Entre a enxada e o lápis

O paranaense Rogério Pereira é o escritor-zagueiro que a literatura salvou

A cidade de Campo Largo fica a 32 quilômetros de Curitiba, no sentido oeste, como o de quem viaja da capital paranaense para a foz do Rio Iguaçu. Famosa pela produção de louças e cerâmicas é lá que ainda se escava a única mina de ouro ativa do Paraná. Também é onde o escritor Rogério Pereira mora sozinho numa “casa-biblioteca”.

Homem de muitos rituais, ao entardecer, depois do chá, Rogério se ocupa de escolher um livro entre os mais de 20 mil volumes que tomam as paredes projetadas como estantes para sua sessão diária de leitura diletante. Mesmo após passar o dia pensando e trabalhando com literatura, Rogério se permite tempo para ler sem compromisso. Sempre antes do prato de salada que precede a sessão diária de cinema das 20h30. Se nada o atrapalhar, Rogério assiste a um filme por dia e anota, há muito anos, todos os que viu numa planilha (já viu 215 neste ano). Mas é antes do filme, durante as duas horas de leitura livre, que ele sente o prazer transgressor de sua conquista mais improvável.

“Não era para eu ter nada disso. De onde eu vim, é preciso ter muitas coisas antes de sentir a satisfação de uma leitura. Você tem que saber ler. Precisa ir para a escola. Precisa que na escola tenha banheiro. Precisa ter comida na mesa. Não era algo que estava no meu caminho, mas hoje os livros estão todos aí”, diz.

A casa é a mesma em que ele encontrou a mãe morta na cama, em 2013, no episódio que o motivou a escrever seu romance mais recente, Antes do silêncio. Lançado no ano passado pela editora Dublinense, o livro foi um dos finalistas do Prêmio São Paulo 2024.

Dez anos antes, seu romance de estreia, Na escuridão, amanhã, lançado pela finada Cosac Naify, também foi finalista da mesma premiação. Bem recebido pela crítica brasileira, o livro foi traduzido em espanhol por uma editora colombiana.

Uma década separa os livros e isso não é coincidência. É difícil pensar em outro autor brasileiro de qualquer tempo que tenha arquitetado um projeto literário de forma tão meticulosa quanto Rogério. Se a Igreja Católica calcula seus movimentos no intervalo de séculos, o escritor de Campo Largo planeja seus livros em décadas.

Foi ele quem escolheu estrear aos 40 anos, única imposição que fez a sua primeira editora. Não só por achar tolos os jovens que já têm muitos livros publicados, mas porque era a mesma idade da estreia de Graciliano Ramos (1892-1953), o autor de Vidas secas, uma de suas obsessões literárias. Há outras como Um copo de cólera, de Raduan Nassar e É isto um homem, de Primo Levi (1919-1987).

Rogério fala que fez o primeiro livro para “matar meu pai, mas fracassei, pois ele nunca o leu e ainda está vivo”. Já o segundo é sobre a morte da mãe. O terceiro, programado para 2033, começa com o avô enforcado numa árvore e encerra o que chama de “trilogia da ausência”.

Para o autor, contudo, o tema comum do tríptico não é a morte, mas a sobrevivência. Sua história tem pontos de contato com a família de Fabiano e de tantos outros migrantes da miséria. Só muda o cenário. Rogério vem de um mundo analfabeto, pobre e violento na zona rural do oeste de Santa Catarina.

A maior cidade perto da colônia onde nasceu – em parto traumático que durou três dias – é Galvão, que atualmente tem cerca de 4 mil habitantes. A casa de chácara numa roça estéril, não tinha água encanada, nem luz elétrica.

Por ocasião do lançamento de Antes do silêncio, Rogério participou do podcast Página Cinco com o jornalista Rodrigo Casarin. Na conversa, ambos construíram a imagem que sua literatura estaria entre a “enxada e o lápis”, visto que o escritor foi a primeira pessoa totalmente alfabetizada de sua família. A primeira para quem uma tora de madeira podia ser usada para escrever e não para capinar.

Imagem que faz pensar na cosmogonia do historiador Luiz Antônio Simas para o Brasil contemporâneo. Como num dos poucos países cujo nome é tirado de uma espécie de árvore, o uso que se faz do pau quer dizer muita coisa.

Simas costuma dizer que, quando a madeira parou de bater nas costas dos negros escravizados e virou baqueta para percutir os tamborins, nasceu o Brasil republicano. Na vida de Rogério, a tensão é outra, mas parecida.

Cadernos e mochilas

Há muitos anos, porém, o escritor usa o lápis para encher os milhares de cadernos nos quais faz anotações o tempo todo. Seus amigos costumam dizer que os próximos livros de Rogério já estão todos escritos, mas só ele sabe em onde.

Quem leu seus romances sabe – e quem ainda não leu, por favor – que seus pais se engajaram na última grande corrente migratória de êxodo rural que inchou as periferias das grandes cidades no final da década de 1970.

A primeira parada foi em Pato Branco, no sudoeste do Paraná. Em 1980, o pai pegou carona num caminhão para percorrer os 450 km até Curitiba. A mãe e os filhos correram o mesmo trecho do mesmo jeito, meses depois, quando o pai se estabeleceu numa chácara de plantação de flores, no Bairro do Santo Inácio, afastado do centro e à beira do Rio Barigui.

A nova vida, porém, não era em nada melhor que a antiga. Uma realidade de muitas privações e muita violência motivada, principalmente, pelo alcoolismo do pai. “Não tive infância. Assim que chegamos em Curitiba, aos sete anos, eu já era adulto”, disse.

Seus pais nunca estudaram e eram analfabetos funcionais. Sua mãe, porém, decidiu que com Rogério seria diferente. Transformou um pacote de arroz numa mochila e o matriculou na escola Ângelo Trevisan, no Bairro da Cascatinha.

“Ia para a escola para comer e não precisar trabalhar em casa. Há alguns anos, voltei lá, já como diretor da Biblioteca Pública [do Paraná] e ganhei uma canequinha azul, a mesma onde comia as sopas e polentas da merenda”, lembra.

Zagueiro-central

Foi nessa época que Rogério aprendeu o que sabe fazer melhor na vida: ler e jogar futebol. “Eu era um bom aluno, esforçado e sempre fui um bom leitor”, disse. Quanto ao futebol, Rogério cogitou se tornar profissional até o momento de prestar o vestibular.

Com 1,84 m de altura, velocidade aliada à técnica, ele é zagueiro central do time “cinquentinha” do Fanático de Campo Largo, representante local na Suburbana, o campeonato amador de Curitiba que em outras partes do país pode ser chamado de “várzea”.

Num país em que a maioria dos literatos não sabem bater um lateral, Rogério sabe realmente controlar o balão esférico e se diverte dizendo que em seus momentos de folga não perde tempo conversando com outros escritores, mas jogando bola com companheiros que nem sabem o que ele faz para viver.

Aprendendo na rua, na escola, mas não no lar, ele foi se criando sozinho. Nas festas de fim de ano, a família voltava para o interior onde a vida ainda era no século XIX. A agricultura rudimentar e o abate de animais daqueles dias estão muito presentes na sua literatura. “Quem mata o porco e ouve seu berro agonizante nunca esquece. Nem do cheiro do sangue e da banha pelo chão. Um cheiro de sobrevivência.”

Aos 13 anos, era bom aluno, apesar de já fumar e beber. Vendia redações e fichas de leitura aos colegas relapsos e ajudava a família nas entregas de flores em bancas, feiras e cemitérios. Nessa altura, precisou escolher entre estudar à noite ou parar de vez. O irmão mais velho parou. Hoje é instalador de calhas e pouco se falam.

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