Xico Sá e suas utopias malucas

Ele saiu do Cariri cearense com o sonho de ser escritor. Em suas crônicas, honra seus mestres e, agora, vê "Chabadabadá" virar minissérie, enquanto ainda não escreve o “Crime e castigo" do Crato

Um dos seis filhos de seu Francisco Nildemar e dona Maria do Socorro, ele nasceu Francisco Reginaldo de Sá Menezes em 6 de outubro de 1962, pelas mãos da parteira Salvanira em um hospital do Crato, no Ceará, longe da zona rural de Santana do Cariri – por acaso. “A parteira era muito amiga da minha mãe e já tinha uma camaradagem em um dos hospitais, mas só fiz nascer mesmo lá. Minha infância foi no Sítio Cobras, numa das 29 cidades da região do Cariri cearense, ali na Chapada do Araripe, que junta Pernambuco, Ceará e um pouquinho do Piauí”, recorda o hoje ilustre filho da terra, que dela partiu ainda moço, nutrido pela “utopia maluca de ser escritor”. “No começo dos anos 1960, naquele lugar completamente fora do universo letrado, onde nem livro didático chegava direito, dei a sorte de ter um professor que tinha rodado o mundo todo, chamado Geraldo Bilé, e que me fez um leitor improvável no sopé da chapada”, emenda. Se Bilé era o “milagre”, como seu ex-aluno descreve, talvez uma das suas principais obras seja este cronista que assina seus rabiscos em reportagens, romances e outras linhas sob o nome de Xico Sá.

Jornalista e escritor, autor de livros como Big Jato (Companhia das Letras, 2012), Modos de macho & Modinhas de fêmea (Record, 2003), Divina comédia da fama (Objetiva, 2004) e Sertão Japão (Casa de Irene, 2018) e atual colunista do Diário de Nordeste e do ICL Notícias, Xico Sá é homem de vários predicados, porém se define mesmo pelo gênero que abraçou com fervor. “Sou um cronista, um cara que narra seu tempo, seja na literatura, seja em um portal. Se eu preencher ‘cronista’, me sinto honrando a velha crônica brasileira, fazendo crônica com política, com humor, com lirismo, com tudo, sabe? Ali na tradição de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria, que amo inteiramente até hoje, um modelo para mim, pois escrevia texto de humor para o rádio, fazia samba-canção, era compositor de frevo, narrador esportivo e um puta cronista de amor, inspirado, derramado, passional e entregue à noite”, comenta na entrevista à Pernambuco por telefone de São Paulo, numa pausa na efervescente temporada de lançamento de O cão mijando no caos (e-galáxia, 2024), sua mais recente compilação de crônicas.

Este último título – O cão mijando no caos – é pinçado de um verso de Oficina irritada, poema que Carlos Drummond de Andrade alocou em Claro enigma, publicado em 1951. A prosa de Xico é cinzelada pelas referências dos escritores que admira e com quem dialoga, pelos gostos de moleque que até hoje perduram (o futebol; a música para soprar a ventania de uma inesperada paixão ou curar a tristeza do coração partido; a travessia de quem se despede das origens para erigir a vida milhares de quilômetro além) e pela realidade. “A crônica sempre foi um meio, talvez por ser o meio de campo entre o jornalismo e a literatura… Imagina um matuto que quer ser escritor e vai fazer aquela reportagem bem crua?”, indaga Xico, ele mesmo vencedor do prêmio Esso de Reportagem especializada em 1993, por Anatomia de uma licitação, que escreveu para a Folha de S.Paulo ao lado de Oscar Pilagallo.

“Xico é o caso raro do jornalista que é tão bom repórter quanto cronista. Ele tem uma trajetória marcante como repórter investigativo: foi o cara que entrevistou PC Farias quando ninguém sabia onde o tesoureiro de Fernando Collor estava, ganhou um Esso, era corajoso, sabia cultivar as fontes e tinha um texto preciso, mas ao mesmo tempo era capaz de manejar a crônica de um jeito sensível, com uma pegada mais de literatura, sem estar amarrado ao passado e sem perder a atualidade”, opina o jornalista Renato L, que dividiu as bancas do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco com Xico no início da década de 1980 e repartiu “também esse período de educação sentimental e descobertas que geram laços para durar a vida toda”. “Xico foi o primeiro a trabalhar numa sucursal e, anos depois, quando na primeira turnê que Chico Science e Nação Zumbi e o Mundo Livre S/A fizeram para São Paulo, em 1993, foi na casa dele que eu e Fred ZeroQuatro ficamos”, lembra o Ministro da Informação do Manguebeat.

Antes de ser aprovado no vestibular e ir morar na Casa do Estudante, no campus da Cidade Universitária, o cearense já tinha o Recife como “a cidade dos poetas”, onde fertilizaria seus anseios literários. “Quando o povo da Chapada do Araripe queria desbravar o mundo, ia pro Recife, como Miguel Arraes, que tinha saído do Crato para lá. Fui com a ilusão de ser escritor e poeta, achando que era possível viver disso, e virei jornalista e escritor. Como o sonho de toda mãe do interior, ali pelos anos 1980, era ter um filho funcionário do Banco do Brasil, até fiz o concurso, mas preferi a ilusão noturna da literatura. Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra me alimentaram muito, no Savoy, no Dom Pedro e nos bares da Sete de Setembro. Até trabalhei um tempo com Jaci nas edições Pirata”, rememora Xico, cujo primeiro livro, Paixão roxa, saiu por este selo em 1981. “Foram os caras que me deram uma formação pedagógica de leitor, me passando livros para discutirmos depois, tomando cerveja no Pátio de São Pedro ou na Praça do Sebo… Jaci me aplicando William Faulkner, eu lendo O som e a fúria e Luz de agosto e eles me tomando a lição.”

Se Cunha Melo e Bezerra, expoentes da Geração 65 da poesia pernambucana, foram seus guias, o “grande guru” foi o Graciliano Ramos: “Aqueles contos quase crônicas de Infância, que tratavam do meu mundo lá no Sertão, escritos daquela maneira: um menino se depara com um frasco cheio de pitomba e depois leva uma surra de cinturão do pai, em um conceito de justiça à Dostoiévski, me davam a ideia do que um escritor era capaz de fazer. Até hoje é meu mestre. Meu preferido é Angústia, que sempre releio”. O apreço pelo autor de Vidas secas agudizou o conflito da “cancha”, para usar uma expressão futebolística, que ele foi pegando à medida que praticava o jornalismo. “Porra, eu queria ser Graciliano e fui tomando gosto pela reportagem, aprendendo a escrever futebol com Lenivaldo Aragão e Sílvio Oliveira, depois com Antônio Portela e Evaldo Costa, tendo a companhia de Ana Dubeux e Vera Ogando, as duas primeiras mulheres que vi escrever sobre futebol, pioneiras demais. Depois fui para a Agência Estado com Carlos Garcia, tendo feito O Príncipe, com Paulo Santos e Denise Arcoverde, e A brecha, com Renato L na faculdade, que eram experiências mais alternativas. Era uma grande confluência”, situa Xico Sá.

Desta época, o jornalista Vandeck Santiago, que morou com Xico na Casa do Estudante da UFPE, elege uma história para atestar a versatilidade do cearense que se afeiçoou em fazer malabarismo com as palavras. “Ziraldo veio dar uma palestra na Universidade Católica. Xico já era conhecido no meio e fazia parte da mesa. Na hora de ele, Xico, falar, recitou uns hai-kais e o público gostou. Aí recitou outro e outro... No final, Ziraldo – grande figura! – escreveu numa página de caderno e passou pra ele:

Xico Sá

O seu valor atesta

Você roubou a minha festa.

Eu vi o bilhete. Xico devia tê-lo guardado”, revela Vandeck, ele mesmo um craque em aliar jornalismo e literatura em Pernambuco em chamas: A intervenção dos EUA e o golpe de 1964 (Cepe Editora, 2017) e Josué de Castro O gênio silenciado (Instituto Maximiano Campos, 2008), a quem o cronista trata com reverência e fidalguia: “Ele entende tudo de jornalismo e sabe mais da minha vida do que eu”.

É desta vida que emergem títulos como Catecismo de devoções, intimidades & pornografias (Editora do Bispo, 2005), Tripa de cadela & outras fábulas bêbadas (Dulcinéia Catadora, 2008) e Chabadabadá Aventuras e desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha (Record, 2010) – este último, matriz para a série homônima em seis capítulos que o Canal Brasil exibiu em setembro de 2024, brotou no momento pivotal da sua carreira. “Fazia literatura quando chegava em casa à noite, nos intervalos, para não deixar morrer a minha grande ilusão, mas no começo de 2009, chutei o balde da questão de estar dentro de uma redação para virar freelancer. Ganhava um salário interessante, tinha uma condição privilegiada, mas pego minha grana do FGTS e me dedico ao meu primeiro romance, que era Big Jato. Bateu aquela agonia no juízo: o sonho do matuto do Cariri vai ser diluído na madrugada dessas redações, eu não vou fazer nada mais radical no sentido literário, que não seja só a crônica? Não queria ser um velho amargurado dentro da redação”, diz Xico.

A partir daí, há a expansão de um universo que, por si só, já tinha sua considerável amplidão, posto que ele, além de ser repórter e colunista do impresso, havia sentado na bancada do programa esportivo Canal Verde, na TV Cultura e sido um dos apresentadores do Saia Justa, no GNT. Autografou um outro romance, A falta (Tusquets Editores, 2022), enquanto já adubava a editora Casa de Irene, nomeada assim em homenagem a sua filha com Larissa Zylbersztajn, a sua parceira artística neste espaço. E se por um lado sente que “o Guerra e Paz do Cariri ainda não saiu”, por outro se alegra ao ver sua criação literária ganhar novos contornos. Foi assim em 2015, quando Big Jato virou longa-metragem assinado por Cláudio Assis, grande vencedor do 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com os prêmios de melhor filme, roteiro, trilha sonora, ator para Matheus Nachtergaele e atriz para Marcélia Cartaxo; e vai ser assim agora de novo, com Chabadabadá.

“Ele é muito generoso e nos deu, mais uma vez, liberdade total para que pudéssemos trilhar nossos próprios caminhos criativos a partir das suas palavras originais”, observa a produtora Camila Valença, à frente da Perdidas Ilusões, companhia responsável pela versão televisiva de Chabadabadá, com direção de Júlia Moraes e Tuca Siqueira, direção artística de Cláudio Assis e roteiro de Anna Carolina Francisco sob supervisão de Hilton Lacerda. “O texto dele é muito engraçado, com um olhar atento para os detalhes e um ritmo próprio. Ao mesmo tempo, percebo que já traz um debate contemporâneo, muitas vezes fruto de um próprio autoquestionamento. No Big Jato, a discussão da masculinidade está presente ali naqueles dois personagens, o pai e o tio, e do homem que o menino vai se tornar a partir disso. No Chabadabadá, ele nos deixou livres para encontrar nossa própria forma de olhar”, constata a roteirista. “Como todas as conversas lá atrás ajudaram a construir esse universo, tive interferência zero. O resultado é extraordinário. Elas colocaram o olhar das mulheres e superaram qualquer ideia das minhas sugestões como cronista, atualizando a trama sem mexer na atmosfera do clima boêmio. E o melhor é que é uma história contada no Recife, e não no Sudeste, que é um aspecto bem importante”, vibra Xico Sá.

Para Matheus Nachtergaele, que interpreta Quincas, protagonista cindido entre os amores de Joana (Hermila Guedes) e Rita (Lalá Vieira), a conexão é ontológica. “Se a gente imaginar que o menino Chico de Big Jato é o Xico Sá saindo de casa, o Quincas é esse menino depois. Na série Chabadabadá, toda vez que meu personagem pensa no pai e na mãe, eu penso em mim mesmo como o Velho Chico e na Marcélia Cartaxo. A própria genealogia do Quincas está para mim, como ator, lá no Big Jato. Me apeguei a essa ideia e isso me ajudou a criar um vínculo afetivo com o passado da série, a trazer o nosso cinema, tudo que já fizemos, para dentro da série”, comenta o ator em conversa com a Pernambuco transcorrida em 2023, no set de filmagens na Rua da Aurora, de frente para o Capibaribe.

Seria hora de Xico Sá, 62 anos, pai de uma garota de 7 primaveras, com mais de uma dezena de livros no balaio, prêmios, troféus, roteiros, programas de TV e rádio e a viralização típica da internet, sossegar? Nunca. “No lugar onde estou como cronista, penso no machismo de toda geração, na ridícula ideia de ser machão ainda hoje, algo obsoleto, reacionário, conservador, de uma nostalgia totalmente enviesada, e não entrego nada como uma tese no que eu escrevo: coloco tudo em uma grande mesa-redonda. Tem alguns textos meus que tenho vergonha de ler e quero fazer um Fahrenheit 451 particular para queimar tudo, mas ao mesmo tempo sinto que consigo ter muitos leitores jovens e sigo botando tudo na roda e também me questionando. Vou parar de escrever jamais”, alinhava, não sem antes vislumbrar sua perene aspiração: “Ainda vou escrever o Crime e castigo do Crato”.