“Um dos papéis aos quais a ficção científica serve é nos avisar de erros que podem vir”

Edward Ashton, autor de Mickey7, livro que deu origem ao novo filme de Bong Joon Ho, analisa o gênero literário, explica seu processo de criação, fala sobre literatura e os bastidores da superprodução

"Oh, meu Deus! Quem morreu?!", perguntou Jennifer, esposa de Edward Ashton, ao ver a palidez súbita do marido. O escritor norte-americano a tranquilizou: “Não, todo mundo ainda está vivo. Está tudo bem. Isso é, na verdade, uma boa notícia.” Na mensagem, cujo link anexado Ashton hesitou em clicar, havia, na verdade, uma excelente informação. Um dos livros lançados pelo autor de ficção científica, Mickey7 (2022), tinha sido escolhido para ser transformado em filme. Mas não somente isso. Um filme de Bong Joon Ho, o cineasta sul-coreano responsável pelo fenômeno Parasita, Palma de Ouro em 2019 e vencedor do Oscar 2020 nas duas principais categorias, Melhor Filme e Melhor Filme Internacional – feito, até então, inédito e, até hoje, único. E mais, a adaptação, intitulada Mickey 17, seria estrelada por dois astros do cinema, o inglês Robert Pattinson e o norte-americano Mark Ruffalo.

Alguns atrasos na produção e 118 milhões de dólares depois, Mickey 17, lançado pela Warner Bros, finalmente faz sua estreia mundial, nesta quinta-feira (6). Edward Ashton foi um dos primeiros a assistir ao filme, em sua première, que aconteceu no dia 13 de fevereiro, na Leicester Square, em Londres. No dia seguinte, o autor concedeu entrevista exclusiva ao site da revista Pernambuco. Empolgado com a adaptação, falou da emoção ao ver parte de seu texto na voz de Pattinson, Ruffalo, do sul-coreano Steven Yeun (vencedor do Emmy pela minissérie Treta, 2023) e de Naomi Ackie, atriz britânica em ascensão. “Muito do diálogo foi tirado diretamente do meu livro. Então, ver as palavras que eu tinha escrito nas mãos desses grandes atores foi uma experiência incrível, difícil de descrever”, contou.

Além das falas, o roteiro adaptado, assinado por Bong Joon Ho, manteve o humor da escrita de Ashton, um autor de 57 anos que mora em uma casa cercada por árvores, em Webster, cidade de 45 mil habitantes no condado de Monroe, no interior do estado de Nova York, “com sua esposa, um número variável de filhas [três] e um adorável cachorro deprimido chamado Max, onde ele escreve — principalmente ficção, ocasionalmente fatos — sob os olhos atentos de um pica-pau gigante e um elenco rotativo de corujas-listradas”, como descreveu em seu perfil no Goodreads.

No brevíssimo perfil do site, em nove linhas, ele revelou que “em seu tempo livre, gosta de pesquisar sobre o câncer, ensinar física quântica para estudantes de pós-graduação mal-humorados”. Na realidade, Edward Ashton é formado em Engenharia Elétrica e Eletrônica pela Loyola University Maryland e fez pós-graduação na University de Rochester. Nascido em Fairfax, pequena cidade (de 25 mil habitantes) da Virgínia, sul dos Estados Unidos, ele se encantou pelo folheto da instituição que aparecia coberta de neve. Paralelamente à pós, fez aulas de escrita criativa. Em 1995, concluiu o doutorado, casou-se com Jennifer e começou a carreira como engenheiro de pesquisa no Laboratório de Pesquisa Naval dos EUA.

Atendendo ao convite do ex-orientador, voltou à universidade para trabalhar como diretor científico da VirtualScopics, startup fundada na instituição, em 2000, com o objetivo de criar ferramentas de análise de imagens médicas para ajudar pesquisadores a acelerar o desenvolvimento de medicamentos. Em 2016, ela foi vendida para a empresa de 16 mil pessoas BioTelemetry, onde Ashton se tornou vice-presidente de imagens oncológicas. A empresa foi comprada mais duas vezes antes de ser integrada à ICON PLC, que emprega 44 mil funcionários. Um deles é Ashton, que trabalha como diretor sênior de imagem oncológica.

Em meio a esse trabalho científico e corporativo, em 2015, Edward Ashton teve a alegria de ver a HarperCollins publicar seu romance de estreia, Three days in april, thriller ambientado em uma Baltimore distópica. Dois anos depois, a editora lançou o romance The end of ordinary, e, então, Ashton começou a escrever Mickey7, que chegaria ainda em formato de PDF às mãos da Plan B, produtora de Brad Pitt, que comprou os direitos do livro. Um dos três sócios da empresa, Jeremy Kleiner, foi quem pensou no nome Bong Joon Ho para a adaptação. Então, a partir daí, tudo se desenrolou até Ashton receber aquele email do seu agente.

Atencioso com seus leitores, no Goodreads, Edward Ashton atende aos comentários deles. Em uma dessas interações, ao responder se haveria mais um outro título sequencial de Mickey7, além de Antimatter blues (2023, ainda inédito no Brasil), ele afirmou que tinha “o esqueleto de outro livro do Mickey na minha cabeça, mas não está 100% claro agora se ou quando ele verá a luz do dia”. Em 2024, lançou Mal goes to war, e o novíssimo The fourth consort chegou às lojas em 25 de fevereiro deste ano – ambos sem edição no Brasil.

O romance Mickey7, que mistura sci-fi, drama e comédia, dialoga com o tipo de cinema que vem sendo realizado por Bong Joon Ho. Antes do sucesso de Parasita, o diretor já costumava misturar esses gêneros e utilizar metáforas visuais e analogias para discutir embates entre classes sociais, oportunismos de políticos ambiciosos, efeitos do capitalismo e questões ambientais urgentes, a exemplo de filmes como O Hospedeiro (2006), Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017).

O livro, que ganhou edição brasileira em 2023 pela Planeta Minotauro, aborda o tema da clonagem humana projetada no futuro, em um planeta habitado por uma espécie desconhecida à beira da extinção e colonizado por ambiciosos terráqueos e trabalhadores endividados e explorados, tratados como “descartáveis”. Um deles é Mickey Barnes, interpretado por Robert Pattinson – que teve a oportunidade, em mais um filme, de demonstrar sua versatilidade cênica ao encarnar Mickey nas suas versões 17 e 18.

Apesar de ter tido total liberdade, garantida em contrato com o estúdio, o diretor sul-coreano fez questão de reunir-se com Edward Ashton, em uma cortês videochamada de duas horas, para conversarem sobre a obra, tirar dúvidas sobre trechos do livro e dar a chance ao escritor de escolher algo, para ele, imprescindível na sua narrativa. Essa é uma das informações que o autor trouxe, nesta conversa com a Pernambuco.

Quando você começou a se interessar por literatura e a escrever suas primeiras histórias? Você já começou na ficção científica?
– Comecei a escrever quando eu tinha, provavelmente, seis anos. Quando meus pais se mudaram, alguns anos atrás, eles me enviaram uma pasta cheia de histórias que eu tinha escrito em um rabisco infantil, quando eu tinha cinco, seis ou sete anos. Dúzias e dúzias delas. Histórias muito sombrias e assustadoras. Eu era uma criança estranha, eu acho. Então, realmente, ser um escritor sempre foi a minha ambição, tanto quanto eu possa me lembrar.

Quando você considera que se tornou um escritor profissional?
– Isso também é difícil de definir. Eu vendi minha primeira obra profissional em 1989. Então eu já faço isso há muito tempo, também. Mas dizer que eu era um profissional é realmente um exagero. Eu fiz um pouco de dinheiro aqui e lá, eu fiz outras coisas. Eu sou um pesquisador de câncer, eu tenho outras ambições. Minha primeira novela em uma editora grande foi publicada em 2015. Foi uma novela chamada Three Days in April. Mickey7 é a minha terceira novela publicada profissionalmente, em 2022. Desde então, já fiz mais quatro. Portanto, tenho sete novelas no mundo, agora. Então, acho que posso me chamar de escritor profissional, agora. Eu não sei exatamente quando essa transição ocorreu, isso é realmente difícil de dizer.

Qual foi a sua inspiração para escrever Mickey7?
– Minha inspiração para qualquer uma das minhas histórias, realmente, vem do mesmo lugar. Todos os meus livros, todos os meus contos, eles quase sempre começam com uma imagem. Eu sou uma pessoa muito visual e eu penso em imagens, e então eu vejo até onde isso me leva. Mickey 7 começou com a imagem que eu tinha na minha cabeça por um tempo, de um homem sentado no fundo de um crevasse. E essa é uma das primeiras cenas do livro, é uma das primeiras cenas do filme também. E, na época, eu não sabia quem ele era, eu não sabia por que ele estava lá, não sabia se isso era na Terra ou em outro lugar, mas eu queria descobrir. Então eu escrevi, provavelmente, três ou quatro centenas de palavras, apenas descrevendo a situação dele e tentando sentir um pouco por que ele estava lá. E, então, eu trouxe o seu amigo, mas por que o seu amigo não o estava ajudando? Deve haver uma razão, e eu tive que pensar nisso. E virou uma bola de neve, a partir daí. E foi em 2015 que isso aconteceu. E isso, eu pensei, seria uma história curta. Cheguei ao fim do que eu pensava que seria um conto, e não era uma conclusão. Era, basicamente, o fim do capítulo 1 do livro. E, obviamente, não estava completo. Então, pensei, talvez isso não seja um conto, talvez seja uma novela. Então, o expandi para cerca de 25 mil palavras, mas também não estava realmente completo, só continuou a crescer. Não havia realmente um plano para isso, ele cresceu organicamente. E, em 2019, tive o livro completo.

Você poderia me falar sobre o convite para adaptar seu livro para o cinema? Você escreve histórias pensando em adaptações para outras mídias?
– Não, eu nunca teria sido arrogante o suficiente para pensar que alguém iria transformar esse livro em que eu estava trabalhando em um filme. Tudo isso tem sido um conjunto de circunstâncias extremamente improváveis. Eu tinha duas novelas publicadas, na época em que terminei o Mickey7. Entreguei ao meu agente, e ele saiu oferecendo por aí. Nós assinamos um contrato, relativamente modesto, com a Solaris Publishing no Reino Unido, para ser a primeira editora do livro. O que eu achei ótimo, eu fiquei muito feliz com isso. E então, pouco depois, ele me ligou para dizer que a Warner Brothers estava interessada em comprar os direitos para um filme. O que foi completamente inesperado. Eu nem sabia que ele estava oferecendo o livro para estúdios de cinema. Eu não pensava nisso, até que ele pensou que isso seria possível para o meu trabalho. Mas ele me disse, naquela época, que eles compravam muitas propriedades intelectuais, provavelmente 100, para cada uma que acabava virando filme. "Então, não fique tão empolgado com isso”. Eles escreveram um cheque, pagaram, isso é ótimo. “Você pode usar o dinheiro para levar sua esposa para um bom jantar. Mas não espere que nada mais saia disso." E então, cerca de seis meses depois, eu estava sentado na minha mesa de almoço, e eu recebi um texto dele, e era apenas um único link. "Clique aqui". Obviamente pensei, “isso é um ataque de phishing” (risos). “Eu não sou um idiota, eu não vou clicar nisso”. Pensei nisso, mas, afinal, veio do meu agente. Eu cliquei, e era um link para o artigo da revista Deadline, dizendo que Bong Joon Ho tinha decidido levar esse projeto como seu próximo filme, e que Robert Pattinson estava cotado para estrelar o filme. Minha esposa estava sentada do outro lado da mesa e a primeira coisa que ela disse, quando viu o meu rosto, foi, "Oh, meu Deus! Quem morreu?!" Porque o sangue tinha saído do meu rosto. E eu tinha que tranquilizá-la, “Não, todo mundo ainda está vivo. Está tudo bem. Isso é, na verdade, uma boa notícia.” Até estar no set, assistindo à gravação, eu ainda suspeitava que isso era alguma espécie de brincadeira cruel que meu agente e o resto do mundo estavam brincando comigo, mas tudo deu certo. Eu vi o filme ontem à noite, ele realmente existe. (risos)

Como foram as conversas com Bong Joon Ho sobre a adaptação da sua história? Ele escreveu o roteiro do filme, não é?
– Ele escreveu, sim. Quando o estúdio compra o seu trabalho, eles têm o direito de fazer o que quiserem com ele. Você não é mais o autor, você não tem mais nenhum controle do projeto, você está completamente desligado. Mas o Bong Joon Ho, o diretor Bong, me procurou, mais ou menos seis meses depois de assumir o projeto. Um dos representantes dele perguntou se eu estaria disposto a fazer uma chamada no Skype com ele, para falar sobre o projeto. Claro que eu disse sim. Então passamos cerca de duas horas falando sobre o livro. Ele estava realmente interessado na minha visão sobre o livro, quais eram meus objetivos filosóficos em escrever o livro, quais temas eu estava tentando enfatizar. Ele perguntou sobre detalhes do livro que eu não tinha nem pensado. Por exemplo, ele queria saber como esses monstros que eu tinha escrito, como eles se reproduziam? Como eles têm filhos? Eu não sei, eu nunca pensei nisso, mas ele é alguém que realmente não só quer saber o que está na tela, ele quer saber o que está acontecendo nos bastidores, ele quer saber o funcionamento de tudo. Então, falamos sobre tudo isso. E aí ele me perguntou, e isso foi absolutamente algo que ele não tinha que fazer, isso foi um presente para mim. Ele me perguntou o que eu achava que era o coração do livro. O que é o núcleo desse livro, que tem que estar no filme? E ele disse, você me diz o que é, e eu prometo que eu vou colocar no filme. E eu pensei sobre isso por cerca de 2 segundos e eu disse que o capítulo 19 tem que estar nesse filme. E ele disse, eu estou tão feliz por você ter dito isso, eu chorei quando eu li esse capítulo, eu ia colocar ele no filme de qualquer forma. E eu disse, posso escolher algo mais? E ele disse que não. E esse foi todo o meu envolvimento no desenvolvimento do roteiro. Mas isso foi mais envolvimento e mais controle do que a maioria dos autores recebe. Então, de novo, eu sou extremamente agradecido. Eu conheci o diretor Bong um pouco mais, ao longo do projeto. Eu o conheci, consegui me divertir um pouco com ele esta semana, enquanto eu estava aqui para a première. Ele é uma das pessoas mais genuínas e afetuosas que eu já conheci na minha vida. Ele é uma pessoa realmente maravilhosa. Eu não posso descrevê-lo à altura.

Você viu o filme concluído…
– Sim, nós só assistimos à première mundial ontem à noite. Foi absolutamente fantástico. Foi uma experiência indescritível ver Robert Pattinson, Naomi Akcie, Mark Ruffalo na tela dizendo coisas que... Muito do diálogo foi tirado diretamente do meu livro. Então, ver as palavras que eu tinha escrito nas mãos desses grandes atores foi uma experiência incrível, difícil de descrever.

Podemos esperar por uma continuação de Mickey7 nos cinemas?
– Eu já escrevi uma continuação para Mickey7, chamada Antimatter Blues. Foi publicado há alguns anos (em 2023, mas ainda sem edição brasileira). Eu não acho que o diretor Bong seja o tipo de diretor que faz continuações. Eu ficaria muito surpreso se fosse do seu interesse. Obviamente, eu estaria muito animado para fazer algo assim. Mas eu não acho que seja algo muito provável. Eu acho que ele vê isso como um projeto independente. Eu acho que o estúdio o viu como um projeto autônomo, e eu estou perfeitamente feliz com isso também. Eu certamente não seria ganancioso o suficiente para dizer que eu mereço mais filmes da Warner Bros. Eles já fizeram mais para mim do que eles fizeram para 99,99% dos autores do mundo.

Quanto tempo leva para você escrever um livro? O trabalho geralmente flui ou você tem que cortar e mudar muito?
– O meu processo é bem consistente. Fiz um livro novo por ano, nos últimos cinco anos. Tenho sido bem firme no meu trabalho e na minha produtividade. Tenho um processo de edição bem rigoroso, enquanto escrevo. Tipicamente, cada vez que eu me sento para escrever, a primeira coisa que eu faço é reler e reescrever as últimas 2 ou 3 mil palavras que fiz. Então, quando eu chego ao fim do primeiro rascunho, eu já escrevi cada palavra neste livro várias vezes. E aí há passagens de edição, eu faço uma análise completa, onde eu leio o livro procurando inconsistências lógicas entre diferentes partes do livro, porque talvez eu tenha mudado de ideia em algum momento sobre algo que aconteceu no capítulo 2, quando eu chego ao capítulo 20. Eu repasso, lendo uma vez por cada personagem, apenas lendo o diálogo para aquele personagem, para ter certeza de que sua voz é consistente e para ter certeza de que soam como eles mesmos e não como os outros personagens. E aí eu repasso prestando atenção na linguagem, para me assegurar de que as palavras fluem, de que você pode lê-las em voz alta, e que elas soam adequadas e fáceis de ler, que não existem trava-línguas. Isso se torna importante para o audiobook. Eu não quero dificultar a vida dos meus narradores. Então, quando estiver terminado, provavelmente repassei o livro umas 25 vezes ou mais. E o processo total leva em torno de 8 a 10 meses, normalmente. Isso tem sido a média.

Como você equilibra o conteúdo científico com a narrativa ficcional, para tornar uma situação crível? A ficção científica dá ao escritor liberdade ou, às vezes, o escritor se sente perturbado pela noção da realidade?
– Além de ser um escritor de ficção científica, é claro que eu trabalho como cientista. Então, eu realmente tento dar estofo ao meu trabalho. Não necessariamente no que é verdadeiro no presente, mas, pelo menos, no que é plausível. Então, as coisas que eu coloco nos meus livros, você não pode provar que todas elas são reais agora, muitas delas não são, obviamente. Estou projetando esses livros para o futuro. Mas não há nada, ou pelo menos pouco, que você encontrará nos meus livros, que você possa dizer, “Oh, não, nós provamos que isso não é possível”. Eu tento limitar-me a extrapolações da nossa ciência atual, da nossa compreensão atual do Universo. Se há alguns físicos por aí, eles provavelmente vão pegar no pé de algumas coisas do Mickey 7, em particular, que eu encaixei lá para o plot, que, na verdade, não existem. Mas acho que o número de pessoas que pegarão isso e ficarão furiosas é bastante limitado. Então, eu não me preocupo muito com isso. Mas eu realmente acho que a ficção científica é uma forma útil de fornecer comentários sobre o mundo de hoje. E isso é, certamente, uma parte de Mickey7. Não é extremamente sutil que Mickey 7 seja um comentário sobre o capitalismo moderno. Mickey, obviamente, representa todo empregado assediado em alguma corporação gigante, que não se importa se ele vive ou se morre. Mas, se você pegar esse tipo de comentário e colocá-lo no mundo contemporâneo, metade das pessoas que leem o livro vai ficar furiosa com você, porque elas acham que você está comentando sobre elas e você está falando sobre elas. Enquanto que, quando você pega esse mesmo comentário e coloca em um milhão de anos no futuro e no espaço, agora você está falando sobre o espaço. Ninguém vai ficar furioso com isso. E você pode pegar a mensagem que você está tentando passar, escondê-la atrás de camuflagens emocionais e fazer com que eles te escutem. E talvez algumas das pessoas que você pode estar criticando, pelo menos por um minuto, escutem a sua mensagem, e talvez deixem que ela ressoe com elas um pouco. Então, eu acho que a ficção científica e a literatura fantástica, há centenas de anos, realmente sempre serviram para esse objetivo.

Por que você escolheu escrever Mickey7 em primeira pessoa e com o tempo verbal no presente?
– Com todos os meus livros, uma das primeiras decisões que eu tenho de fazer é o tempo verbal e o ponto de vista que eu vou usar. Escrevo principalmente no que chamamos de narrador observador. Na maioria dos meus livros, e isso é um pouco mais comum, a primeira pessoa – e a primeira pessoa no tempo presente em particular – são um pouco mais incomuns para um livro, mas, para esse livro em particular, os pensamentos interiores de Mickey e como ele percebe o mundo foram tão cruciais ao sentido do livro, porque a questão central do livro é quando um novo Mickey é produzido. É aquela mesma pessoa ou é uma pessoa completamente nova? Esse é o dilema central da vida de Mickey. E eu não pensei que seria efetivo descrever isso do lado exterior. Eu pensei que o jeito mais emocionante de se conectar para descrever esse dilema seria nas palavras do personagem. Então eu senti que esse livro realmente precisava ser em primeira pessoa. Quanto ao porquê eu coloquei no tempo presente, quase todo o meu trabalho, honestamente, é no tempo presente. Desde que eu estava no colégio e escrevi meus primeiros contos de forma séria, foi mais natural para mim. Eu gosto do imediatismo. Eu tentei escrever no tempo pretérito algumas vezes, e isso não me soa natural. É uma coisa pessoal, para mim.

O uso do humor em Mickey 7 foi natural ou uma escolha?
– Ambos, eu acho. Esse tipo de humor aparece na maioria das minhas obras. Em particular, em minhas obras mais longas. Algumas das minhas histórias curtas são um pouco mais sombrias e sérias. Algumas são extremamente sombrias. Mas eu não sinto que você pode manter esse tom sombrio ao longo de uma novela. Eu acho que isso se torna muito pesado para o leitor. E você precisa de um pouco de humor misturado, para fazê-lo divertido, para fazê-lo legítimo, mesmo que você esteja tentando revelar alguns conceitos muito pesados. O Mickey7 fala sobre a vida e a morte, fala sobre algumas perguntas filosóficas profundas. Mas eu acho que o humor é como o açúcar e remédio amargo. Eu acho que o humor ajuda a descer um pouco melhor e um pouco mais fácil. E, para ser honesto, essa espécie de escuridão na voz, isso vem muito natural para mim. É assim que eu falo com meus amigos. É assim que eu falo com a minha família. Se você falar com pessoas que me conhecem pessoalmente, elas dizem que, de vez em quando, ao ler o meu trabalho, escutam a minha voz saindo de um dos personagens. Eu acho que, particularmente quando você está escrevendo na primeira pessoa, é muito difícil não ter um pouco da sua própria voz emergindo no personagem.

A ficção científica é geralmente ligada a uma visão pessimista do futuro, onde o humanismo é muitas vezes esquecido ou testado. Por que nós temos essa visão pessimista do futuro e da tecnologia?
– Eu acho que um dos papéis aos quais a ficção científica serve é nos avisar de erros que podem vir, para nos fazer pensar antes e reconsiderar, talvez, algumas das decisões que estamos tomando agora. Essa é a resposta filosófica. A resposta mais prática é que uma história em que todos estão felizes e passam um bom dia não é muito interessante. Para fazer literatura, temos que ter conflitos e temos que ter pessoas com problemas. E é muito mais fácil ter pessoas com problemas quando as coisas estão erradas com a tecnologia do que quando tudo está indo bem. Isso torna as coisas mais fáceis para o escritor.

Você acha que, no mundo em que vivemos, é mais difícil ou mais fácil criar ficção científica? Qual é o maior desafio em escrever ficção científica?
– Sempre foi difícil criar uma ficção científica verossímil. Escreve-se mais ficção científica ruim do que ficção científica boa, nos últimos anos. Isso pode ser verdade para todos os gêneros literários. Eu acho que um dos grandes desafios, agora, é escrever algo e publicá-lo antes de sua ficção científica se tornar uma ficção histórica. Isso foi algo que eu respondi a um entrevistador, sobre o meu primeiro livro, Three Days in April. Ele perguntou por que eu estava com tanta pressa para publicá-lo, porque levou apenas seis meses para escrever e publicá-lo. A HarperCollins pegou o livro e publicou-o apenas seis meses depois, o que é um ritmo muito rápido neste mercado. E eu disse que não tem nada nesse livro que eu não acho que vai ser parte do nosso mundo nos próximos 20, 30 anos. Eu queria publicá-lo antes de ele parar de ser uma ficção científica. O mundo está se movendo tão rápido, agora, que pode ser um pouco difícil ficar à frente dele.

Tem alguma coisa que lhe incomoda em relação aos avanços tecnológicos atuais?
– Muitas coisas me incomodam. Toda a tendência na tecnologia nos últimos 100 anos tem sido um aumento constante do nosso poder sobre o mundo, nosso poder sobre o mundo natural, e de trazer esse poder, de estados-nações, a grupos menores, a indivíduos. E você pode entender isso como democratização, mas você também está colocando um monte de poder nas mãos de muitos atores individuais. Olhe para algo como CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, técnica de biologia molecular que permite editar o DNA), para a edição de genes. CRISPR, agora, permite colocar o poder de criar novos organismos nas mãos de um pequeno time de pessoas decentemente treinadas, o que significa que um novo vírus, por exemplo, uma nova bactéria, pode ser produzida por um pequeno grupo de pessoas que talvez não tenham as melhores intenções, e estão procurando fazer o mal. Isso é algo que, 20 ou 30 anos atrás, só poderia ter sido feito por laboratórios estatais de grandes nações, não que aquelas pessoas sempre tivessem o melhor em mente. Mas então, pelo menos, talvez houvesse um pouco de controle sobre o que está acontecendo. Mas agora esse poder está se descentralizando para grupos cada vez menores, e eu acho que isso apresenta riscos substanciais de coisas muito ruins acontecerem. Então, eu tenho preocupações acerca disso. Tenho preocupações sobre o desenvolvimento da inteligência artificial. Eu faço um pouco de trabalho nesse campo. Desenvolvi módulos de inteligência artificial no meu trabalho. Mas acho que ela tem o potencial, em particular, para coisas como a vigilância, a fiscalização das comunicações, para o reconhecimento facial, que permite a perseguição a indivíduos em todas as cidades, eventualmente em todos os países. Eu acho que isso tem o potencial para um monte de abusos, e eu tenho preocupações sobre isso. Eu poderia falar de vários outros campos também, mas tudo se resume a multiplicadores de forças. Todas essas coisas fazem indivíduos mais e mais poderosos, mais e mais capazes de afetar as pessoas ao redor, mais e mais capazes de afetar o mundo. E, você sabe, nem todos têm boas intenções, e isso leva ao risco de coisas ruins acontecerem.

No Brasil, temos algo chamado Academia Brasileira de Letras. Quando um escritor é introduzido nessa instituição, ele se torna “imortal”. Cada um dos escritores eleitos ocupa uma cadeira com um número. Quando um escritor morre, esse número é ocupado por outro escritor, quase como Mickey7 (risos). Entrar nessa instituição é uma das ambições dos escritores brasileiros. Qual é a sua maior ambição, como autor dos Estados Unidos?
– Minha maior ambição foi ver um dos meus livros em uma prateleira, na loja de livros. E eu alcancei essa ambição. Fiquei muito emocionado em ver isso. Tudo o que veio depois disso foi só bônus, na minha opinião. Tudo, depois disso, foi um incrível bônus. Os obstáculos para se tornar profissionalmente publicado são tão altos, há tanta coisa que você tem que superar, que apenas para chegar a esse ponto, era implausível. Para chegar ao ponto em que estou agora, em que meu trabalho foi traduzido em 25 línguas diferentes, e meu livro é um best-seller na Coreia, e um filme foi feito, e foi feito não apenas qualquer filme, mas por alguém que ganhou quatro Oscars, e um dos maiores atores da nossa geração... Eu nem sei o que dizer. Eu sinto que seria ingratidão de minha parte, desejar mais. Claro que sim, você sempre quer mais. Mas eu não me sinto na posição de querer mais e expressar mais, porque eu sinto que muito já me foi dado.

Quais são os seus livros preferidos?
– Eu preciso de um número. Eu leio muito. (risos)

Cinco. Cinco livros. (risos)
– Cinco livros. Eu vou citar alguns. Começando com coisas que são um pouco mais clássicas. Há um livro chamado As Sereias De Titã, de Kurt Vonnegut, que eu li primeiro quando era jovem, e me impressionou, naquela época. Há uma cena em particular, no final do livro, que é absolutamente assustadora. Se você nunca leu, não quero estragar para você, mas você realmente precisa ler. Certamente está na lista. Há um livro de Clifford D. Simak chamado Shakespeare's Planet, que similarmente tem uma cena no final que é realmente um soco no estômago. E li, também, quando eu tinha 14 ou 15 anos, e eu me lembro desde então. Um dos meus livros favoritos de todos os tempos é de George R. R. Martin, que escreveu os livros de Game of Thrones. Quando ele era muito mais jovem, era um escritor de ficção científica, e escreveu um livro chamado A morte da luz, que quase ninguém leu. É por isso que ele começou a escrever fantasia, porque ele queria uma audiência maior. Mas eu li, e achei que era um dos melhores livros que já li. Absolutamente brilhante. Olhando para coisas um pouco mais contemporâneas, Gabrielle Zevin escreveu um livro chamado Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow, que não é de ficção científica, é mais literatura contemporânea, mas realmente trata das relações entre pessoas no mundo hoje, e da forma como elas mudaram nos anos, de uma forma que eu achei absolutamente único, e eu realmente apreciei. E olhando para a ficção científica moderna, eu acho que o Children of Time, de Adrian Tchaikovsky, é um dos melhores livros de ficção científica que eu já li há muito tempo. E o Adrian também é uma pessoa maravilhosa. Tive a oportunidade de passar um tempo com ele, e é uma pessoa maravilhosa. Então, se todos pudessem comprar tantos de seus livros quanto possível, seria ótimo.

Você conhece algo da literatura latino-americana?
– Eu lembro de Gabriel García-Márquez e escritores desse tipo. Certamente, quando eu estava na faculdade, eu estudava Literatura, e nós tínhamos cadeiras sobre Literatura Latino-americana, assim como do mundo todo. Meu entendimento é que não existe uma grande tradição de ficção científica na América Latina. O realismo fantástico é muito mais importante, na literatura latino-americana, o qual eu aprecio também. Na verdade, tentei escrever histórias nesse gênero, o realismo fantástico, mas eu não consigo dominar. Realmente nunca consegui deslanchar. Tenho uma grande admiração. Existe um ótimo livro, chamado Imagining Argentina (1987, do autor norte-americano Lawrence Thornton). Ele aborda os problemas da Argentina dos anos 1970, as questões políticas da Argentina dos anos 1970. A verdadeira história do que aconteceu, com uma história fantástica, de uma forma que eu encontrei hipnotizante, quando li. Eu nunca conseguiria reproduzir isso. Nunca conseguiria escrever algo assim. Não tenho o cérebro para isso, não tenho a cabeça para isso. Então, tenho muita admiração por esse tipo de escrita, mas é algo que eu nunca consigo fazer.

Em que projeto novo você está trabalhando?
– Eu, na verdade, acabei de enviar meu livro mais novo para o meu editor, há cerca de duas semanas. Então, ele está, neste momento, passando pelas engrenagens da Macmillan, sendo publicado. É ficção científica. É em um futuro mais próximo. Começa após uma catástrofe ecológica muito grave, que ceifou quase toda a população humana. E, seguindo isso, acontece uma invasão alienígena, em que todos os sobreviventes restantes foram completamente subjugados. Como dá pra imaginar, é muito bem-humorado e é centrado em um esforço para abrir uma nova hospedaria. Eu não sei se é uma conclusão lógica, mas, confie em mim, faz sentido no contexto do livro. Foi muito divertido de escrever. Eu acho que eu criei, talvez, o meu personagem favorito de todos os tempos, neste livro. É realmente um amigo muito divertido. Você não vai poder conhecê-lo por um ano e meio, provavelmente, porque as rodas da publicação giram lentamente, mas estou muito animado para ver esse livro no mundo. É um livro divertido.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista e editora-assistente das revistas Continente e Pernambuco