Pornógrafo vulgar ou referência da literatura erótica? A segunda opção parece mais apropriada para descrever o tradutor, poeta e romancista belga-francês Pierre-Louÿs (1870-1925), cujo centenário de morte se completou em 6 de junho de 2025. Ao misturar sensualidade, psicanálise e cultura grega antiga para refletir a complexidade da mente humana, Louÿs subverteu pensamentos vigentes que o tornaram tão admirado quanto maldito. Nascido e criado na aristocracia, criticava a elite e seus falsos moralismos, a partir do que se chama de sexo livre.
Seu nome figura ao lado de outros grandes da literatura erótica, como os franceses Guillaume Apollinaire, Marquês de Sade e Charles Baudelaire. O ‘pai’ do surrealismo, André Breton, que enxergava a verve lasciva das letras como conceito essencial do movimento artístico-literário, foi um de seus grandes fãs. Nas poucas vezes em que saiu da França, Louÿs esteve em Londres na companhia de Oscar Wilde, a quem conheceu em 1891, nos salões literários de Paris. O irlandês já afamado também nutria afinidades no campo estético da arte, do humor irônico e na beleza do amor humano.
Com duas dezenas de livros publicados, Pierre Louÿs se tornou conhecido por obras como Esse estranho objeto do desejo - La femme e le pantin, em francês (1899), adaptada para o cinema, em 1977, pelo maior surrealista da sétima arte, o diretor espanhol Luis Buñuel, tornando-se um clássico. A obra gira em torno dos personagens Conchita e Mathieu (Fernando Rey). Este, que também é chamado pela versão espanhola, Mateo, se apaixona por aquela que é interpretada por duas belas atrizes, a francesa, de pele alva, Carole Bouquet e a espanhola, morena, Angela Molina. Em francês, a palavra pantin significa fantoche, e é exatamente assim que Mathieu/Mateo é tratado por Conchita, ora bondosa, ora cruel, o que faz dela “objeto” de desejo e de repulsa. As tiradas humorísticas permeiam as complexidades amorosas. Buñuel toma, ainda, a liberdade criativa de trazer eventos contemporâneos para a sua narrativa, numa época em que a Espanha vivia a insegurança de atentados terroristas.
No livro, Conchita é a andaluza Concha Pérez e o francês é André Stevenol, que ouve as aventuras e desventuras de Dom Mateo. Já faz uma semana que é carnaval em Sevilha, na Espanha, e André ainda não viveu nenhum romance momesco. Até que em uma batalha com cascas de ovos vazias recheadas com mensagens dentro deles, André dispara um ovo com a palavra “quiero” para uma desconhecida que já vira na rua e descobre, mais tarde, ser dançarina andaluza Concha. A palavra “quiero” pode significar tanto paixão quanto capricho; ordem ou súplica, como revela o autor. “Às vezes não passa de pura ironia”.
André fica obcecado por Concha e tenta conquistá-la, mas é desaconselhado pelo experiente D. Mateo, que viveu um amor caótico com ela, entre o desprezo e a paixão. “Não consigo encontrar palavras suficientes para dizer o quanto te odeio”. Livro e filme afirmam um estereótipo de mulher jovem e bela que, detentora dos sentimentos masculinos, manipula-os do jeito que deseja. Essa característica conquistadora faz menção a Giácomo Casanova, a quem Louÿs admirava.
Uma farsa grega
Outra obra igualmente famosa de Louÿs que merece destaque é As canções de Bilitis - Les chansons de Bilitis, em francês (1894), deu o que falar não somente pelo conteúdo, composto por versos eróticos, principalmente, lésbico.
Intimidades
Perguntas por que me tornei lésbica, ó Bilitis.
Mas que tocadora de flauta não o é um
pouco? Sou pobre. Não tenho onde dormir.
Fico na casa da que me deseja e agradeço-lhe
com o que tenho.
Desde pequeninas dançamos nuas. E que
danças, minha querida: os doze desejos de
Afrodite. Olhamo-nos, comparando nossa
bela nudez
Louÿs alegou que a obra seria uma tradução do original, em grego antigo, que havia sido encontrado num túmulo na Ilha de Chipre. Bilitis seria uma contemporânea de Sapho, por sua vez uma poeta grega da Ilha de Lesbos. A farsa era bem crível graças ao prefácio do autor. Bilitis nasceu no século VI, filha de um pai grego e de uma mãe fenícia. Falava frequentemente com as ninfas, mas nunca as viu. Lesbos era o eixo do mundo. A meio caminho entre a bela Ática e a suntuosa Lydia, tinha como capital uma cidade mais iluminada do que Atenas e mais corrupta do que Sardis. “Em uma sociedade em que os maridos estavam tão ocupados à noite pelo vinho e pelas dançarinas, era inevitável que as esposas se reunissem e encontrassem entre si consolo em sua solidão”, escreve o autor.
Quando a farsa foi descoberta, Louÿs já havia conquistado os leitores, e, ainda assim, sua obra ganhou importância histórica. Coube ainda ao famoso músico e compositor impressionista Claude Debussy musicar os poemas do amigo. Houve, aliás, quem afirmasse à época — estudiosos da cultura grega, inclusive — que já havia traduzido a história antes de Louÿs.
A notável erudição — bibliófilo, possuía mais de 20.000 volumes em sua biblioteca — sobre a cultura grega clássica contribuiu bastante para colocar Louÿs no topo da literatura francesa. O fascínio pela Grécia Helenística era tamanho que o fez trocar o próprio nome: Pierre Félix Louis virou Louÿs para ter por perto a letra grega Y. Daí o título de seu primeiro e mais famoso romance, Aphrodite (1896), uma apologia ao amor físico entre o artista Demétrio e a sacerdotisa de Afrodite, Crísis. O cenário é a cidade de Alexandria no século I a.C, bem mais libertina e muito menos puritana do que as sociedades dos séculos XX e do momento em que estamos vivendo.
Crísis nasceu durante a temporada de Louÿs com Wilde em Londres, quando este o apresentou à atriz francesa Sarah Bernhardt, a quem dedicou um conto que deu origem à obra Aphrodite. A amizade com Wilde rendeu a Louÿs uma grande homenagem por parte do autor de O retrato de Dorian Gray: a peça teatral Salomé (1891), inspirada em passagens bíblicas.
No prefácio de Aphrodite, disse o autor: “O amor, com todas as suas consequências, era para os gregos o sentimento mais virtuoso e mais fecundo em grandeza. Nunca lhe atribuíram as ideias de impudicícia e de imodéstia que a tradição israelita trouxe para nosso meio com a doutrina cristã. Heródoto (1,10) diz-nos muito naturalmente: ‘Entre alguns bárbaros, é uma vergonha aparecer nu no meio de gente’”.
Inspirado nas ideias e emoções do simbolismo e no formalismo digno do parnasianismo, iniciou seus escritos literários ainda na adolescência. Mas é menos conhecido do que seus contemporâneos simbolistas e admiradores Paul Valéry e André Gide, este vencedor do Nobel de Literatura de 1947. Encantado pela literatura libertina, o belga -francês é também integrante do movimento literário batizado de decadentismo, antagônico ao parnasianismo, cujo maior nome é Paul Verlaine. É do esteta do inconsciente que Louÿs vai buscar inspirações no exotismo oriental.
CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA
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