Camões na música

Obra do poeta português é difundida no mundo através de parcerias insólitas com compositores diversos

Quando Camões escreveu Os Lusíadas, em 1572, não poderia supor que o seu poema, de exaltação às conquistas da expansão marítima portuguesa, seria o grande marco para a difusão de uma língua. A obra surgiu no contexto em que o latim e o castelhano eram a forma de comunicação oficial do país, relegando à fala coloquial do povo o tratamento de “linguagem”. O épico de Luís Vaz de Camões, pela força de sua engenhosa criação artística e modernização do português arcaico, contribuiu para conceder, a essa fala popular, o status de língua oficial. Isso provocou um impacto cultural que reverbera até hoje, tanto em Portugal quanto nas terras do além-mar, nas quais essa língua viajou por “mares nunca dantes navegados”.

Dentre essas oito terras onde o português aportou, o Brasil, hoje com 214 milhões de habitantes, se tornou o país com a maior quantidade de pessoas que o falam. Se a língua portuguesa encontrou seu lugar de brilho nas mais diversas formas de arte, ela tem, especialmente na música popular brasileira, uma divulgadora no planeta inteiro, através de composições e de artistas que ganharam relevância internacional, a partir do século XX. Basta lembrarmos do estrondoso sucesso da luso-brasileira Carmem Miranda e de ”Garota de Ipanema”, a segunda canção mais gravada no mundo em todos os tempos. Se a riqueza poética do prolífero cancioneiro brasileiro já se tornou, por si só, uma celebração à língua portuguesa, este também já enalteceu a obra de Camões.

Uma das canções mais famosas e tocadas no Brasil, ”Monte Castelo”, do Legião Urbana, faz referência, no título, à batalha ocorrida no norte da Itália, na Segunda Guerra Mundial, na qual morreu um tio de Renato Russo. O compositor, de ascendência italiana, causou surpresa entre a crítica e o público ao musicar versos do poeta português, nessa faixa que integra o disco As quatro estações. Lançado em 1989, esse é o álbum que mais vendeu cópias da banda de rock, já best-seller no país. Foram 2,6 milhões de unidades, que o colocaram na lista dos discos mais vendidos da história da indústria fonográfica brasileira, sendo o terceiro no ranking do rock nacional. 

“‘Monte Castelo’ foi feita a partir da junção de um soneto de Camões – ‘O amor é um fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente / é um contentamento descontente / é dor que desatina sem doer’ – com uma parte do Novo Testamento, uma das coisas mais belas que já foram escritas. Não gosto muito de São Paulo, porque acho que as coisas que ele falou são horrorosas. Mas, no caso da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, há umas coisas bonitas”, afirmou Renato Russo, em 1990, sobre sua composição, que não teve parceria com outros integrantes da banda.

A canção traz um diálogo intertextual entre o ”Soneto V”, do livro Rimas, de Camões, e trecho do capítulo 13 da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. A passagem bíblica diz: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine”. Na canção, o refrão diz: “Ainda que eu falasse a língua dos homens / E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria”. A caridade é substituída pelo amor altruísta. 

Dez anos antes, em 1979, uma musa presente em Os Lusíadas havia sido mencionada na composição de Belchior, ”Voz da América”, do disco Era uma vez um homem e seu tempo: “Que Inês possa me ouvir/ posta em sossego a sós / Num quarto de pensão / beijando um estudante”. Este verso faz referência ao do poeta português: “Estavas, linda lnês, posta em sossego”. Na vida real, Inês de Castro não esteve tão sossegada. No século XIV, foi uma aia de Dona Constança, esposa de Pedro I (da Dinastia de Borgonha), filho do rei Afonso IV. O monarca, ao saber da paixão do príncipe, enviou a dama de companhia de volta à sua terra, a Espanha.

Após o falecimento da esposa, Pedro trouxe a amante de volta, tiveram três filhos. Mas, ela acabou sendo morta, a mando do rei. Pai e filho entraram em guerra. Com a morte de Afonso, Pedro assumiu o reinado. Segundo a lenda, mandou desenterrá-la, para coroá-la. Daí, então, surgiu a expressão, comum até hoje, para algo irreversível: “Agora é tarde, a Inês é morta”. Tão famosa e cheia de meandros quanto Romeu e Julieta, a história de Inês e Pedro embrenhou-se no imaginário popular de Portugal, sendo contada através das gerações, com encenações até nas escolas, cultivando o mito do amor para além da morte. 

“Uma musa matriz de tantas músicas”, Inês, em 1987, não somente não estava morta no imaginário coletivo, como voltou à canção brasileira, desta vez, na voz de Alceu Valença, no ”Romance da Bela Inês”, presente no álbum Leque Moleque. “Apesar dos pesares não esquece / Nosso sonho real e atrevido / Bela Inês tem o peito dividido / Entre um porto seguro e o além-mar.” 

Na letra, Inês é o pseudônimo de uma musa da vida real de Alceu Valença. “Há um nexo causal. Evidentemente que a minha Bela Inês não é a bela Inês dele (Camões). É uma mulher mais bela, acho, do que a Inês dele. A inspiração dessa música é um caso amoroso que acabou, mas ficou na minha cabeça e, anos depois, eu fiz essa música”, conta o compositor, em entrevista à Pernambuco. E brinca: “Será que Camões fazia os poemas dele assim também?”.

O romance da Bela Inês causou rebuliço na gravadora BMG-Ariola, mas não por causa da musa do artista pernambucano, a herdeira de um jornal tradicional de São Paulo (segundo informa a biografia Alceu Valença – Pelas ruas que andei, de Julio Moura, publicada pela Cepe Editora), mas devido às citações aos revolucionários da América Latina, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Augusto César Sandino. 

Em 1987, o Brasil já tinha saído da ditadura, pero no mucho. Sem a votação direta para presidente ainda efetivada, permanecia o fantasma do retorno dos militares ao poder. O artista foi convocado à gravadora. O diretor Miguel Plopschi alertou que comunista não vendia disco. O cantor disse que não mudaria a letra. No final, ainda ameaçou o boicote da própria empresa, lembrando que era “da terra de Lampião”.

Curiosamente, o período da ditadura militar foi a época em que Camões passou a ser mais conhecido no Brasil. Isso ocorreu por conta da censura. Quando as matérias dos impressos eram vetadas em cima da hora do fechamento de uma edição de jornal, causavam um grande problema aos editores. Além do veto em si, que deixava o público sem a merecida informação, deixava um “buraco” na diagramação. Uma solução encontrada por Julio de Mesquita Neto, diretor do Estado de S. Paulo, em julho de 1973, foi preencher esse vazio com poemas. Após terem publicados Gonçalves Dias, Cecília Meireles, Olavo Bilac e Manuel Bandeira, no dia 2 de agosto, causou estranheza no público ler um fragmento de Os Lusíadas. Por isso mesmo, a solução foi repetida. E entre 1973 e 1975, trechos da obra-prima apareceram 660 vezes no jornal. 

“O poema de Camões ficou no imaginário coletivo como lembrança de um tempo em que os cortes dos censores promoveram sua publicação. Restou como símbolo de resistência", escreveu a historiadora paulista Maria Aparecida d’Aquino, da USP, na tese de mestrado em História Social, Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-78). Ou seja, a música popular brasileira acabou resgatando a obra do português de ficar associada ao período da ditadura militar.

Em 1984, um ano antes de o país sair da ditadura, Caetano Veloso tratou o poeta português com a irresistível irreverência do duplo sentido comum à música popular brasileira: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. O verso inicial faz parte de ”Língua”, uma canção que exalta, com muitas figuras de linguagem, a “Flor do Lácio”. Lançada há 40 anos, a gravação, que resgatou Elza Soares do ostracismo, também reafirmou o artista baiano como um dos raros letristas nacionais que mergulham fundo na inspiração totalmente intelectual de uma composição, deixando de lado o romantismo, o que o leva, muitas vezes, a escrever música quase como quem faz prosa e não poesia. “E quem há de negar que esta lhe é superior?”

“A música popular brasileira tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado (e aqui já se vislumbra um outro descobrimento, mútuo, em que o coração tende mais para o índio, que subiu à nau alienígena tão sem medo que ali adormeceu, do que para o grande Pedr'álvares, que mal pôs os pés em solo americano)”, observou Caetano Veloso em Verdade Tropical. “Ela é a mais eficiente arma de afirmação da língua portuguesa no mundo, tantos insuspeitados amantes esta tem conquistado por meio da magia sonora da palavra cantada à moda brasileira.”

Se o Brasil tem o seu punhado de homenagens a Camões na música, em Portugal há muito mais composições que celebram, mencionam ou adaptam a obra do poeta, como ”Verdes são os campos” e ”Endechas a Bárbara escrava”, musicados pelo compositor e cantor José Afonso, também conhecido como Zeca Afonso. Ou há simplesmente músicas inspiradas na genialidade do autor, como a sinfonia ”Messe de Requiem”, considerada a obra-prima do pianista João Domingos Bomtempo (1775-1842). O também pianista e maestro José Viana da Mota (1868-1948) honrou o autor em duas obras sinfónicas: a abertura ”D. Ignez de Castro” e a sinfonia ”À Pátria”. A personagem também levou Manuel Inocêncio Liberato dos Santos a escrever sua primeira ópera.

“Só 40 anos após a estreia, em Lisboa, do ”Requiem à memória de Camões” de Bomtempo – composto pouco depois da publicação da monumental edição de Os Lusíadas em Paris (1817) pelo Morgado de Mateus – é que os músicos portugueses se associaram aos tributos de homenagem ao poeta com a criação de obras sinfônicas: as marchas ”Homenagem a Camões”, de Guilherme Cossoul, e ”Adamastor (à memória de Camões)”, de Arthur Reinhardt, datam dos primeiros anos da década de 1860, quando se anunciava a consagração de um monumento ao poeta”, apontou o historiador Rui Magno Pinto, na Revista Portuguesa de Musicologia.

“Nas seguintes décadas (segunda metade do século XIX), o agravamento das tensões sociais e a percepção do atraso do país, agudizadas por consecutivas crises financeiras, pelo subsequente fracasso dos governos na política internacional e pela proposta de um federalismo ibérico que questionava a identidade nacional, inspiraram uma nova apropriação de Camões como símbolo de 'resistência e 'expressão do homem português'”, destacou Magno Pinto, mencionando, também, Ensaio sobre Camões (1872), de Oliveira Martins, para o qual a epopeia do poeta “dotaria os cidadãos de um novo patriotismo, que o autor defendia como sentimento nuclear de uma nacionalidade portuguesa de índole moral, em oposição a uma concepção nacionalista de base geográfica-etnográfica”.

Se, em Portugal, Camões é a maior referência literária do país, Amália Rodrigues seria o seu equivalente gigantesco na música. Assim como o poeta, também revolucionou a sua área de atuação, transformou o fado nos aspectos musicalidade, temática e interpretação. Símbolos máximos da portugalidade, a cantora e o poeta, de tempos distintos, “se encontraram” em alguns momentos em “parcerias” póstumas. O encontro se deu nas vezes em que a artista escolheu poemas camonianos para serem musicados pelo compositor luso-francês Alain Oulman. O resultado foram as músicas ”Lianor”, ”Dura Memória”, ”Erros Meus” e ”Com que voz”.

Tendo sido escolhida para interpretar Amália no musical homônimo de 2005, a cantora Lina Rodrigues não apenas segue a mesma profissão e divide o mesmo sobrenome com a maior diva do fado, ela também canta o poeta português. No seu mais recente álbum, Fado Camões, interpretou, com sua voz vigorosa e cristalina, poemas, que deu origem a músicas como ”O que temo e o que desejo”, que resgatam o espírito ibérico, com galaico- português, cantada com o espanhol Rodrigo Cuevas. Há poemas musicados por diversos compositores, como Amélia Muge e a própria fadista. 

“O estilo de Camões é marcado por uma profunda reflexão sobre a condição humana, sentimentos de saudade, amor e perda, além de uma linguagem poética rica e emocionalmente carregada. Estas características coincidem com as temáticas do fado, que também falam das emoções como tristeza, melancolia e nostalgia. Tanto Camões quanto o fado conseguem transmitir uma sensação de profundidade emocional, criando uma conexão mágica através das palavras e da música”, analisou Lina Rodrigues, em entrevista à revista Pernambuco.

A cantora, que não gravou nenhum verso já gravado por Amália Rodrigues, explicou os seus critérios de escolha do repertório: “Na minha seleção, era importante que a temática de Camões e as estruturas dos fados tradicionais estivessem ligadas. Ou seja, os fados tradicionais são músicas, geralmente de uma composição musical pobre onde podem se encaixar poemas à escolha. Claro que cumpre regras, nomeadamente as regras de rimas de cada verso. Há fados tradicionais com quadras, quintilhas, sextilhas, decassílabos, e, dentro dessas variadas formas, optei por escolher os poemas de Camões que mais se identificassem comigo e com a minha forma de cantar”.

Além de o próprio Camões ter escrito sobre temas muitos similares àqueles já abordados no fado, a própria palavra fado aparece inúmeras vezes na sua lírica. “Com que voz chorarei meu triste fado, que em tão dura prisão (paixão) me sepultou”, escreveu Camões, cantou Amália, em ”Com que voz”. A vida dele também caberia dentro da temática do próprio estilo musical português, repleta de histórias de erros, má sorte e desilusão amorosa. 

Como os “parceiros” musicais insólitos do poeta vêm comprovando há séculos, Camões escreveu versos que poderiam ser cantados e musicados. E essa musicalidade nos seus poemas talvez já fosse uma influência do próprio ambiente musical que o cercava, em sua época, na Península Ibérica e nos lugares por onde o autor aportou. Para Amália Rodrigues, “Camões é o maior fadista que existe, e um poeta não tem de estar numa gaveta ou numa prateleira.” Pois, que continue a navegar nas ondas sonoras.