Em Chicago, eu poderia começar pelos blues, por ventos fortes me arrastando pela Avenida Michigan ou, em direção à biblioteca da Universidade de Chicago, uma caminhada sobre o Lago Michigan para fotografar as variadas formas do gelo.
O que a biblioteca tem a ver com a Cidade Livre, o acampamento inaugurado em 3 de outubro de 1956 para onde vieram os construtores de Brasília? O que a arquitetura de Chicago tem a ver com a de Brasília?
Nada, a não ser por uma ótica subjetiva.
Dois anos após nossa chegada, de Bia e minha, em 2010, seria comemorado o cinquentenário de Brasília, que dera seus primeiros passos em 1956. Também em 1956 era inaugurado em Chicago o Instituto de Tecnologia de Illinois. As escadarias que flutuam em linha reta na entrada de seu Crown Hall desenhadas por Mies van der Rohe são da família de outra, também flutuante, que desce em caracol no Palácio Itamaraty, projetada por Niemeyer.
Chicago, a pioneira da arquitetura moderna, reconstruída após o grande incêndio de 1871, dialoga com a cidade modernista. Era o lugar que inspiraria uma ficção sobre a epopeia da construção de Brasília.
Há um ano, eu tomava notas para o romance que já tinha título e personagens, inclusive o narrador de suas recordações de infância naquele acampamento.
Mas de onde extrair tais recordações, se passei minha infância a 2.200 km de distância?
Na Universidade, eu tinha acesso a uma biblioteca extraordinária. Um dia perguntei a um bibliotecário quantos livros poderia levar para casa. “Quantos quiser”. Brinquei: “passo amanhã com um caminhão.”
Tive ideia melhor. Poderia trazer o que se encontrasse nas bibliotecas norte-americanas sobre a Cidade Livre?
Entre as fontes consultadas, vários números de um jornalzinho artesanal com crônicas dos que lá moravam; mapas de cada ano, de 1956 a 1960, para saber por onde poderiam andar meus personagens; histórias sobre as visões de uma motorista de caminhão que a transformaram na fundadora do Vale do Amanhecer; sobre a chegada de Bernardo Sayão, as vindas de JK e seus encontros com os trabalhadores; sobre prostitutas, muitas, e insuficientes para tantos homens solteiros ou sem suas famílias.
Complementei com a leitura do relatório da Missão Cruls para entender como eram a flora e a fauna antes da chegada dos candangos. Em Elizabeth Bishop encontrei o relato de sua visita em 1958. Entre os que a acompanhavam, Aldous Huxley, com a ilusão de que encontraria elementos para o romance de uma utopia, A ilha, que ele viria a publicar em 1962. Os dois visitaram o Hotel Rio de Janeiro, de uma condessa polonesa, que também havia aberto um cinema. A projeção de E Deus criou a mulher foi interrompida, e as mulheres convidadas a sair antes das cenas impróprias: as de uma mulher nua, Brigitte Bardot.
Mais documentos do que seriam necessários para um recheio verossímil, com cuidado para que a pesquisa não aparecesse, sob pena de sufocar a ficção.
O romance escrito em Chicago, que a crítica considerou encerrar, o Quinteto de Brasília, veio a ser publicado em 2010.
Assim é que minha Cidade Livre tem tudo a ver com a biblioteca da Universidade de Chicago. A história não termina no inverno gelado, mas noutro inverno, chuvoso. Não com um blues tocado por um sax melancólico, mas com um forró puxado pela sanfona. Na windy city, a cidade ventosa, as direções do vento na Cidade Livre saíam de um livro de geografia:
“Houve até um arrasta-pé.. Ainda era a estação das chuvas, e por isso os ventos fortes que vibravam na saia de tia Matilde vinham do norte, e não do leste e sudeste como no verão…”