Viuvez, amor e rancor no Recife na obra de Marta Barbosa Spencer

Pernambucana radicada na Inglaterra, fala de seu processo de escrita e do romance As viúvas passam bem

A pernambucana Marta Barbosa Stephens descobriu que podia e queria escrever ficção enquanto morava em Barcelona, no início dos anos 2000. Ao conhecer seus colegas durante uma especialização em edição, começou a ler ensaios literários e a trocar impressões sobre esses materiais na sala de aula. Ao voltar ao Brasil, decidiu fazer um mestrado de crítica literária na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) porque desejava uma maior base teórica que, segundo ela, fazia falta.

Seu primeiro livro Voo luminoso de alma sonhadora foi publicado em 2013 de maneira independente – são nove contos que trazem uma leitura ficcionalizada do livro Amor Líquido do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. O número de contos é uma expressa alusão à Nove, Novena, de Osman Lins, uma das referências da autora. Em 2015, já morando na Inglaterra, lançou Desamores da Portuguesa, um romance que trata de temas como imigração e pertencimento a partir da experiência de uma mulher de quem não sabemos o nome e que não consegue se integrar na sociedade britânica porque não fala inglês. Em 2023, Marta lançou As viúvas passam bem, semifinalista do Prêmio Leya (Portugal | 2021), com relatos em primeira pessoa. O enredo se passa em um Recife dos anos 1990, e traz episódios sombrios e cômicos das vizinhas e inimigas Guiomar e Margarete, cujos maridos mataram um ao outro numa briga sem sentido. No momento, Marta trabalha no seu quarto livro que tem a velhice como pano de fundo.


Sua escrita se desenrola a partir de protagonistas mulheres. Vemos a influência de Clarice Lispector, mas também ecos de Machado de Assis e Osman Lins. Como se dá esse encontro entre sua linguagem particular e a de suas referências nesta ótica feminina?
— 
Essas são referências que alicerçam quem eu sou, antes de meu texto. Estão sempre por trás de tudo que faço e escrevo, porque mais do que influenciar meu trabalho, influenciam minha personalidade. Clarice Lispector, Machado de Assis e Osman Lins são parte de mim. A leitura desses autores me modificou, muito antes de eu pensar em escrever As viúvas passam bem ou qualquer texto.

No que diz respeito à produção literária, persigo esses escritores em muitos movimentos. No olhar para dentro e, ao mesmo tempo, universal de Clarice Lispector, na cosmologia e na convergência com diferentes manifestações artísticas de Osman Lins, no narrador hesitante e suspeito de Machado de Assis. E de todos, no rigor estético.

Mas eu também tenho referências inconstantes, que se modificam, a depender do meu momento. Antes e durante a escrita de As viúvas passam bem, por exemplo, li muito Williams (Butcher’s Crossing e Stoner) e Anne Tyler (continuo nesse mergulho!).

Você saiu do Recife em 1997. Nos seus dois primeiros livros, Voo luminoso de alma sonhadora e Desamores da portuguesa, não há nenhuma referência explícita à sua cidade de origem. Já no seu terceiro, o romance As viúvas passam bem (Folhas de Relva Edições), o enredo se dá por lá. O que a levou a falar do Recife?
— 
Acho que precisei de tempo para curar algumas feridas. O Recife e minhas referências de infância e família sempre estão em minha escrita, mas não explicitamente. Não foi algo pensado. Acredito que precisei de um distanciamento físico e emocional das minhas raízes. Tem a ver mais com amadurecimento pessoal do que com a narrativa em si.

Raiva é um dos fios que atam as personagens Margarete e Guiomar. O que elas têm em comum para além do fato de serem viúvas e se odiarem?

Elas também amam, sem negar a ambivalência dos sentimentos. Quebram essa narrativa maniqueísta que isola amor e ódio em diferentes esferas. Margarete e Guiomar, de certa forma, não dividem o mundo entre bem e mal, luz e trevas. Elas cultivam sentimentos simultâneos e mesmo opostos. Não são puramente heroínas e também estão passíveis à raiva do outro.

Em que medida, sua literatura é afetada por morar desde 2014 na Inglaterra?
— 
A língua portuguesa se tornou um refúgio ainda mais importante para mim. Embora eu trabalhe com o português diariamente, como jornalista e escritora, inglês é o idioma falado na minha casa, é a língua na qual expresso meus sentimentos corriqueiros.

Por estar distante do Brasil, às vezes me pego pesquisando o significado de uma expressão que vejo na Internet. Afinal, a língua é viva, modifica-se e se adapta ao tempo. Não consigo dimensionar o impacto direto disso na minha narrativa, mas imagino que, sim, afete meu modo de escrever. Quanto a influenciar o enredo, trouxe essa questão ao meu primeiro romance, Desamores da portuguesa, cuja personagem principal é uma portuguesa morando na Inglaterra sem saber inglês. O isolamento que a língua impôs a essa mulher (que só se comunica com os parentes portugueses, também isolados em uma comunidade de imigrantes) e os efeitos desse “analfabetismo” são o fio condutor do livro.

Você também é uma entusiasta da obra das escritoras Elena Ferrante, Anne Tyler e de James Baldwin? Poderia nos contar os motivos e se eles influenciam a sua escrita?
— 
Elena Ferrante foi uma descoberta recente. Tenho uma história interessante com essa autora italiana porque ela me foi recomendada por muitos amigos. “Tenho certeza de que você vai gostar” era a frase que ouvi muito. Comprei o primeiro livro da coleção napolitana e não conseguia avançar na leitura. Mais um exemplo de que leitura depende muito do tempo do leitor. Eu não estava pronta. Passaram-se anos e resolvi insistir naquele livro, e não parei mais. Já li muita coisa de Ferrante, amo seu vigor narrativo e o modo como desconstrói ideais de casamento, maternidade e amizade etc.
Baldwin conseguiu marcar seu nome em diferentes meios de expressão: ensaios, poemas, peças de teatro e romances. O modo como ele traz dilemas fundamentais do ser humano em contextos sociais e psicológicos é brilhante.

Já Anne Tyler me ensina como construir personagens com tantos detalhes, capazes de levar o leitor ao muito íntimo de cada um. Ao ler alguns dos seus romances (ela tem mais de 20 lançados em inglês), você pode pensar: mas por que se ater a tantas descrições desimportantes? Mas então vem a resposta, tudo se converge a um retrato bem-acabado da personagem. É de uma riqueza narrativa que eu não encontro comparação. Não por acaso, Anne Tyler foi três vezes finalista do Prêmio Pulitzer, com Dinner at the Homesick Restaurant (1983), The accidental tourist (1985) e Breathing lessons (1988). Este último, lançado em português com o título Lições de vida, venceu o Pulitzer em 1989.

O que acha das pautas identitárias na literatura contemporânea brasileira?
— Acho que as pautas identitárias serão necessárias enquanto as desigualdades estiverem relacionadas a certas identidades. Imagino também que é papel do artista questionar e instigar debates. A literatura reflete o nosso tempo, então acho natural que questões de raça e gênero ganhem as páginas. Há no Brasil uma demanda legítima por representatividade. E tomara que sobre confete para os precursores, como Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Pagu e tantas outras e outros que venderam bem menos livros e precisam ser revisitados.

Você foi semifinalista do Leya em Portugal (2021). Para que servem os prêmios literários? Eles influenciam de alguma forma a escrita?
— 
Os prêmios são importantes porque divulgam o trabalho do autor. Nem sempre são justos e muitas vezes são excludentes, mas em um país de poucos leitores e um mercado tão fechado ainda são um bom meio de divulgação.

Vimos recentemente o Prêmio Sesc censurar o romance Outono de carne estranha, de Airton Souza, e em outro episódio, O avesso da pele, de Jeferson Tenório, também foi censurado por uma escola no Rio Grande do Sul. Para você, foram casos isolados ou existe uma tendência em moldar a produção contemporânea a partir de valores mais conservadores?
— 
Pois é, não acho que sejam casos isolados. Faz parte de um projeto conservador de país que, infelizmente, está em curso e faz tempo. É bem cansativo sempre voltar aos mesmos temas de atraso. Ainda não li o livro do Airton Souza. Já O avesso da pele li e recomendo muitíssimo. É uma pena ter que discutir essas questões ultrapassadas, de novo.

Você tem um projeto literário definido ou, à medida que escreve os seus livros, ele vai ganhando forma?
— 
Eu tenho um projeto, mas ele é mutável. Acho que à medida que eu aprendo, leio e pratico a escrita, algumas conclusões de estilo, por exemplo, começam a ficar claras. O que não significa que eu não possa mudar. Mas realmente tenho muito mais clareza de como quero escrever hoje do que antes do primeiro livro.

Como se dá o seu processo criativo, há uma rotina? Quais são os escombros e andaimes da sua escrita?
— 
Eu abraço o caos! Sou mãe de dois, moramos longe de qualquer rede de apoio e tenho um emprego como editora de notícias de segunda a sexta-feira. Então, normalmente, só escrevo nos fins de semanas. Quando estou muito obstinada por algum texto, posso acordar 6h da manhã para escrever. Infelizmente, não há rotina. Então, o processo criativo é na base da obsessão mesmo.

Virginia Woolf, no seu ensaio Um quarto só seu, defende que as mulheres tenham um espaço privativo para escrever. A autora chilena Lina Meruane, no livro Contra os filhos, faz um manifesto ensaístico em defesa da não maternidade para escritoras. O que acha disso?
— 
Ser escritora é mesmo um luxo. Virginia Woolf está certa quando diz: “Uma mulher, se quiser escrever literatura, precisa ter dinheiro e um quarto só seu.” Como diz um amigo, todos os dias alguém bate na nossa porta pedindo para a gente desistir da literatura. Ter as mesmas oportunidades é condição do exercício de liberdade intelectual.

Sabemos que já está escrevendo o seu quarto livro. Poderia nos falar sobre ele?
— 
Sim, estou escrevendo um romance que tem como tema central a velhice. Parte da experiência desastrosa que tive de trabalhar por três meses em um asilo aqui na Inglaterra. Mas não é autoficção. Assim como em As viúvas passam bem, a vivência pessoal é só um ponto de partida. O peculiar é que esse é um asilo de luxo, com mensalidades mais altas que um hotel cinco estrelas.