Breve passeio por cemitérios

O descanso eterno dos escritores nem sempre é tranquilo como se imagina e sua última morada por vezes carece da atenção que suas obras recebem

Túmulo em promoção

Nem amiga, nem colega. Na escala de intimidade, ela fica no patamar da “conhecida”. Mesmo assim, não se fez de rogada e, em um não tão belo dia, telefonou para o poeta Weydson Leal para pedir um favor de envergadura só permitida aos mais afeiçoados: que ele a levasse ao enterro da irmã. Talvez pego de surpresa diante de um pedido tão inconveniente, Weydson topou.

Quando chegaram, o caixão já descia rumo aos sete palmos do descanso eterno. O poeta, sentindo-se constrangido por comungar daquele momento familiar, quis escapar da situação. Acabou por tornar ainda mais embaraçoso o episódio. Chegou ao pé do ouvido da conhecida e disse: “vou ali, um instante”. No que a outra retrucou: “vai aonde?” Ele respondeu: “vou ver o meu túmulo”. A reação não poderia ser mais inapropriada: a interlocutora caiu na risada. Mas é a pura verdade: Weydson, aos 25 anos (hoje tem 60), comprou uma sepultura para si. “Estava na promoção”, justifica, como se falasse de uma geladeira.

Ao ouvirem a história, dois amigos reagiram do mesmo jeito da conhecida do enterro: morreram de rir (com o perdão do trocadilho). Um deles, o jornalista, poeta e vocalista da banda Ave Sangria, Marco Polo. Fez da anedota o poema “Estilo”:

“Aos 25 anos Weydson Barros Leal
Comprou seu túmulo. 
A moça pergunta:
Morte iminente?
Não, responde ele,
Ódio ao acaso.”

Única certeza da vida, a morte é tão presente na literatura quanto o amor. Só que aquela é mais temida pela maioria. Não é o caso de Weydson. “Temo mais o amor do que a morte. Enquanto a morte apenas começa, o amor sempre tem um fim, nem que seja na morte, quando o amor termina em quem morreu”, afirma o poeta. Aflição mesmo é que, em seu enterro, falte quórum suficiente para carregar as seis alças do caixão. “Vou querer um caixão de quatro alças para não correr esse risco”, brinca. 

Este que poderia ser o derradeiro vexame de um morto foi relatado pelo sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) em Sobrados e Mucambos (1936), quando uma vez esteve no enterro de uma velha amiga de sua família. “Chegados ao cemitério de Santo Amaro verificamos que éramos apenas três os que acompanhávamos o corpo da velhinha ao túmulo. Pelo que pedimos a um estranho que nos ajudasse a conduzir o caixão, da porta do cemitério ao túmulo”, escreveu Freyre. A tal defunta, que nem roupa digna de enterro possuía, era neta de um ilustre ministro do imperador Pedro II, e foi enterrada em jazigo monumental, porém já abandonado, arruinado, sujo, e cujo cortejo fúnebre “não chegara a atrair as clássicas seis pessoas necessárias para a condução decente de qualquer ataúde”, escreveu Freyre.

O sociólogo começou a escrever, sem concluir, o que seria o último título de uma tetralogia iniciada com o clássico Casa-grande & senzala (1933),  a ser chamado Jazigos e covas rasas. Algo como a continuação da morada do indivíduo, fosse ele da casa-grande ou da senzala. Seria o que Freyre chamou de “estudo de ritos patriarcais de sepultamento e da influência de mortos sobre vivos”. Os túmulos monumentais contrastavam com as covas marcadas com uma cruz de madeira, ao que Freyre chamou de “prolongamentos das casas-grandes, depois dos sobrados, das casas térreas, dos mucambos, hoje das últimas mansões ou casas puramente burguesas e do numeroso casario pequeno-burguês, camponês, pastoril e proletário”. O polímata e expoente do pensamento sociológico brasileiro escreveu que “o homem morto ainda é, de certo modo, homem social”. O desejo de eternidade desse homem morto de classe social abastada e de sua família, mesmo após a morte, é representado pelos jazigos luxuosos que desafiam o tempo e que ainda fazem parte da sociedade. 

Assim como as casas-grandes e sobrados viraram ruínas a simbolizar o declínio do poder de outros tempos, muitos túmulos de aristocratas de então se acham degradados, o que, segundo o sociólogo, “parece revelar, no brasileiro, singular negligência pelo que foi obra ou fundação de antepassado ou de avô morto. Não neguemos ao brasileiro esse defeito que, aos olhos dos entusiastas do Progresso com P maiúsculo, se apresenta, talvez, como qualidade: os mortos que não perturbem as atividades criadoras dos vivos com as sobrevivências de suas criações já arcaicas”. Atualmente, os restos mortais de Freyre repousam na casa-museu que leva seu nome, no Bairro de Apipucos. Lá o visitante encontra um belo memorial. O lugar de sua morada eterna foi também seu teto em vida.

Necroturismo

Visitar túmulos de desconhecidos ilustres como escritores e poetas é hábito turístico conhecido e consolidado que atende pelo nome de necroturismo. O que atrai o visitante são monumentais jazigos construídos até o século XIX, quando a opulência estética e artística da construção tumular refletia a importância social e econômica do morto quando em vida. Mas não só isso. Nossos mortos nos habitam, e estar com eles talvez seja uma maneira de recuperar uma narrativa de vida.  

No Brasil, o hábito de visitar sepulturas, a não ser no Dia de Finados, é mais comum nas cidades de Ouro Preto, Rio de Janeiro e São Paulo, onde ficam respectivamente, o Museu da Inconfidência (onde estão os restos mortais dos mártires do levante mineiro), o já citado Cemitério São João Batista, e o Cemitério da Consolação, morada eterna dos poetas Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

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Venda avulsa na loja da Cepe Editora