"Fazer círculos com mãos de aves"

1.
inscrevemos os pés ao lado da primeira marca
temos o mesmo peso: animal animal
nossas patas se sobrepõem no tempo
os dedos se afundam iguais a nós
formamos desenhos abertos, preenchemos a terra
com o duplo gesto de marcar-desfazer
aprendemos que a escrita pode ser
uma força que se apaga enquanto se faz
são diálogos breves os que cravamos no chão
a minha pata encontra a sua neste instante

I.
primeiro perguntamos aos pés
pela vaga lembrança do tremor
em qual memória da sola se desenharam
mesa escada e árvore
nos caminhos rachados pelo fogo
podemos enfim saber:

acendemos as luzes, somos as luzes

II.
depois perguntamos aos olhos
pela fundura do campo
canais que se abrem em veios
para dentro e para fora

que nomes damos ao vento
enquanto dançamos
e eles disseram: duração

III.
indagamos então aos cabelos
pela nascente da água
cetáceo escuro e sem voz
que sentidos poderíamos dar à alegria
e eles disseram para olhar as células
que nascem e nascem e se movem
são um sistema de música


IV.
perguntamos às unhas à pele

perguntamos ao cérebro as relações
entre as mãos e o tato
querer e fazer – qual a faísca do sim?
e elas disseram como diria um leão
enquanto lambe as garras depois de comer
morder também é uma escrita

V.
perguntamos ao sangue
pelo nome próprio dos velhos
quais palavras continuam
no arco intáctil do futuro
significando de novo e de novo

e ele disse: o que vai acontecer
já está acontecendo

VI
por último
perguntamos ao coração

o motivo do estilhaço da forma
e ele não disse nada
apenas paralisou por uma fração mínima
reorganizando mãos e peito
em forma de estuário

3.
(para a memória viva de Tuíre Kayapó,
que carregava um canto muito antigo)

um dia alguém escreveu um poema de ameixas
e as ameixas nunca mais foram as mesmas

um dia alguém pintou maçãs sobre a mesa
essas maçãs viraram uma outra coisa
algo que vê e é visto – com face e dorso
isso devolveu a visão a si mesma: um agora-agora
puro pensar em rebatimento

um outro pintou a água em mil pinceladas
de rosa azul branco amarelo vermelho
fez a unidade se dissipar
e a transparência virar cor

e teve também aquela que falou pela voz da faca
a voz incorruptível do metal quando deita sobre a pele
essa palavra tinha a força de duas águas
era como alguns animais
que emitem o som de seu próprio nome

4.
escrevo suas palavras sobre as minhas
como se pudesse de algum modo
possuir o seu corpo
como se estando aqui e agora
palavra sobre palavra
pudesse produzir uma fusão – uma telepatia
ao pronunciar as palavras iguais
espadana d’água
olmos
glicínia

pudesse fazer o poema germinar sobre a paisagem
terra sobre terra jardim sobre letra
como plantas que se fazem a partir de mudas
livros a partir de livros
e quem sabe possa ser como naquele dia
em que ouvimos pela primeira vez
o canto de um uirapuru
e na sua voz uma planta dizia
o meu nome é floresta

5.
no sonho repetimos o mesmo gesto:
inflamos-murchamos
algo aqui pode ocupar espaço
há tão pouca diferença
entre o que está dentro e o que está fora
que um furo poderia ser uma pequena virtude
um aprendizado de leveza ou um movimento
para anotar o tempo
você vê coisas transparentes, eu penso
talvez porque agora eu também esteja transparente

o mar
a chuva
o espelho também enxerga coisas invisíveis
os seus braços e pernas que caminham na areia
os meus olhos mudos de água viva não te veem
mas posso pressentir o seu corpo vertical de pessoa

você é minha zhuangzi
eu sou a sua borboleta

Ana Estaregui (Sorocaba, 1987) é poeta, doutoranda em Letras pela Universidade de São Paulo, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. É autora dos livros Chá de Jasmim (Patuá, 2014), Coração de boi (7Letras, 2016) e Dança para cavalos (Fósforo/Luna Parque 2022). Trabalha organizando grupos livres de escrita e artes visuais. A autora foi contemplada no ProaC Poesia em 2013 e 2014, foi finalista do Prêmio Prêmio Alphonsus de Guimaraens (Categoria Poesia) em 2017 e recebeu o Prêmio Governo Minas Gerais de Literatura/Poesia em 2018. Tem poemas publicados em Portugal, Chile, Estados Unidos e México.