O iPhone de Isabel Lucas há 703 entrevistas gravadas com escritores. Um telefone que a acompanha há meros três anos, o que dá a dimensão do número de entrevistados que a jornalista portuguesa teve pela frente nas últimas três décadas de profissão, desde os tempos do “gravador daqueles com fita cassete”, depois o digital, passando pelos smartphones até as videochamadas, recurso forçado pelo distanciamento social durante a pandemia, mas ao que parece, veio para ficar.
Uma ínfima, mas significante fração desses encontros agora está a disposição dos leitores – no Brasil, por enquanto apenas na versão digital – nas páginas de Conversas com escritores (Companhia das Letras Portugal), a compilação de 17 entrevistas, a maioria publicadas no Ípsilon, o suplemento literário semanal do jornal O Público, e também na revista Ler, com nomes como Elena Ferrante, Paul Auster, Salman Rushdie, Patti Smith, Enrique Vila-Matas, entre outros pesos-pesados da literatura mundial.
Nenhum deles em língua portuguesa, o que Isabel Lucas explica acontecerá numa segunda versão das suas Conversas, prometida para breve, desta vez apenas com autores lusófonos.
Lançado em outubro, esse primeiro volume logo conquistou o interesse dos leitores não apenas pelo teor das entrevistas, mas também por funcionar como uma espécie de “manual para entrevistadores”, com direito a um didático prólogo escrito pela autora sobre o ofício de entrevistar, e ainda por algumas dessas entrevistas ilustrarem esses desafios, como a mediação por uma tradutora, no caso da russa Ludmila Ulitskaya, ou o pior pesadelo de qualquer jornalista: perceber ao chegar no jornal que a entrevista não foi gravada, como aconteceu na conversa com o norte-americano Edmund White.
Embora rejeite o status de maior crítica literária portuguesa na atualidade, o trabalho e a rotina profissional de Isabel Lucas desmentem a modéstia. Para além da contribuição regular nos já citados O Público e Ler, Isabel Lucas é frequentemente requisitada para apresentação de livros e para participar de festivais literários, uma tradição portuguesa espantosa para um país pequeno, com as dimensões do estado de Pernambuco, que conta com cerca de três dezenas de eventos anuais à volta dos livros.
Para dar conta da agenda da jornalista, a conversa com Isabel Lucas aconteceu entre dois desses festivais, num espaço de uma semana: o primeiro deles, o Folio, Festival Internacional de Literatura de Óbidos, o mais charmoso evento literário português, que durante duas semanas encerra leitores e autores dentro de uma muralha medieval, onde a entrevistadora acabou no papel de entrevistada pelo escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez; o segundo, no mais novo festival literário português, o Palavrio, como nome indica, a junção de “palavra” e “rio”, realizado no mítico bairro lisboeta de Alfama, às margens do Tejo e ao som do fado.
Os escritores escolhidos para o livro estão todos na sua mesa de cabeceira?
— Esse foi um dos critérios para entrar no livro: o de serem autores que eu leio e gosto de ler. Uns já gostei mais, outros continuo a gostar muito, alguns tiveram presentes numa fase muito determinante na minha vida. Não estão no livro apenas por serem boas entrevistas, mas porque a entrevista acaba por dizer mais do autor do que a mera conversa sobre um tópico e que nos ajuda a pensar melhor quem é aquela pessoa.
Centenas de entrevistas e três décadas de jornalismo depois, ainda sente um frio na barriga em estar frente a frente com um autor que admira?
— Claro que ainda sinto um frio na barriga. Vou sempre nervosa seja para qual entrevista for e não tem nada a ver com o status do entrevistado, se é um Salman Rushdie ou um autor desconhecido. Em ambas as situações, fico sempre nervosa. O frio na barriga surge muitas vezes por achar que posso não estar à altura para ter uma boa conversa com o entrevistado para passá-la ao leitor, de estar malpreparada e desperdiçar uma conversa que acabam por ser únicas e não se repetem.
E como faz para estar bem-preparada para uma entrevista?
— Depende do tempo que tenho, pois às vezes, por conta da agenda do escritor, as entrevistas acontecem com muito pouca antecedência. Geralmente, leio a obra, o último livro com certeza, e também o máximo de entrevistas que o autor já concedeu, o que pode ser complicado se o tempo para isso for mínimo. Já me aconteceu de a editora avisar que o autor estaria livre na manhã seguinte e de passar a noite em claro para ler o livro e algumas entrevistas. Outras, nem isso. Lembro-me de um dia estar a passear com uma amiga quando o telefone tocou. Era a assessora de imprensa dizendo que o escritor (espanhol) Juan Marsé estava disponível naquele instante. Fiz a entrevista ali mesmo, sentada no banco de uma calçada, com o telefone em viva voz para que a minha amiga gravasse as respostas dele no telefone dela, sob o olhar atônito de quem passava.
Mesmo bem-preparada, uma entrevista pode correr mal?
— Escrevo no texto de introdução do livro que uma entrevista é sempre uma representação, no termo de performance. São duas pessoas a tentar desempenhar da melhor maneira um papel, numa espécie de sedução mútua e, nesse contexto, o melhor que pode acontecer é que seja menos uma entrevista e mais uma conversa. É por isso que nunca levo um roteiro de perguntas, pois posso me dispersar, estando mais preocupada com a hora da nova pergunta do que com a conversa. E essa falta de atenção, mesmo que seja numa fração de segundos, pode fazer com que o outro perca o interesse, o que seria o fim da entrevista. O desafio é sempre esse, de ambos manterem essa representação ativa, que uma pergunta estúpida minha não o faça dispersar ou uma resposta aborrecida do entrevistado diminua o meu interesse, pois a última coisa que se quer numa entrevista é um perder o outro.
Quando um perde o outro é o sinal de fim da entrevista?
— Toda entrevista é um tiro no escuro. As circunstâncias podem correr mal naquele dia e a pessoa reagir de uma forma inesperada. Ou o contrário. Lembro-me de quando fui entrevistar o Peter Handke e me avisaram de ele ter um mau feitio terrível e que teria sorte de a entrevista durar cinco minutos. Fui muito nervosa e o que aconteceu foi ter surgido à minha frente alguém encantador e disponível que conversou sem olhar para o relógio e só foi embora porque havia um outro compromisso. E, mesmo assim, convidou a mim e ao fotógrafo para depois beber algo no bar do hotel. Já com a Chimamanda Ngozi Adichie (que não está no livro) foi o oposto. Pensava que ia ser algo leve, mas ela estava com problemas naquele dia e muito mal disposta para falar. Depois de duas perguntas, dei por encerrada a entrevista, mesmo sabendo que ela seria a capa do suplemento e teria de preencher seis páginas com aquelas duas perguntas. Mas não valia a pena insistir, pois toda entrevista tem sua narrativa, seu ritmo e como ela estava a me responder com muita má-vontade, minha intuição sinalizou que era hora de parar.
Costuma se decepcionar com os entrevistados como ocorreu com a Chimamanda?
— Eu tento sempre não levar grandes expectativas para a entrevista e não costumo mitificar a pessoa que vou entrevistar. É claro que quando decido entrevistar alguém, o primeiro interessado naquela entrevista sou eu, pois uma suposta falta de interesse de minha parte iria passar para o outro lado, o do leitor. O que pode acabar por me desiludir é o conteúdo, por achar que a pessoa era inteligente e ela não está a dizer coisas tão inteligentes assim. Já aconteceu com certa frequência e por isso que quanto mais admiro a obra do escritor, maior é o meu temor de que ele não corresponda. Mas, repito, pode sempre ir pelo caminho oposto, de acontecer que durante a conversa descubra que é uma figura interessantíssima que suplanta a sua obra.
Foi o que aconteceu com os entrevistados do livro?
— De certa forma, sim. Patti Smith, por exemplo, voluntariamente abriu mão de sentar em sua mesa favorita para não prejudicar a entrevista, pois ela ficava muito perto ao balcão e o ruído constante poderia atrapalhar a gravação. Salman Rushdie foi outra agradável surpresa. Já o havia entrevistado em Lisboa, sob um forte esquema de segurança, que viria a saber depois teria sido imposto pelo governo português, não por ele. Mas quando o entrevistei nos Estados Unidos, fui à Universidade de Nova York (NYU), apresentei-me na portaria, entrei, peguei o elevador e, quando estava a atravessar um longo corredor, o meu telefone tocou. Era ele, preocupado se havia me perdido. Estivemos a conversar até ouvir a voz dele pessoalmente, com a porta do seu gabinete aberta para que entrasse. Quem me abriu a porta também, mas da sua casa em Nova Yorkfoi Paul Auster, para que entrevistasse a esposa dele, Siri Hustvedt. A imagem dele a me levar para ter com ela e depois desaparecer pela porta como um porteiro é a última que tenho dele, pois morreria pouco tempo depois. Esse tipo de desprendimento de pessoas que têm fama de serem difíceis, de serem divas e não são, me emocionam.
Há entrevistas difíceis no livro?
— Não no sentido de os entrevistados serem divas, mas pelas circunstâncias. A Ludmila Ulitskaya foi um exemplo, pois nem ela falava inglês nem eu falava russo e tivemos de recorrer a uma tradutora e uma conversa que está sempre dependente de um terceiro acaba por influenciar o ritmo natural de uma entrevista. Tentei ao máximo ler alguma expressão dela, um sorriso, um gesto de desagravo, para perceber se a conversa seguia num tom mais leve ou pesado, mas sempre obrigados a confiar num terceiro elemento, o que pode comprometer um nível mínimo de cumplicidade. No fim, tive a certeza de que tudo transcorreu bem, pois ela tinha um ramo de flores que havia recebido de um leitor e acabou por ofertá-lo a mim.
Mencionou a busca por um nível mínimo de cumplicidade. Como atingir isso com a febre das entrevistas feitas por videochamadas?
— As entrevistas por vídeo foram bastantes úteis durante a pandemia, que se seguiram depois e podem ser úteis, pois, às vezes, só se consegue chegar a alguns autores por essa via. Mas não deixa de ser estranho, pois se está e não se está cara a cara com o entrevistado. Mesmo assim, é possível extrair alguma cumplicidade, como no caso da entrevista com o Don DeLillo, que é um escritor que admiro muito. Foi durante a pandemia e ele estava com um problema nas cordas vocais e a conversa seguiu até a voz dele ir baixando, baixando, até ficar imperceptível. É aquela história de saber quando é a hora de dar por encerrada uma entrevista. Já com a voz baixíssima, ele disse que já não sabia se era capaz de continuar a escrever mais… e não fui capaz de perguntar mais nada.
Dentre as entrevistas no livro, há uma com o Edmund White que não aconteceu…
— É na verdade, é uma memória que fica de uma entrevista perdida pois não foi gravada. Isso é frustrante para um profissional e pode acontecer até mesmo com quem é muito experiente. Lembro-me de ter ido entrevistá-lo durante uma famosa residência literária, numa região belíssima próximo a Florença. Foi uma conversa fantástica, à sombra de uma árvore e a maior parte da entrevista foi dele a contar suas aventuras amorosas, mas não gratuitamente, e, sim, num contexto literário. Histórias divertidas que renderam boas gargalhadas sobre os seus casos, inclusive com alunos da universidade, entre elas, com um ex-estudante que hoje é um escritor famoso e, anos depois, acabou por me contar o mesmo caso, só que na perspectiva dele. Quando cheguei em Lisboa para transcrever a entrevista, percebo que não havia gravado nada. Zero. Senti uma náusea, uma sensação muito estranha, mesmo que na redação ninguém tivesse a dar muita bola para isso, minimizando com um “isso acontece”, até porque a grande vantagem de trabalhar no caderno de Cultura é que os jornalistas de outra área não conhecem ninguém e provavelmente nunca tinham ouvido falar em Edmund White na vida. Acabou por entrar no livro como o registro de uma entrevista frustrada.
O livro pode ser lido também como uma fonte de informação para futuros escritores. É um pensamento seu um dia escrever ficção?
— Quando se fala com grandes escritores, a sensação é de acessar a qualquer coisa misteriosa do que é isso de fazer literatura. Antes de qualquer coisa, sou uma leitora e, claro, entender o processo criativo dos autores me interessa muito, mas preciso lembrar quando estou a fazer as perguntas que essas entrevistas vão ser publicadas num jornal para um público bastante diverso e não é preciso apenas satisfazer as minhas curiosidades. Se fossem feitas apenas para o livro, a edição seria outra e tentaria aprender mais alguma coisa sobre o processo de criação com eles. Quanto a escrever ficção, quanto mais percebo o tamanho desses escritores, o quanto são bons, maior é o meu pudor em arriscar escrever algo.
Com o tour do seu livro, os papéis inverteram-se e agora a entrevistadora tem sido a entrevistada. Como tem lidado com isso?
— No meu caso, acho que o problema é de me expor um bocadinho, pois quando converso com outro jornalista é como se estivesse entre amigos e posso falar algo que me arrependo um minuto depois. Mas as entrevistas fazem parte do ritual da literatura. Antes, o papel do escritor era apenas escrever, só que as exigências cada vez maiores do mercado editorial obrigam-no a dar mais e mais entrevistas. Mas há pessoas que são extraordinárias a escrever e não são boas a falar. Com todo esse tempo de jornalismo, vi o quanto isso de falar pode ser doloroso para alguns escritores. Agora, que tenho andado no lugar deles, respeito os meus entrevistados ainda mais, pois é uma grande generosidade confiar tanto assim no outro.