Camões não era e não se queria anjo nem intemporal

A presença de Camões no Brasil pode ser avaliada desde logo pelas muitas edições e pelos estudos numerosíssimos que já mereceu

Há mais de Camões na poesia brasileira do que pode imaginar a nossa vã filosofia, ensina o professor e ensaísta português Arnaldo Saraiva, 85 anos, para quem um poema é o combustível por trás das engrenagens de uma máquina subversiva. Apaixonado pela literatura brasileira e por cordéis – dono de uma coleção com centenas de títulos – o pesquisador orientado por Roland Barthes em Paris e antigo dirigente do Boavista FC no Porto não foge da marca do pênalti: Camões, com sua destreza verbal, alta cultura e sensibilidade requintada, soube tirar o melhor da língua portuguesa nos dois lados do Atlântico.

É possível estabelecer uma influência da poesia de Camões no que viria a ser a poesia brasileira?
— 
O poeta e crítico Tasso da Silveira escreveu em 1964 no seu livro Literatura Comparada: “Há superabundantemente Camões em nossa poesia”. E outro poeta e crítico, que como aquele esteve ligado ao Modernismo, Cassiano Ricardo, falou, no seu livro Poesia Práxis e 22, na “avassaladora influência” de Camões na lírica e na língua do Brasil. Juízos como estes não escaparam a Gilberto Mendonça Teles, autor dos livros Camões e a Poesia Brasileira, que já conta 5 edições, e O mito camoniano; nestes livros ele prova bem a razão daqueles juízos, mostrando que, desde Bento Teixeira ou do seu poema Prosopopeia, “bastante decalcado em Os Lusíadas”, até contemporâneos desde Drummond a Leila Mícolis, Camões está presente em quase todos os poetas brasileiros (como aliás em quase todos os poetas portugueses e até em poetas de outros países lusógrafos). Mas não esqueçamos que também está presente em muita prosa, e não só da crítica, também da ficção, da crônica e do teatro. 

E também na língua portuguesa no Brasil?
— 
A influência, a imitação, mesmo paródica, a citação, a recepção, a intertextualidade camoniana pode ver-se em elementos que dizem respeito ao gênero, sobretudo ao lírico e ao épico, à espécie ou à forma, como o soneto e o vilancete, ao tema, como o amor e a desventura, a um episódio, como o do “Adamastor”, do “Velho do Restelo”, da “Ilha dos Amores” ou de “Pedro e Inês”; e pode ver-se nalgum tipo de sintaxe, de rima ou de métrica, sobretudo a decassilábica, na simples referência ao título Os Lusíadas ou ao nome e à personalidade imaginária (e mesmo pícara, como em folhetos de cordel) de Camões, no uso de alguma palavra, até arcaica (dina, sôbolos, giolhos), e na invocação de um verso ou de parte de uma estrofe: “As armas e os barões assinalados”, “Por mares nunca dantes navegados”, “Se a tanto me ajudar o engenho e arte”, “Cesse tudo o que a musa antiga canta”, “não mais, canção, não mais”, “Amor é fogo que arde sem se ver”, “Erros meus, má-fortuna, amor ardente”, “para tão longo amor tão curta a vida”, “um bicho da terra tão pequeno”..... Não seria grande exagero dizer que quase todos os falantes e escreventes em língua portuguesa devem alguma coisa a Camões.

Há o interesse da academia brasileira também por Camões?
— 
A presença de Camões no Brasil pode ser avaliada desde logo pelas muitas edições e pelos estudos numerosíssimos que já mereceu a ensaístas como Afrânio Peixoto, Osvaldo Orico, Emmanuel Pereira Filho, Leodegário Azevedo Filho, o já referido Gilberto Mendonça Teles; mas poderia referir muitos outros nomes, até de pernambucanos como Joaquim Nabuco, cuja obra Camões e Os Lusíadas foi, em 2022 (em boa hora), reeditada pela Fundação que tem o seu nome, por iniciativa de António Campos e de Mário Hélio (eu tive a sorte de encontrar há anos num sebo a primeira edição do livro, com uma dedicatória do autor a Arthur Corrêa, datada de Petrópolis, verão de 1873), Joel Pontes, autor de Camões de Cordel, e Gilberto Freyre, que em 1985 fez questão de me oferecer o último exemplar disponível de Camões: Vocação de Antropólogo Moderno? A presença de que falo também podia ser sugerida, simbolicamente, pelo inventário de uma só década que o camoniano professor Maximiano de Carvalho e Silva fez em 1980, e que intitulou, Estudos Camonianos no Brasil de 1971 a 1980. 

Quais poetas e poemas denunciariam uma inspiração camoniana?
— 
Essa presença torna-se mais relevante em poetas, épicos e líricos, desde o século XVII do já citado Bento Teixeira até o século XX de Jorge de Lima e ao século XXI de Alexei Bueno, que acaba de publicar os magníficos 500 versos de Camões em nós, por nós. Mas há autores brasileiros que por si sós garantem a importância de Camões para a literatura brasileira. Penso desde logo em Machado de Assis e em Drummond. 

Já foi dito que não há livro de Machado que não tenha algum tipo de referência a Camões; e ele, que escreveu a peça Tu, só tu, puro amor, também escreveu quatro sonetos camonianos, num dos quais diz que quando salvou o seu livro, nos “mares aspérrimos”, Camões salvou “língua, história, nação, armas, poesia” (síntese admirável num admirável decassílabo formado com cinco substanciais… substantivos). 

Drummond, autor do poema “Máquina do mundo”, brincou poeticamente com os nomes dele e de Camões, invocando o ensaio que Silviano Santiago dedicou a este poema inspirado desde o título pelo poeta de Os Lusíadas, poeta que definiu como “Luís de ouro” e como “multissexual germinador de assombros”, que lhe mereceu numerosas referências (já assinaladas por Gilberto Mendonça Teles e por Daniel Soares Duarte, que ignorou Gilberto) e dois poemas altamente elogiosos.

Que características da poética de Camões foram mais assimiladas pelos poetas brasileiros?
— 
Creio que até ao Romantismo foi o Camões épico que mais marcou os poetas brasileiros, como Itaparica, Basílio da Gama, Santa Rita Durão e Cláudio Manuel da Costa; a partir do Romantismo nota-se o gradual interesse pelo Camões lírico, não tanto o das canções como o dos sonetos, das cantigas ou dos vilancetes, pelo poeta de estrofes e versos mais curtos e menos altissonantes do que os de Os Lusíadas. No Brasil como em Portugal também é impressionante o número de paródias que já se fizeram de versos – e até de cantos – de Camões.

Seria correto pensar que, ao compor as Endechas a Bárbara Escrava, Camões teria sido uma espécie de precursor do pensamento da igualdade de raças e povos?
— 
Já houve quem apontasse em Os Lusíadas versos ideológica ou politicamente incorretos, que veiculam preconceitos contra muçulmanos e judeus, ou contra inimigos da fé católica e dos portugueses. Mas conviria perguntar se livros tidos como “sagrados”, da Bíblia ao Alcorão, escapam a expressões preconceituosas; conviria lembrar que Camões, com fama de brigão, tinha “de humano o gesto e o peito”, quer dizer, não era nem se queria anjo nem intemporal, vivia num século bem menos civilizado do que o século XXI, e não podia escapar inteiramente a situações delicadas em que se impunha o ponto de vista e a defesa do seu grupo ou da sua comunidade. Mas o juízo “politicamente correto” parecerá incorreto se não assinalar os apelos de Camões à “justa Lei”, o seu sólido e dominante humanismo, a sua visão diríamos democrática do “bicho da terra tão pequeno”, das suas grandezas e (aí está) baixezas, e sobretudo se não atentar na sua exaltação do amor e do poder do amor que, como no poema da “bárbara” (estrangeira) e “cativa” (escrava), é capaz de vencer todos os preconceitos.

Pela importância de Camões na divulgação internacional do português, na sua opinião Camões ainda precisaria ser melhor divulgado e estudado no Brasil?
— 
Uma obra tão perfeita, tão fecunda e tão complexa como a de Camões nunca poderá considerar-se suficientemente decifrada ou estudada, estará sempre a exigir novas análises e a abrir-se a novas significações de que nem Camões poderia suspeitar. Ele que no canto X de Os Lusíadas nomeou a Terra “de Santa Cruz” tem tido nela uma fortuna culta e popular quase igual à que tem em Portugal, tudo levando a crer que continuará a tê-la. O mesmo está a acontecer com Fernando Pessoa, e percebe-se por quê. Em Portugal como no Brasil, mas não só, porque gozam de justa fama internacional, Camões e Pessoa destacam-se obviamente como grandes gênios da língua portuguesa, como escritores que, com a sua destreza verbal, a sua alta cultura, a sua aguda inteligência e a sua requintada sensibilidade, souberam tirar o melhor partido artístico e expressivo dessa nossa língua, souberam impor-se, como disse Alexei Bueno, “em nós, por nós”, traduzindo e sublimando os nossos mundos lusíadas, mas ao mesmo tempo apontando ou dando novos mundos mentais e sentimentais ao mundo.