Mark Twain, “o pai da literatura americana”

Os 190 anos do nascimento de um precursor das transformações na literatura moderna, no jornalismo, no humor e na sociedade, autor de 'Huckleberry Finn", que inovou no uso da língua falada pelo povo

Na sua estada em Viena, entre 1897 e 1899, Mark Twain, branco feito um papel-ofício, já um escritor consagrado, certo dia, foi questionado se era um americano, ao que imediata e sagazmente respondeu: “Eu não sou um americano. Eu sou o americano”. Enquanto sua modéstia tirava férias, a perspicácia trabalhava com afinco e precisão. Afinal, se houve um estadunidense do século XIX que mereceu um artigo definido, “O pai da literatura americana” (como afirmou William Faulkner), esse é o autor de Aventuras de Huckleberry Finn, livro que Ernest Hemingway apontou como “o” marco de toda a literatura norte-americana moderna.

Em 1884, ano do lançamento deste clássico sobre a amizade entre um garoto branco e um negro escravizado em busca da liberdade, os Estados Unidos ainda viviam sob o passado recente de 240 anos de escravidão. Embora o tráfico escravista tenha sido proibido em 1808, a escravatura foi encerrada oficialmente em 1865, com a ratificação da 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, após o término da Guerra Civil Americana – conflito que teve sua inspiração no livro abolicionista A cabana do Pai Tomás (Harriet B. Stowe, 1852). 

Ambientado no período pré-Guerra, Huckleberry Finn inovou no uso da língua falada pelo povo, com sotaques e expressões idiomáticas. Essa escolha linguística, rompendo com a formalidade do inglês britânico que dominava a literatura norte-americana, permitiu ao escritor retratar com fidelidade o perfil social dos personagens. Outro ineditismo é que, ao invés de usar um enredo linear tradicional, o autor estruturou a narrativa a partir de uma jornada repleta de episódios.

Em Huckleberry, o espírito livre dos dois personagens principais leva ambos em aventuras pelas águas que Mark Twain conheceu, desde cedo, na sua infância no estado do Missouri. O Rio Mississipi lhe deu inspiração, nome, fama e sustento. Nascido Samuel Langhorne Clemens na vila de Florida, no Missouri, em 30 de novembro de 1835, duas semanas após a passagem do Cometa Halley na órbita da Terra, Sam era o sexto de sete filhos de Jane Lampton Clemens e do mercador John Marshall Clemens. Apenas quatro sobreviveram à infância: ele, Orion, Henry e Pamela.

Nos seus quatro anos de idade, os Clemens mudaram-se para Hannibal, Missouri, que, mais tarde, serviria como cidade-modelo para Aventuras de Tom Sawyer e Aventuras de Huckleberry Finn. Na infância, Sam era uma criança com uma memória prodigiosa, conseguindo lembrar de sermões e reproduzir conversas inteiras que tivera meses antes. Era também sonâmbulo, tinha convulsões, pesadelos, visões paranormais e sonhos premonitórios, como o que teve com a morte do irmão Henry, em 1858, em um acidente no barco a vapor Pennsylvania.

Em 1851, seu pai morre, vítima de pneumonia, e a família passa, então, a enfrentar uma série de dificuldades financeiras. O irmão mais velho, Orion, adquire e começa a editar o Jornal de Hannibal, enquanto Sam largou a escola aos 12 anos e começou a trabalhar como jornaleiro e tipógrafo. Em 1853, ele viajou a trabalho para St. Louis, Nova York e Filadélfia. Em 1857, conheceu um jovem piloto fluvial, Horace Bixby, que o ensinou a navegar pelos 1.930 quilômetros de canais do baixo Mississipi, entre St. Louis e Nova Orleans. Dois anos depois, ficou orgulhoso ao receber a licença de piloto de barco a vapor para o trecho do rio. Essas experiências formaram o alicerce para os livros Vida no Mississippi e Huckleberry Finn.

O rio também ajudou a criar o pseudônimo, adotado pela primeira vez em 1863. A ideia do nome artístico surgiu após ouvir o grito do barqueiro na sondagem do nível da água, com uma corda e um peso: “mark twain!” (“twain” é two, em inglês arcaico). Em português, “segunda marca” (de braças, termo de navegação fluvial que equivale a cerca de 3,66 metros de profundidade). É uma confirmação de que o rio está com profundidade segura para navegar com o navio a vapor. Nessa época, ao ler narrativas sobre o Rio Amazonas, ele cogitou conhecê-lo, mas desistiu ao saber das dificuldades para chegar de barco ao Brasil.

Na biografia Mark Twain, Ron Chernow ratifica que desde a infância em Hannibal, Missouri, o Rio Mississippi significava liberdade para Mark Twain. “(...) um lugar onde ele podia deixar de lado as preocupações mundanas, entregar-se à alegria e encontrar refúgio das restrições da sociedade. Para um jovem protegido de uma cidade pequena, a vida agitada a bordo dos barcos a vapor que navegavam pelo rio, repletos de figuras desregradas, oferecia uma porta de entrada para um mundo mais amplo”, escreve o biógrafo no livro de 1174 páginas, publicado nos Estados Unidos em 13 de maio deste ano e com previsão para ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, ainda sem data definida.

“Os pilotos se destacavam como a realeza indiscutível deste reino flutuante, e o orgulho dos primeiros anos de Twain foi que, pouco antes da Guerra Civil, ele conseguiu uma licença em apenas dois anos. Por mais árduo que fosse para um navegador iniciante memorizar os infinitos detalhes de um rio mutável com seus obstáculos, bancos de areia e margens instáveis, Twain valorizava esse período desafiador de sua vida. Mais tarde, ele admitiu que ‘eu amava a profissão muito mais do que qualquer outra que tenha seguido desde então’, sendo a razão bastante simples: ‘um piloto, naquela época, era o único ser humano irrestrito e inteiramente independente que vivia na Terra’. Em contraste, até mesmo reis e diplomatas, editores e clérigos se sentiam amordaçados pela opinião pública. ‘Na verdade, todo homem, mulher e criança tem um mestre, e se preocupa e se inquieta na servidão; mas, no dia em que escrevo, o piloto do Mississippi não tem nenhum.’ Essa busca pela verdade e liberdade irrestritas formaria uma jornada definidora da vida de Mark Twain”, analisa Chernow.

Em 1861, a Guerra Civil irrompe, atravancando o comércio fluvial. Então, Sam alistou-se e serviu por duas semanas com soldados confederados irregulares, mas desertou e se mudou para Nevada com seu irmão Orion, que foi nomeado secretário do governador James W. Nye. Em Virginia City, tentou a função de mineiro, mas desistiu. Na sequência, em 1862, foi trabalhar no Territorial Enterprise, o jornal da cidade, onde, em 3 de fevereiro de 1863, assinou, pela primeira vez, como Mark Twain, no relato de viagem Letter From Carson – re: Joe Goodman; party at Gov. Johnson's; music.

Quando sua vida parecia estar se estabilizando, Twain, em 1864, foi forçado a deixar Nevada, após ser desafiado por um colega jornalista para um duelo, e o jovem escritor fugiu para São Francisco, onde passou a escrever para revistas e jornais. Em 1865, escreveu e lançou o livro O famoso sapo saltador do Condado de Calaveras, um sucesso instantâneo que o tornou conhecido nacionalmente. No ano seguinte, ele viajou às Ilhas Sandwich (hoje Havaí) como correspondente do Daily Alta California e seus relatos de viagem, ao conquistarem popularidade, se tornaram a gênese de suas primeiras famosas palestras bem-humoradas.

Com o sucesso desses textos, o jornal custeou sua viagem à Europa e à Terra Santa, de 8 de junho a 19 de novembro de 1867. Durante a excursão, Twain escreveu uma série de cartas e relatos jornalísticos inicialmente publicados no periódico, e, posteriormente, reunidos em The Innocents Abroad. Lançado em 1869, o livro vendeu mais de 100 mil cópias, em dois anos – sendo superado apenas pelo A Cabana do Pai Tomás, com mais de 300 mil cópias no primeiro ano.

Foi nessa viagem que o jovem escritor conheceu Charles Langdon, que, ao mostrar a foto de sua irmã a Mark Twain, ganhou um cunhado. O escritor apaixonou-se por Olivia Langdon (Livy), com quem casou em 1869. Depois do casamento, Twain logo ingressou no estilo de vida de 1% da sociedade. O sogro milionário, que fizera fortuna com carvão, comprou uma mansão para o casal, com os funcionários inclusos. Os Clemens não foram privados de nada. Então, a venda de seus livros, como The Innocents Abroad, era importante para ajudar a manter esse alto padrão de vida e o status da família.

Mais de 150 anos depois de seu lançamento, The Innocents Abroad, quase um precursor do jornalismo gonzo, pela narrativa em primeira pessoa e sem pretensões de objetividade, é questionado por retratar de forma preconceituosa lugares e habitantes de terras consideradas exóticas. A acadêmica Nancy Bakht, da University of South Florida, analisou, em 2006, a obra e apontou muitas das maneiras pelas quais o autor expõe, contra árabes e muçulmanos, um preconceito que não demonstra contra a maior parte dos europeus – com exceção dos portugueses da Ilha de Faial, chamados de "lentos, pobres, indolentes, sonolentos e preguiçosos". A pesquisadora afirma que Twain "reclama e ridiculariza de tudo ao longo do caminho”, mas que “a mudança no nível de intensidade e veneno em sua descrição dos árabes e turcos é inegável”. Ela argumenta que defender Twain como “apenas um comediante” é insustentável e que sua animosidade é influenciada por um histórico de islamofobia ocidental.

Seja como for, um sinal de alerta soou quando o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, em 2009, levou consigo The innocents abroad para presentear o então novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que costumava defender a solução de dois estados em relação à questão palestina, terra visitada e retratada por Mark Twain no livro.

O diário de viagem fazia tanto sucesso nos Estados Unidos que o General Ulysses S. Grant, comandante-em-chefe do Exército da União durante a Guerra de Secessão e o 18º Presidente dos Estados Unidos, após sua presidência, aportou na Palestina durante suas viagens em 1877-79. Na bagagem, o militar carregava três livros, um deles, The innocents abroad. A dúvida é se, na época, os leitores da publicação levaram os relatos a sério demais, para o bem ou para o mal, em um século em que não havia politicamente correto e as noções de xenofobia não eram discutidas abertamente como hoje.

“Embora o livro de viagens de Mark Twain tenha sido enormemente popular – e ainda seja considerado o livro de viagens mais lido da literatura americana – apenas uma parte relativamente modesta dele se concentra no Oriente Médio. No entanto, The Innocents Abroad desempenhou um papel crucial na apresentação da Palestina Otomana ao imaginário americano. Mas como se tornou parte essencial da viagem de Grant, bem como de outros viajantes à Terra Santa durante esse período? Como a apropriação irreverente e ‘turística’ do livro dramatizou as mudanças nas atitudes americanas em relação à Palestina Otomana, particularmente com o início da colonização sionista?”, questiona Hilton Obenzinger no livro American Palestine: Melville, Twain, and the Holy Land Mania (Princeton University Press, 1999).

Essa controvérsia é bem menos estremecedora da imagem de Mark Twain do que o uso, em Huckleberry Finn, do termo nigger (em português, “crioulo”), que, segundo o dicionário de inglês Merriam-Webster, “é quase certamente o insulto racial mais ofensivo e inflamatório da língua inglesa, um termo que exprime ódio e intolerância. Seus usos autorreferenciais por e entre pessoas negras nem sempre têm a intenção ou são tomados como ofensivos (embora muitos se oponham a esses usos também), mas seu uso por uma pessoa que não é negra para se referir a uma pessoa negra só pode ser considerado como uma expressão deliberada de racismo pejorativo”. A palavra aparece 219 vezes no livro.

Em janeiro de 2011, as novas edições americanas de As aventuras de Tom Sawyer e de Aventuras de Huckleberry Finn retiraram a palavra de suas páginas. No primeiro livro, o personagem Injun Joe passou a ser chamado de Indian Joe. Injun é um termo considerado obsoleto, como “índio” no Brasil. Sobre essas mudanças, o New York Times publicou um editorial posicionando-se de forma contrária: “Nós estamos horrorizados e pensamos que a maioria dos leitores, sejam puristas ou não, também ficarão (...). É impossível ‘limpar’ Twain sem causar danos irreparáveis à sua obra”. A tradutora Vera Lúcia Ramos, em sua tese de doutorado pela USP (Universidade de São Paulo), afirma que "a obra ataca o racismo. E como isso se dá? Na caracterização positiva do negro”, e que “o termo nigger cumpre o papel de denúncia. Twain explicita a maneira desrespeitosa de como os negros eram tratados”.

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