O esforço e a coragem de se aproximar de um poeta como Rimbaud são os mesmos de se aproximar da boca do Etna ou do Vesúvio. Pode ver, e ser engolido, cegar ou virar fogueira. Weydson Barros Leal é mais do que um dos melhores intérpretes de Arthur Rimbaud no Brasil. Virtuoso do poema em prosa. Além de poeta, é crítico de arte e autor de peças de teatro de sucesso, como Caetana (indicada ao Prêmio Shell). Em 2012 foi o vencedor do Prêmio Jabuti pelo livro que escreveu sobre o artista Abelardo da Hora. Ele publicou, entre outros livros, O Aedo, Os círculos imprecisos, Os ritmos do fogo, A quarta cruz, Os dias e Ópera jazz. Nesta entrevista exclusiva, ele discorre sobre os principais aspectos da vida e da obra de Rimbaud, esclarece pontos obscuros e indica os livros que, na sua opinião, são os melhores a respeito do autor de Une saison en enfer.
Por que tendo escrito tão poucos livros é tão forte a presença de Rimbaud, quase 170 anos após o seu nascimento?
Os leitores de Rimbaud são como uma irmandade em torno de uma fogueira, uma confraria de outra compreensão. Mas se alguém foi tocado por Rimbaud, este alguém se aproximou da poesia. Talvez seja essa uma possibilidade de resposta ou uma aproximação. Acredito que a leitura de Rimbaud não se processa apenas no ato de ler e compreender palavras, pois se trata de uma experiência de amplificação da sensibilidade, reveladora de outra coisa que também é vida, mas está além da vida. Um tipo de transcendência. Depois de Rimbaud, só experimentei mergulhos dessa profundidade em Proust e Dostoiévski. Em Rimbaud a coisa se dá de maneira concentrada, porque a poesia é uma cápsula, uma agulha na veia. A visão de algo que está fora do real, mas que revela o real de forma avassaladora e às vezes cruel, porque é um real interior, que está ali, mas necessita ser acordado, precisa de um guia para ser visto. Rimbaud, Proust e Dostoiévski são como guias, como um Dante que te leva ao inferno e ao paraíso, algo que conduz a travessia. De qualquer maneira, é preciso certa preparação para isso. Lembro que em 1992 participei de seminários e eventos ainda sobre o centenário da morte do poeta e num desses eventos um estudante da universidade veio falar comigo: “Quero começar a ler poesia, você poderia me indicar algum livro de Rimbaud?” Achei a pergunta tão honesta e inocente que disse: “Não leia Rimbaud sem antes ter lido muita poesia. Você pode estragar uma experiência”.
Você se lembra em que momento descobriu a obra do poeta e como começou a admirá-lo?
Não há como demarcar claramente onde começa e termina a presença de Rimbaud num poeta ou em qualquer artista. Existe um princípio deflagrador, como duas pedras e uma pólvora. O próprio Rimbaud teve seu começo explosivo provavelmente na leitura de Baudelaire, na convivência com Verlaine, com Germain Nouveau, seja na visão da poesia ou na forma do poema em prosa que ele elevou à potência máxima. Até os meus 18 anos, por volta de 1981, eu conhecia Rimbaud pelo nome, por citações, mas eu ainda estava mergulhado na poesia brasileira, onde há muito dele, claro. Bandeira, Cabral e Drummond já o citavam. Eu havia morado nos Estados Unidos em 1979 e tinha lido Whitman na escola, leitura obrigatória, uma primeira explosão. Já no Brasil, comprei a tradução de Lêdo Ivo, em 1981 ou 1982, não lembro exatamente, e guardei. Nunca tinha tempo, havia a faculdade, o trabalho. Em 1983 ou 1984, um amigo-poeta ainda mais jovem que eu, mas que conhecia muito mais poesia do que eu, começou a me dizer insistentemente: “Você precisa ler Rimbaud, quando você ler isso você vai ver outra coisa”. Foi premonitório. Tudo que eu sabia de poesia mudou radicalmente depois daquela primeira leitura. E não apenas a poesia, mas a minha vida passou a ser a.R. e d.R. (antes de Rimbaud e depois de Rimbaud.)
Consta que muito jovem ainda você foi conhecer a cidade onde nasceu Rimbaud e os seus vestígios em Paris. O que restou na memória e nos seus registros pessoais desses “encontros”?
Em 1991, ano do centenário de morte do poeta, decidi ir a Paris e percorrer lugares por onde ele teria passado na cidade, ir até Charleville, participar de algumas comemorações, visitar a tumba, algo que ele teria detestado, ou agradeceria com elevado desdém. Enfim, participar dessas coisas de efemérides. Aluguei um quarto em Paris por três meses na casa de uma velhinha estranhíssima, cujo filho, que a visitava uma vez por semana, sabia o “Bateau ivre” de memória, aquilo me impressionou muito. Para viabilizar meu visto, eu havia me matriculado em um curso de francês, na Passage Dauphine, no coração do Quartier Latin, uma ruazinha por onde Rimbaud provavelmente passara naqueles anos loucos do século XIX. Comecei a buscar tudo sobre os eventos, onde aconteceriam, quando… A internet não existia ou era primitiva, nada parecido com o que há hoje, havia pouquíssimos computadores nas bibliotecas. Mas havia jornais, revistas literárias, filmes no cinema sobre Rimbaud. Lembro que, desde os meus primeiros dias em Paris, vasculhei a lista telefônica — coisa que não existe mais — procurando alguém com o sobrenome Rimbaud. Não havia mais o nome nas listas, mas variações de “Ribaud” (sic) ou coisa assim. Em novembro, mês da morte, eu estava pronto para ir a Charleville. Saí de Paris numa madrugada chuvosa no primeiro trem do dia, Paris-Charleville, que partia da Gare du Nord. Em Charleville fui visitar os endereços que eu conhecia de livros e biografias, a casa onde morou, na frente do Rio Meuse, ali onde escreveu o “Bateau ivre”; o moinho, que virou Museu Rimbaud; a biblioteca e, claro, o cemitério e o túmulo. Tudo na cidade tem o nome dele, até a principal livraria. Fui então à prefeitura da cidade, setor de informações turísticas e culturais perguntar sobre familiares, essas coisas. A atendente já ouvia a pergunta aborrecida e dizia: “Não tem mais ninguém da família na cidade, monsieur”. Era engraçado ouvi-la responder isso como se falasse de familiares de um extraterrestre. Muito simpática a moça, não sei como aguentava aquilo. Rimbaud teria jogado um tinteiro ou uma cadeira pela janela e mandado todo mundo pro inferno. Além disso, Charleville é a monotonia em forma de estátua, busto, placas, ruas, um rio, a Praça Ducalle ou praça central — o que os espanhóis chamam de Plaza Mayor — e o nome Rimbaud por todo lado. A cidade é minúscula, insuportável por mais de 24h. Indo até lá, entende-se um “princípio” de Rimbaud, o tédio e o incômodo que sentia. Talvez nunca se entenda completamente, mas ali nos aproximamos um pouco ao identificarmos nosso próprio incômodo. Acho que reverenciar é uma forma de se ver no outro, ou de homenagem, mas não necessariamente de sermos o reflexo. Um espelho é outra coisa, é o inverso de nós, e nós estamos sempre do lado de fora.
De todos os textos que já leu sobre Rimbaud, quais considera que sejam os melhores para conhecer a vida e a obra do poeta?
Acredito já ter lido uma parte importante da bibliografia sobre Rimbaud, pelo menos em francês, espanhol, inglês e português. Claro que é fundamental começar pela poesia, se possível no original ou em edições bilíngues. No Brasil, há a tradução de Lêdo Ivo, apenas dos poemas em prosa, e a tradução da obra completa feita por Ivo Barroso, em edição bilíngue, em três volumes que incluem cartas, poesia inicial, poemas em versos, a fundamental poesia em prosa, tudo. O trabalho de Ivo Barroso, além da qualidade do tradutor, é uma prova de amor à poesia: um trabalho hercúleo e de valor imensurável. Quando estudamos um autor, o que interessa é o que está escrito; no caso de um pintor, o que foi pintado; de um músico, o que foi composto, e assim por diante, ainda que tudo, na biografia, seja importante para alguns entendimentos. Especificamente sobre estudos e biografias que conheço até o momento, excetuando-se teses universitárias sobre aspectos específicos da obra, considero a biografia de Enid Starkie um bom começo. No entanto, como biografia geral que conseguiu se aprofundar em questões nunca antes tocadas e até evitadas por biógrafos mais comedidos, acho a biografia de Graham Robb indiscutivelmente mais visceral, a minha preferida. Há dois livros específicos sobre o período africano que são interessantes: Rimbaud na Abissínia, de Alain Borer, e Rimbaud na África, de Charles Nicholl. Bem, na área de estudos sobre temas e personagens especiais na vida de Rimbaud, incluindo um ensaio sobre a relação com a mãe, não conheço nada superior ao livro Notre besoin de Rimbaud, de Yves Bonnefoy. E se eu pudesse dizer de um espanto pessoal, este seria o fato de nunca as biografias de Starkie, de Graham Robb ou o livro de Bonnefoy terem sido traduzidos ou publicados no Brasil, pelo menos que eu saiba. Isso, para mim, é inexplicável. Em princípio eu admiro e respeito todos os tradutores e analistas de Rimbaud. Desde 1987, li dezenas de estudos e traduções para o português brasileiro, de Portugal, para o espanhol, inglês, dos mais profundos aos mais superficiais, os que se aproximaram muito e os que se desviaram propositalmente, como no caso de Uma cerveja no inferno, tradução portuguesa de Une saison en enfer, que ficou divertido. Algumas polêmicas são aparentemente intermináveis, como a datação dos poemas de Une saison e das Illuminations. O esforço e a coragem de se aproximar de um poeta como Rimbaud são os mesmos de se aproximar da boca do Etna ou do Vesúvio. Você pode ver, mas pode ser engolido, pode cegar ou virar fogueira, é tudo ou nada.
Você estabelece alguma “hierarquia” entre o Rimbaud autor de poemas versificados e o dos poemas em prosa Une saison en enfer e Illuminations?
São degraus de uma mesma escada, e numa escada os primeiros degraus são tão importantes quanto os últimos, ainda que dos últimos a visão seja de maior amplitude. Nos primeiros poemas, ainda em verso metrificado, já há indícios dessas amplitudes absolutas, imagens estranhas, metáforas inóspitas, temas e enredos que buscam aquela amplificação, como no caso do “Bateau ivre”. Já nos poemas da Saison, a vertente primordial é biográfica, quase um testamento de premonição, transmutada em uma chave completamente nova para a poesia. A chegada aos poemas das Iluminações — ainda que alguns tenham sido escritos antes e durante a escrita da Saison — alcança espaços incontornáveis, não há como seguir adiante depois daquilo ou retornar a um outro caminho. A genialidade de Rimbaud reside no autoconhecimento — que é um profundo conhecimento da poesia — que se revela na consciência de que, a partir dali, não haveria mais o que dizer, a partir dali só uma vida no limite poderia ser uma forma de continuação de uma poesia que chegou ao limite. Não é à toa que Rimbaud inspirou todas as vertentes da arte transgressora do século XX e continuará transgredindo nos séculos à frente. Desde a pintura e a literatura ditas eruditas até o grafitti e o rock. Basta conhecer Jim Morrison, Janis Joplin, Bob Dylan, Lou Reed, Patti Smith, The Cure, até o punk rock do Sex Pistols e do The Clash, tudo passa por Rimbaud. Nos Estados Unidos, toda geração Beat é uma consequência de Rimbaud — Ginsberg é o irmão mais próximo de Rimbaud e mais próximo de nós. No Brasil, não existiriam Renato Russo nem Cazuza sem Rimbaud, que está vigorosamente em ambos.
Se fosse escolher aspectos da vida e ou da obra do poeta como os mais singulares e relevantes quais citaria?
Acho que não podemos especificar ou hierarquizar todos os componentes que agem sobre uma hipersensibilidade. No caso de Rimbaud, os mais evidentes e conhecidos seriam a ausência da figura paterna, a opressão da figura materna, a disciplina sufocante da escola, e principalmente, as primeiras leituras e amigos, que serviam como portas e janelas de saída de emergência. Depois, a sequência é clara: Paris, Verlaine, guerra, viagens. Mas boa parte disso também agia sobre a vida de milhares de meninos e adolescentes da época, e só há um Rimbaud. Ou seja, o rio é caudaloso, o meio age sobre o homem, mas é preciso saber encontrar a pedra que está rolando nesse leito e que a correnteza está lapidando. O que se entende como a “fuga” de Rimbaud, desde a primeira saída de Charleville até sua última saída da África, precisa ser analisado como um dos lados da coisa. Suas estadias em Paris durante o período da Comuna, das barricadas, do exército prussiano instalado em Mezières, pertíssimo das terras da família, as viagens a Bruxelas e a Londres, tudo isso são estações no inferno ou iluminações. Os efeitos são imensos numa sensibilidade como a dele, e se reflete na poesia, como é o caso do poema “Le dormeur du val”, escrito em 1870, provavelmente antes de completar os 16 anos, que retrata, ao que parece, um soldado morto, visto por ele perto de Charleville — embora haja divergências entre os analistas. Rimbaud procurava evadir-se do mundo como de algo que o incomodava quando estava muito perto dele, e quanto mais fugia, fosse de Charleville, Paris, Bruxelas, Londres, Alemanha, Itália ou África, sempre estava em fuga de algo menor do que ele: o lugar era sempre menor do que a busca. O bem-estar era menor, o inferno era menor, e a poesia foi um caminho conhecido, mas abandonado. E não apenas Charleville era provinciana, ele percebeu. Bruxelas se tornou pequena, Londres ficou pequena, Paris se tornou insuportável com seus grupos literários, seus poetas comezinhos e suas guerrilhas políticas mais perigosas do que as barricadas. Rimbaud descobriu que o lugar provinciano estava em todo lugar. Por isso a aventura, a quebra radical de normas e convenções. Isso era evadir-se, encontrar um mundo palpável no desconhecido — finalmente na África —, o que seria impossível nas cidades por onde havia passado. Há uma mística em torno de Rimbaud devido principalmente ao abandono da poesia e sua experiência na África. Mas, todos sabemos: mesmo se ele tivesse morrido aos 21 anos, logo após ter parado de escrever, mesmo se nunca tivesse pisado na África, sua obra continuaria sendo um milagre da poesia.
Poderia escolher as frases que mais lhe causam impacto e emoção entre as tantas de Une saison en enfer?
Sabemos que é quase uma blasfêmia escolher versos ou imagens de uma obra tão breve e que tem sua potência em seu conjunto. Assim é com toda obra poética. Porque há um espanto a cada passo da descida e ascensão do inferno rimbaudiano. Coisas como “a honradez da mendicância me exaspera”; “sinto-me de tal modo abandonado que ofereço, a não importa que divina imagem, impulsos para a perfeição”; “a vida é uma farsa que todos devem representar”; “acabei achando sagrada a desordem do meu espírito”; “eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível, fixava vertigens.”; “em cada ser, muitas outras vidas me pareciam devidas”; “o combate espiritual é tão brutal quanto a batalha entre os homens”; “devemos ser totalmente modernos”. Uma citação justa precisaria citar tudo. De qualquer maneira, uma questão ainda debatida na ensaística e em teses sobre Rimbaud é sua relação com a religião, que está presente no próprio tema do inferno, no arraigado catolicismo absorvido na infância e que se reflete no irônico satanismo dos poemas da Saison. Para os que condenam em Rimbaud esse “satanismo” é preciso lembrar que ele escreveu o mais belo poema já publicado sobre a figura do Cristo — Gênio, último poema das Iluminações — e que encerra a sua poesia.