Retratos da velhice no Brasil

Livro "Uma história da velhice no Brasil", de Mary del Priore, mostra como nossos antepassados lidavam com o envelhecimento e seus estigmas

No livro Uma história da velhice no Brasil a historiadora Mary del Priore esmiúça o papel do velho durante séculos e afirma que, apesar das dificuldades atuais, a Idade Média e o Renascimento foram os anos mais difíceis para os idosos. O que é ser velho no Brasil? Ela chegou à seguinte conclusão. “O marco da velhice muitas vezes vem de fora. Somos classificados como velhos pelo olhar do outro, pela sociedade que valoriza a produtividade e a juventude.” Nesta entrevista à jornalista Danielle Romani, ela comenta os principais tópicos do seu livro e diz qual será o principal tema do mundo nos próximos anos.

Você conta que uma dor no joelho e a história da sua mãe lhe motivaram a escrever este livro. Explique a importância dele para a atualidade.

O livro nasceu de uma dor no joelho e da senescência de minha mãe, mas vai muito além do pessoal. Sua importância está em mostrar que a velhice tem história, e que nossos antepassados lidavam com ela de formas muito diversas. Ao recuperar essas experiências, o livro convida o leitor a refletir sobre os preconceitos atuais e as possibilidades de se envelhecer com mais consciência e dignidade. Em tempos de envelhecimento acelerado da população, trata-se de uma obra urgente.

O que representa envelhecer? Quem estabelece esse conceito?

Envelhecer é inevitável, mas o marco da velhice muitas vezes vem de fora. Somos classificados como velhos pelo olhar do outro, pela sociedade que valoriza a produtividade e a juventude. É também nos afetos que se vão, nos fios de cabelo perdidos, que nós percebemos envelhecendo

Algo surpreendente ou chocante no percurso da sua pesquisa?

Embora eu já percebesse o envelhecimento da minha própria geração, a dos “babies boomers”, me surpreendeu o vigor de muitos idosos no passado, sem acesso a médicos, às farmácias e a livros de autoajuda. Encontrei registros de pessoas com 80 anos ou mais trabalhando com coragem e firmeza, fechando os olhos apenas diante da morte — uma imagem que desafia os estereótipos atuais, em que se afasta a morte, para seguir vivendo doente.

A velhice sempre foi um estigma?

Nem sempre. O século XIX foi um tempo em que a velhice era respeitada. O velho — patriarca, senhor, ancião — detinha poder, sabedoria e comando. Nas famílias e até nas senzalas, sua palavra tinha peso. A relação era vertical, e a autoridade do velho, inquestionável. Era o tempo em que se pedia benção aos mais velhos e não se desafiava jamais a sua opinião ou conselho. Até os jovens queriam parecer mais velhos do que eram, deixando crescer longas barbas, usando óculos, ternos escuros e bengalas.

Você narra no livro que a Idade Média e o Renascimento foram alguns dos piores tempos para envelhecer. O que aconteceu?

Sim. Na Idade Média, o velho era muitas vezes visto como um farrapo humano e amaldiçoado por Deus. Pois viver muito, desafiava a crença de que os “bons”, Ele (Deus) levava cedo para o paraíso. Durava quem era ruim, amparado pelo demônio. No Renascimento, a valorização da juventude e da beleza fez da velhice — associada à feiura — algo odioso. Os conceitos de Belo e Bom se antepunham a Feio e Mau. Foram tempos difíceis para quem vivia muito.

Os portugueses encontram povos indígenas com excelente saúde e longevidade. Fale um pouco disso.

Os povos originários da América viam os anciãos com muito respeito. No Brasil, os indígenas envelheciam com dignidade e força, mantendo um papel ativo nas suas comunidades. Eles se tornaram conselheiros do cacique, curandeiros, mediadores com o Além e os deuses, pajés. A velhice era vista como potência, não como declínio. Só em caso extremo de fome ou peste os velhos eram abandonados para morrer sozinhos. Mas isso era costume geral em qualquer parte do mundo, e foi aqui também.

A velhice sempre foi vista como mais cruel para as mulheres?

Infelizmente, sim. Enquanto os homens velhos indígenas eram admirados por sua força física e longevidade, as mulheres idosas eram alvo de desconfiança. Entre os europeus, nas gravuras e pinturas do século XVI, a índia canibal, roedora de ossos humanos, à volta do caldeirão, descabelada e embrutecida foi associada à feitiçaria. Ela ajudou a moldar a figura da “bruxa” — um estigma que a perseguição inquisitorial tornou mortal.

A Inquisição perseguia as mulheres idosas?

Há registros de mulheres idosas perseguidas e condenadas por bruxaria. Embora seja um erro se falar em matanças coletivas como ocorreu em outras partes da Europa, a Inquisição atuou no Brasil e em Portugal com rigor. Muitas vezes com base em denúncias frágeis, dirigidas a mulheres pobres e velhas que eram curandeiras, benzedeiras, parteiras, fabricantes de filtros amorosos e que ocupavam o lugar de médicos nas suas comunidades.

Quais foram as principais mudanças no século XIX?

Na segunda metade do século XIX, com a chegada dos imigrantes e as leis abolicionistas (como a que libertava escravizados com mais de 60 anos), o cenário mudou. Mas a “liberdade” para os velhos libertos era precária. Muitos preferiam continuar trabalhando como empregados para seus senhores enquanto os filhos partiam para trabalhar nos centros urbanos. Entre os imigrantes se reproduzia o respeito aos mais velhos como detentores de saberes e experiência. Já no início do século XX, se assistiu ao início das discussões sobre previdência, novas configurações familiares e a presença dos idosos nos centros urbanos.

O que aconteceu com a criação da aposentadoria?

A criação da aposentadoria garantiu uma renda mínima, ainda que modesta, e simbolizou uma nova fase: o reconhecimento do direito ao descanso após anos de trabalho. A luta por sua criação nasceu entre ferroviários cujas greves paralisaram o Brasil nos anos seguintes . Foi um marco na institucionalização da proteção à velhice no Brasil . Antes esquecidos dentro de casa, velhos aposentados passaram a se reunir em clubes, sindicatos, bairros, praças, etc. A sociabilidade entre eles mostrou à sociedade que eles existiam. E na Constituinte de 1988, voltaram à cena brigando por mais direitos.

O baby boom, no pós guerra, provocou ainda mais a exclusão da velhice. Como isso repercutiu?

O pós-guerra celebrou a juventude, a inovação e a ruptura cultural. Nesse processo, a velhice foi empurrada para os bastidores. A cultura da imagem descartou os velhos, reforçando preconceitos e idealizando um corpo eternamente jovem. Com filhos e netos fora de casa, e diante da televisão, aliás, sua melhor cuidadora, ele passou a se sentir um fardo.

Sim, o boom cultural pós-guerra ajudou a tornar a velhice invisível. A idolatria da juventude nas telas de cinema e televisão, na mídia falada e escrita criou uma cultura que rejeita a decadência física e marginaliza o velho como alguém “fora do tempo”. “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”, cantavam os irmãos Valle nos anos 1980. Palavras como “véio gagá”, “véio babão”, “véia coroca” surgem na esteira da chegada ao Brasil dos planos de saúde, da indústria farmacêutica, da indústria do turismo, do lazer e do consumo que vão consolidar a “economia prateada”. De “idoso” passou-se a “velho consumidor”. Hoje, em qualquer idade ou classe social, o lema pode ser: “consumo, logo existo”.

A riqueza garante bem-estar?

Mesmo com patrimônio garantido pela aposentadoria, muitos idosos enfrentam abandono, depressão e violência familiar. A propaganda e o mercado voltam-se aos ricos, mas estes também sofrem, sobretudo quando não têm vínculos familiares fortes ou acesso à inclusão digital. Em ambos os casos, prospera a solidão, o sentimento de abandono e a depressão. Esse é o retrato de muitas famílias brasileiras.

As tecnologias para rejuvenescer são válidas?

A literatura feminina dos anos 70 e 80 enfoca o desespero da mulher que não quer envelhecer. Isto porque mudanças tinham ocorrido. O divórcio fora aprovado, a pílula anticoncepcional chegou ao Brasil; as mulheres estavam se formando nas universidades e não queriam perder o bonde da história. A cirurgia plástica foi uma resposta para seguir apresentável no trabalho ou no mercado conjugal. Pessoalmente sou a favor do direito individual de cada um fazer escolhas sobre seu corpo. Embora a sociedade critique os procedimentos estéticos e suas tecnologias, elas podem representar autonomia e desejo de continuar presente no mundo — desde que não se tornem imposições ou mascaramentos do que se é.

O envelhecimento da população brasileira exige atenção. O que pode ser feito?

Como diz o economista José Pastore, “o Brasil ficou velho antes de ficar rico”. Novas leis terão que legislar em favor de um aumento na idade para a aposentadoria, como já está acontecendo no resto do mundo. Há muitos velhos e poucos jovens que os sustentem. O problema não é ideológico nem político. É demográfico.

Com o país envelhecido, o que precisa ser discutido?

Um tema que arrepia muitos: a morte assistida. Lembro, porém, que refletir sobre o fim da vida é um gesto de cuidado. Ajuda a evitar que pessoas próximas tenham de tomar decisões difíceis em momentos delicados, garante o respeito às últimas vontades e permite que o próprio paciente e sua família se preparem melhor para a morte. Ao considerar opções como os cuidados paliativos, é possível evitar intervenções médicas excessivas e focar na dignidade e no conforto nos últimos momentos de vida. O Estado precisa começar a pensar em soluções, mas a sociedade precisa se conscientizar também. Países na Europa, América Latina e vários estados americanos já propõem uma legislação para que os velhos tenham liberdade de escolher como desejam terminar suas vidas. Este será o tema dos próximos anos.

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