidade norte-americana para o Brasil. Não só Pelé, como digo no livro. Os dois maiores ídolos populares brasileiros do século XX, Pelé e Roberto Carlos, nunca entraram nessas canoas furadas e, por isso mesmo, sempre foram criticados, atacados agressivamente, xingados. No entanto, sem dar a mínima bola para a esquerda tradicional e a pseudo-esquerda identitarista, o povo brasileiro os elegeu e continuou a tratá-los, a ambos, como “reis”.

Você citou que, apesar de não ter se manifestado claramente contra a ditadura, Pelé fez isso, indiretamente, abandonando o futebol, em 1973. Você considera que o abandono do futebol foi um protesto?

Não foi bem isso o que escrevi. Observei que, depois de tomar conhecimento de coisas como tortura e exílio (ele era procurado no exterior por brasileiros exilados que faziam denúncias contra a ditadura militar), ele se recusou a disputar o chamado “Mundialito”, em 1972, torneio internacional de seleções que a ditadura resolvera promover para celebrar os 150 anos da proclamação da Independência brasileira em 1822. Antes disso, ele se mostrou bem despolitizado. Não só ele, claro. O fenômeno é mundial. No mundo inteiro, jogadores de futebol sempre se mostraram um segmento social despolitizado ou “alienado”, como se dizia. Raríssimos eram jogadores que defendiam posições políticas – especialmente, em termos de esquerda. Uma grande exceção se encontrava no craque alemão Paul Breitner, que chegou a jogar no Real Madrid e se declarava maoista. No caso brasileiro, tivemos um precursor da futura rebeldia futebolística no craque Leônidas, a quem muitos atribuem a invenção da “bicicleta”. Leônidas foi um rebelde, tanto em termos políticos, com suas simpatias pelo comunismo, quanto em termos comportamentais, recusando-se a seguir muitas determinações disciplinares dos cartolas, com o argumento, que, anos mais tarde, ecoaria num Romário, de que “jogador não era escravo”. Em todo caso, depois de tomar conhecimento das atrocidades da ditadura militar, Pelé se recusou a continuar vestindo a camisa da seleção brasileira. Não queria mais ser usado pela ditadura. E sofreu fortes pressões por causa disso, inclusive com ameaças de esquadrinhar suas declarações de renda, em busca de irregularidades. Mas ele se manteve firme – sempre foi, aliás, uma pessoa muito corajosa, em todos os planos. Recusou-se a disputar o “Mundialito” e a Copa do Mundo de 1974, quando estava em perfeitas condições físicas de participar de ambos os torneios. 

A frase “O povo não sabe votar” foi atribuída a Pelé e gerou confusão. Ela foi forjada por jornalistas, como Pelé afirma?

Não sei, mas pode ter sido. Admitamos, no entanto, que ele, de fato, tenha dito isso. Nunca foi o único a pensar assim, muito pelo contrário. No Brasil – tanto à esquerda, quanto à direita – muitos pensaram e disseram a mesmíssima coisa, sem um milésimo da repercussão negativa que a frase de Pelé teve. O problema, no caso de Pelé, foi a conjuntura em que a declaração pipocou. Naquele momento, a oposição de massas ao regime militar reivindicava a realização de eleições diretas para o cargo de presidente da República. Foi o momento da campanha “diretas-já”. E Pelé entrou com tudo na contramão, furando o sinal vermelho. O velho Ulysses Guimarães ergueu-se então e saiu em defesa de um povo brasileiro supostamente ultrajado pelo rei do futebol. No entanto, a esquerda brasileira, desde, pelo menos, a fundação do PCB, na década de 1920, sempre afirmou que o povo não sabia votar. Era um princípio não só da ação e da ideologia de nossas esquerdas, mas também um ponto teórico mais amplo: as massas, exploradas economicamente e dominadas ideologicamente, não tinham como saber votar; faltava-lhes “consciência política”; eram “alienadas”. Na outra ponta do espectro político, a direita pensava a mesmíssima coisa. Para um grande partido da direita pré-1964, a UDN, União Democrática Nacional, o povo seria sempre presa fácil do populismo, daí a necessidade de tutelá-lo, fosse através de mecanismos jurídico-políticos, fosse através da intervenção militar, como no caso do golpe que derrubou João Goulart. O próprio MDB, liderado por Ulysses Guimarães, não pensava em outra coisa. Era contra a intervenção militar, mas também acreditava que o povo não sabia votar. Em sua luta contra o regime militar, o MDB ganhava expressivas votações nas maiores cidades do Sul e do centro-sul do país, mas perdia sempre em cidades médias e menores do Nordeste, por exemplo. Daí, estigmatizava o voto nordestino. O Nordeste não sabia votar. (Para a esquerda, o povo só “sabe votar” quando vota na esquerda). Em todos esses casos, o que se tem é uma visão elitista do voto. Curiosamente, sempre que perdeu eleições em São Paulo, o PT culpou os segmentos menos pobres da classe trabalhadora paulista, dizendo que eles não sabiam votar – e mesmo chegando ao extremo da ex-filósofa Marilena Chauí dizendo “odiar” a classe média. Enfim, de uma ponta a outra do espectro político brasileiro, sempre encontramos partidos, grupos e personalidades que afirmaram que o povo não sabe votar. Só Pelé não poderia pensar e dizer isso?

Você acha que Garrincha não conseguiu mostrar o seu melhor ou não tinha, ao contrário do que muitos pregam, o talento de Pelé?

Não penso, nunca pensei assim. O espetacular Garrincha, que Pelé considerava o maior jogador com quem jogou (contra ou a favor), sempre mostrou o seu melhor. Foi sensacional incontáveis vezes, jogando tanto pelo seu Botafogo, quanto pela seleção brasileira de futebol. Garrincha foi, simplesmente, inacreditável quando entrou em campo pela primeira vez, na Copa da Suécia, e infernizou a vida dos russos. Foi a maior estrela da Copa de 1962, no Chile, desmontando, e mesmo desmoralizando, sistemas defensivos adversários. Enfim, temos exemplos e mais exemplos de desempenhos supremos de Garrincha. Agora, Pelé não é termo de comparação. Pelé sempre esteve acima de todos.

Você acha que, em pleno século 21, o futebol e a música ainda continuam sendo o caminho de saída e ascensão para jovens negros, mestiços e brancos pobres? 

É certo que não são os únicos caminhos, mas permanecem sendo os principais. A população pobre brasileira, composta de gente de todas as cores, poderia melhorar significativamente de vida se tivéssemos investimentos maciços para liquidar a carência habitacional e instaurar um novo e elevado padrão educacional no país. Mas isto não está sendo feito. Não deveríamos permitir a existência de imóveis ociosos, quando uma multidão de brasileiros não tem onde se abrigar. Nem deveríamos construir hoje as favelas de amanhã, que é o que faz o programa Minha Casa, Minha Vida, com moradias distantes e de baixa qualidade. De outra parte, quando falo de investimento em educação, não penso na proliferação irresponsável e ornamental de universidades, mas em coisas que, de fato, preparem as pessoas para a vida. Investimentos em ensino básico e em ensino técnico, principalmente. Um diploma universitário possui, para as nossas classes populares, alto valor simbólico – mas o seu valor prático está mais para o insignificante. Não ajuda ninguém a, realmente, melhorar de vida. Então, a música (a arte, de um modo geral) e o futebol (o esporte, de um modo geral) continuam sendo os grandes caminhos.

Na atualidade, qual jogador tem um talento próximo de Pelé?

Já disse que, do meu ponto de vista, Pelé não é termo de comparação. Dos que vi jogar, depois dele, bem depois, vem (Johan) Cruyff, o craque do célebre carrossel holandês. Aliás, o próprio Cruyff, quando o compararam a Pelé, foi definitivo: “Posso ser um novo Di Stéfano, mas não posso ser um novo Pelé. Pelé é o único que ultrapassa os limites da lógica”.

No livro, você pontua a radicalidade do movimento da esquerda woke. No Brasil não se pode mais falar “mulata”, “escravo”, “índio”, entre outros termos. Também reclama que não é possível elogiar uma mulher bonita, sem ser taxado de assediador. Você próprio foi alvo de perseguição, críticas e cancelamento pelas suas posições. Como conseguir dosar esse radicalismo que invadiu o Brasil?

É claro que se pode falar mulato, escravo etc. Não entendo como as pessoas conseguem ser tão conformistas diante desse quadro: um grupelho de militantes decide mudar a língua brasileira e os cordeirinhos aceitam a imposição? É inconcebível. Lutei contra uma ditadura militar poderosa e vou aceitar uma ditadura linguística de grupinhos insignificantes? Não dá pra entender esta súbita covardia da parte mais letrada e “de esquerda” da população. Ainda mais que o grupelho militante se caracteriza pela mais absoluta ignorância linguística – e, também em decorrência disso, muda de ideia como troca de roupa. Meses atrás, execravam a palavra “favela”, por exemplo. Comecei um de meus ensaios, aliás, falando disso – negando-me a arquivar a bela palavra brasileira “favela”, para, em seu lugar, empregar uma palavra do latim, impregnada de semântica católica: “comunidade”. Até porque “favela” e “comunidade” são palavras que, em alguns contextos, são antônimas.  As pessoas que querem mutilar a língua portuguesa mestiça do Brasil não representam nada, nem ninguém. Fazem de conta que falam por minorias oprimidas, mas as tais minorias nunca as escolheram como seus representantes. Ninguém os elegeu. Eles é que se arvoram a falar como se tivessem sido escolhidos. Na verdade, como disse o antropólogo Peter Fry, são “representantes” sem representados. E me impressiona muito ver a frouxidão das pessoas aceitando a imposição de tantos tabus linguísticos insustentáveis e, na maioria dos casos, ridículos. É interessante ver que eles se montam num tripé. Numa das pernas, propõem palavras inexistentes, como “todes”. O povão permanece completamente indiferente a isso. A passagem de “vosmecê” a “cê” é um processo de séculos... E não há razão linguística (só ideológica) para o “todes”. Então, isso não vinga. A outra perna do tripé está no circunlóquio, no torneio frásico destinado a edulcorar a realidade do mundo. E aqui sempre me lembro de uma personagem do romance Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, um psiquiatra que não empregava a expressão “loucura”, substituindo-a por “falta de senso de proporção”. Isso não resolve nada. É pura “magia nominalista”. Quando você fala de “pessoas em situação de rua”, a realidade cruel da mendicância não desaparece. Já na terceira perna do tripé, eles interditam palavras com base numa interpretação absurda delas. Como no caso de dizer que a palavra “doméstica” (do latim “domus”, significando “casa”) é racista – só falta irem para os aeroportos do país carregando cartazes em protesto contra a expressão “desembarque doméstico”. E como é que tem gente que aceita isso? É muita covardia. Agora, a questão não é “dosar” o identitarismo woke: é destruí-lo.

Você sempre teve uma relação próxima com os terreiros baianos. Essa radicalização chegou ao candomblé? Sua relação com eles continua a mesma de décadas atrás?

Os movimentos negros se condenam ao fracasso no Brasil por uma dupla estupidez. Num país maioritariamente mestiço, declararam guerra à mestiçagem. E, num país maioritariamente cristão, declararam guerra ao cristianismo. Não se tocam sequer para a grande lição histórica: o candomblé se afirmou no Brasil porque, pelo menos, desde o século XVII, sempre esteve aberto à sociedade envolvente. E eles pregam o fechamento, embora nunca tenham sido, tradicionalmente, macumbeiros. As primeiras lideranças jovens que conheci, nos movimentos negros da década de 1970, eram quadros vindos do PCdoB e que desprezavam a religião, considerando-a “ópio do povo”. Concordavam com o Glauber Rocha de Barravento, que é um filme ideologicamente anti candomblezeiro. Quanto à minha relação com os terreiros, não é mais a mesma, por diversos motivos. O principal é que as grandes personalidades candomblezeiras com as quais mantive relações de amizade e de alguma cumplicidade no mistério, já se foram para o orum – da ialorixá Cleusa Millet a ministros de Xangô do Axé do Opô Afonjá, como Dorival Caymmi e Vivaldo da Costa Lima. Hoje, não sei se a minha intimidade com os terreiros seria possível, já que a militância neonegra, que, em sua boçalidade universitária, se diz “candomblecista”, instalou um clima de animosidade racial no candomblé. São um bando de mestiços guerreando a mestiçagem. De qualquer modo, é muito boa minha relação com vários filhos e filhas de santo, com terreiros diversos (de caboclo, inclusive) e, aqui em Itaparica, com o Oyá Ladê, hoje dirigido pela ialorixá Neuza. Mas tenho saudades dos bons velhos tempos do candomblé e de suas grandes mães de santo, quando hoje os terreiros estão nas mãos de figuras menores e muitas vezes rendidas ao sectarismo racista dos movimentos negros.