A Tragédia de Gaza

O que a passagem bíblica de Sansão e Dalila tem a nos dizer sobre os acontecimentos
de hoje na Palestina sob o fogo de Israel

Quadro
Quadro "Sansão e Dalila", de Oscar Pereira da Silva, datado de 1893, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes

Aquilo não podia terminar bem. A morte havia sido anunciada, desde o princípio. O anjo de Deus havia dito à mãe que seu filho seria consagrado, desde o nascimento, pois se tratava do redentor de seu povo. A mãe avisou ao seu esposo, contando-lhe do encontro com aquele homem que parecia ser um “anjo divino” terrível. E como há coisas que só uma mãe sabe, de sua boca a notícia saiu já com a fatídica premonição: O menino há de ser consagrado a Deus até o dia de sua morte. Assim, pois, começa a trágica vida de Sansão. O menino se faz amado. Quando se torna adulto, se apaixona por uma mulher filisteia. Apesar da oposição de seus pais, se vai com ela.

No caminho, cruza com eles um jovem leão. Sansão o mata e o desmembra com suas mãos. Não comenta sua façanha e, depois de passar uns dias ao lado de sua amante estrangeira, volta pelo mesmo caminho para ver os restos do leão. No cadáver carcomido da fera encontra um favo de mel. Sansão leva o mel e o dá a seus pais, que o comem com gosto, sem saber de onde provém.

Depois de ver os seus pais, ele volta à casa da mulher, onde celebra um banquete com 30 amigos, segundo o costume local. Como parte da diversão, Sansão apresenta a seus colegas de farra uma charada, um enigma que eles não conseguem resolver. Os jovens filisteus se irritam muito e pressionam a mulher, ameaçando-a de queimá-la viva na casa de seu pai, se ela não seduz Sansão e o faz contar a solução do enigma.

 A mulher atende às suas exigências. Sansão lhe revela a solução, e logo se enfurece por haver cedido à insistência da mulher, que chorava, dizendo: “só me odeias, não me amas. Apresentaste uma charada a meu povo e a mim não me disseste a solução.”

Volta à casa de seus pais e a mulher se vai com o chefe da gangue local. Algum tempo mais tarde, na época da colheita, quando Sansão tenta reencontrá-la, descobre que a mulher foi embora com outro homem. Em sua fúria, ele agarra 300 raposas, prende tochas na cauda delas e assim queima uma grande extensão dos campos de trigo dos filisteus.

Quando os filisteus queimam a mulher e seu pai, como retaliação, Sansão os ataca ferozmente. As pessoas da tribo da Judéia o capturam para entregá-lo aos filisteus que dominam o país. Sansão se liberta e mata mil de seus inimigos. Já não se trata de um homem traído e furioso que perdeu sua amante, ou de um homem enfurecido pela dor. Trata-se de algo muito pior. Sansão é agora o grande inimigo da nação filisteia.

 E assim continua a história. Sansão se vai com uma prostituta a Gaza. Seus inimigos o perseguem, esperando capturá-lo. Com sua força descomunal, ele arranca as enormes portas da cidade, e desaparece pelas montanhas.

 Logo se enamora de Dalila. Esta é subornada pelos chefes filisteus que querem saber o segredo da força de Sansão. Com esta nova amante em seu leito, Sansão se expõe novamente a uma mulher manipuladora. Dalila faz tudo o que pode para que Sansão revele seu segredo. E repete a técnica da primeira mulher filisteia na vida do herói, utilizando a pressão psicológica para conseguir o que quer. Tanto o perturba que Sansão sente que melhor estaria morto do que aguentando as insistências da sua nova amante, que se queixa: “como dizes ‘te amo’ e não me dás teu coração? Já me enganaste três vezes.”

 Na cena final, há um Sansão frágil, cego e algemado. Em mãos dos filisteus que só pensam em vingar-se dele. Não o executam no ato. Não se trata mais de um criminoso comum, nem de um assassino descontrolado que, por fim, caiu nas mãos da justiça do regime. Os filisteus o veem como grande inimigo de toda a nação filisteia.

Chamam-no de “o nosso inimigo”, “o destruidor de nosso país”, “o que matou muitos dos nossos”. O conflito amoroso, o conflito entre jovens que perdem os estribos em uma festa por orgulho insensato, o conflito entre o Poder e um criminoso que escapou tomou outras proporções. Trata-se agora de um conflito entre dois povos, duas culturas, duas nações. Os filisteus não se contentarão com um ato de justiça como a simples execução. Sua hybris os empurra aos extremos, transformando-os em personagens de uma grande tragédia filisteia, a tragédia de Gaza.

 Os filisteus humilham Sansão em seu grande templo em Gaza. Milhares de pessoas presenciam a humilhação do inimigo. No templo estão os líderes filisteus, além de homens e mulheres. Tanta gente quer ver o espetáculo selvagem, que até o teto do templo está sobrecarregado de espectadores.

 Tudo está em seu lugar, no momento que o cego Sansão, cuja cabeleira voltou a crescer enquanto os filisteus se divertiam com ele, como se fosse um animal de circo, comete o ato final. “Que morra minha alma juntamente com os filisteus”, ele diz, e derruba o templo. Três mil é o número dos mortos que pagam pela desmedida paixão sanguinária. “Mais foram os mortos que ele matou em sua morte do que os que matou em sua vida”, nos diz o narrador anônimo da tragédia de Gaza. A verdade é que todos pagam o preço da traição, do orgulho, do pleito entre os povos e as religiões, do desejo de aniquilar o próximo para mostrar-se mais poderoso e melhor.


Ioran Melcer é doutor em Linguística, escritor, tradutor e editor-chefe da revista digital Alaxon, publicada em Israel