Eis que recebo, com prazer, o novo livro de poesia do escritor angolano João Melo. Número 19 da Coleção Infame Ruído, da Inmensa Editorial, Os sonhos nunca são velhos traz uma coleção de poemas distribuídos em quatro partes, conectadas por uma temática maior, que garante um caráter épico à narrativa poética. Poemas de denúncia, rebeldia e coragem conclamam para uma reação efetiva diante da miséria, do descaso e, sobretudo, da traição. Malogro de ideais, embustes e crimes contra o homem que só deseja dignidade e voz. Fazer-se ouvir. Atualizar um “infame ruído”, tão adequadamente nomeador da coletânea. Vozes abafadas, perturbadoras, ruídos incômodos para os salteadores do capital, da liberdade, dos sonhos. Ecos de gerações fraudadas, assassinadas, ludibriadas com vãs promessas. Até quando? “Um mundo que não morrerá sem luta”. Vítimas da “pedagogia do terror… inventada para impor a democracia/à força de balas e canhões” (P.68).
A primeira secção do livro traz uma abertura à guisa de proposição, remonta aos povos primeiros, “...povoamos o mundo/ forjando povos, nações, culturas.” (p. 12). Faltava a recuperação da terra e sua reorganização, conforme o modelo ancestral. Sonho fraudado “numa pálida manhã de nevoeiro/ com seu escorbuto,/ a sua sífilis/ e a sua cobiça...” (p.12). O invasor, qual Sebastião maldito, entra sem convite e vai atirando, como disse Manuel Rui, em conhecido texto sobre a invasão. Apagando fogueiras, calando vozes, incitando uma luta que ao cabo de 60 anos, afinal vencida, obscureceu a mente, “secou a alma” e, sobretudo, a língua contaminada perdeu a comunicação com os deuses e conquistou a descrença dos filhos que, “em nome do futuro que lhes foi negado” (p.14), partiram à deriva.
Analisando a situação do africano, vítima das mazelas trazidas pelos invasores, obrigado uma fuga desesperada do seu chão em marcha para mundos desconhecidos, com o José de Drummond: “Você marcha José, para onde?”.
Sem poder lutar sozinho o poeta convoca os guias familiares, os deuses, os heróis, os amigos, os mártires privados e os espíritos poéticos” ... em cujos cantos bebo a sabedoria a coragem a força:
“neto, jacinto Viriato noémia alda craveirinha Onésimo/Gabriel mariano guillén neruda daniel felipe eluard/langston hughes Maiakovski lorca sophia machado paz brecht sophia”
O poema segue com quatro estrofes apostrofando os numes invocados com o convite anafórico:
“Vinde todos ver as grandes mentiras” ...
“Vinde escutar as palavras desnorteadas”
“Vinde assistir à terrível vitória dos tribalismos autofágicos
Vinde,
de novo vinde
e iluminai os caminhos que ainda teimo em
percorrer!” (p.17)
Em frequente interlocução com o universo poético, traz o intertexto com Fernando Pessoa (B. Soares) e com Caetano Veloso, justificando a sua poética e o modo de apresentá-la:
“Pessoa, Caetano e Eu
a minha pátria não é
a língua portuguesa
mas a minha pátria eu canto-a
na língua portuguesa
(a língua portuguesa
da minha pátria)
pessoa que descanse em paz
e caetano faça outra canção.” (p.19)
Em quatro dísticos o poeta liquida a questão de usar ou não uma língua que não seja a dos seus ancestrais. Respondendo a críticos e críticas, o eu poético argumenta a legitimidade da língua portuguesa de “minha pátria”. Aquela que foram, os antigos colonizados, forçados a utilizar em detrimento das línguas nacionais pelos invasores. Não foi emprestada, como argumentam alguns, ou apropriada, como querem os calibanistas. Impedidos de utilizarem, livremente, a língua materna, os utentes das belas línguas africanas receberam, como parte do kit invasão/violência, uma língua que deveriam adotar. Reduzidas aos falares domésticos, as línguas nacionais não se expandiram, gerando novos falantes, na proporção necessária. Escrever na língua imposta pelo colonizador é, antes de tudo, um ato de resistência, um grito de coragem.
O universo onírico povoa a mente do poeta que sonha desperto e desperta sonhando. A incerteza do amanhã leva-o a sobressaltos, presságios. Guerras e rumores de mais guerras. Como será o dia de amanhã? Diante do quadro caótico de desespero e desesperança resta sonhar. Sonhos velhos, anunciados, conhecidos, restaurados a cada dia, velhos sonhos novos, “técnica de sobrevivência”. (p.23).
Falar para resistir ou resistir para falar
Este segundo momento gravita sempre em torno das razões ou das sem razões da escrita. Como em “Não me peçam poemas”, texto com sete estrofes iniciando com o título reiterado anaforicamente, cuja penúltima estrofe responde: “Não me peçam poemas/ que eu estou aqui/de pé/ aguardando as novas guerras/ tão velhas quantos os homens.” (p.30)
O tema da guerra ocupa a poesia deste livro com a energia dos males que não envelhecem. Guerras passadas, presentes, futuras. Traições, engodos, destruições. Um mundo entre parênteses. Se os sonhos não envelhecem posto que se renovam, a esperança, esta precisa ressurgir a cada dia como estratégia de sobrevivência. A incerteza faz o eu poético interrogar qual o José, de Drummond “E agora José?”. São muitos Josés, Marias, Joões, Aldas, Noémias e tantos mais remontando sonhos, ajustando ideais” ... “tenta[ndo] aspirar o último ar das ruas/olhar as últimas árvores ver os últimos pássaros/tão perplexos e angustiados como eu/antes que este poema termine.” (p.34)
Para não alongar, chego ao terceiro momento: Onde foi que nós erramos? A “Dialética” explica:” Às vezes sabedoria/é apenas/ observar e calar... Às vezes observar/e calar/é cobardia.” (p. 49)
Reafirmando a permanência dos princípios fundamentais, o poeta recorre ao esquecimento, preservando apenas as crenças fundamentais. O exercício da desmemória libertaria da culpa. Na ocupação com o futuro esvaiu-se o entendimento do passado, elegendo prioridades, o essencial se fez acessório, a carne apodreceu. “O que fazer com esta culpa”, é o mote do poema do mesmo título. Segue-se um belo poema “Se pensam que estamos distraídos”, com a indicação de que seja lido em voz alta. Nele, uma referência ao tempo colonial e seus danos e uma forte acusação aos traidores da pátria como lemos:
“Se pensam que não sabemos
Dos vossos encontros venais, regados a champanhe
Feito com o nosso sangue putrefacto,
de tanto o derramarmos em vosso louvor,
enquanto secretamente conspiravam contra nós
“Se pensam que desconhecemos
como repartiram entre vós a terra
e tudo o que existe dentro dela ou,
então, que seja possível erguer sobre ela,
como sem poderem disfarçar a criminosa alegria
que vos envenenava o coração,
encharcaram as mãos com merda fel e pus,
pensando ter descoberto o inominávelsegredo da riqueza...” (p. 43)
Os ancestrais não poderiam ficar de fora deste épico que se conforma em uma modernidade sem história. A tentativa de apagamento do passado, o ensurdecimento dos tambores, o olvido dos espíritos, o recrudescer das palavras fingidas fizeram nascer filhos tão iconoclastas quantos os pais que assumiram pelejas inglórias ignorando os espíritos. Um hino de exaltação à pátria está no longo poema “Ó Pátria, Nunca mais esqueceremos”, no qual o poeta toma de empréstimo o primeiro verso do hino nacional de Angola. O poema retrata cenas da história de Angola, seus heróis, mártires, guerreiros anônimos que deram a vida pela defesa da pátria. Um poema de grande força e beleza. Ainda nesta parte, uma narrativa de uma noite em que o pai saiu para a luta. Uma página de saudade e emoção.
O mundo não morrerá sem luta. Este último momento livro traz 20 poemas engajados que, em um tom forte que raia o desespero, propõem uma desistência. O poeta não deseja mais esperar que o homem aprenda com seus erros, que amor e paixão se entendam ou que os deuses se humanizem. Diante desses impossíveis, desiste. Em “Juramento”, o mundo não morrerá sem luta. No poema “Post it”, um repto aos democratas imperiais sobre a revolta futura das vítimas da pedagogia do terror. Em “Abril 2024”, bela homenagem ao poeta Zeca Afonso, cuja “voz continua a ser ouvida/pelos que não desistem de escutá-la/cada vez mais em segredo. (p.69)
No poema “Fome é um crime muito perigoso”, o primeiro verso lembra as palavras do cabo-verdiano Manuel Lopes, em “Os Flagelados do Vento Leste”. São Ian e Bruno os desvalidos da terra. Vítimas do crime que é promover e alimentar a fome.
Já em “Notícia do Brasil”, o poeta volta o seu olhar para o país onde estudou e com o qual tem um grande laço. O texto não tem nada de alvissareiro. Mortes, atentados. Nganga Zumba e Zumbi morrem em cada negro assassinado nesta terra. Notícias assustadoras, crimes despropositados. Enganos, dizem. “Bala perdida, que promove a perdição de inocentes.”
Réquiem para a Palestina
Temos, a partir da página 70 um grupo de poemas, um “Réquiem para a Palestina”, texto doloroso: “A antiga Palestina,/ terra de todos os povos/e todas as crenças/não existe mais”.
Segue-se uma “Conversa com Mahmoud Darwish”, poeta palestino morto em 2008 no Texas: “Mas continuais a ter o direito/de morrer como quiserdes” (P.74). Outros poetas palestinos foram homenageados como Heba Abu Nada (poeta e romancista morta na Faixa de Gaza aos 32 anos; Refaat Alareer, poeta e ativista, morto em dezembro de 2003. A este poeta, o livro traz o belo poema “A guerra não respeita a casa dos poetas”: “Testemunhas contaram/que eles os enfrentaram com os livros do poeta na mão,/ disparando contra os mesmos/os seus poemas de amor e resistência,/que não podem ser entendidos pelos que continuam até hoje/a escutar o que um deus vingativo/supostamente lhes disse há dois mil anos” (p. 81).
Ainda há poemas dedicados a Aaron Busnnell (Poema sem título), para Mohamed Salem (“Para que servem os olhos”), Shaaban-al-Dalo (“O bilhete de Shaadan-al-Dalo”). A eles, é acrescido o interesse de poemas como “Precisamos de ter esta conversa”, com um significativo refrão: “Choro por ti”. Um réquiem pelo complexo de superioridade moral ocidental é de relevante leitura: “Desta vez, porém,/ não estamos distraídos: sustaremos esse retorno arcaico e vingativo/com a potência da nossa memória/e a força da nossa decisão” (p.89). O último poema, “Dialética do futuro”, encerra com os seguintes versos:
“Precisamos de continuar a conspirar.
Pensar. Organizar. Lutar – eis a eterna urgência
Que nos cabe.
Quem disse que não há futuro?” (p.93)
Este texto enfatiza a importância da poesia de João Melo. Escritor de vários gêneros, jornalista, político, uma das grandes referências da literatura em Língua Portuguesa. Os sonhos não envelhecem traz uma poesia engajada, corajosa e, sobretudo, eivada de uma poeticidade que contempla os temas do cotidiano, fugindo ao lugar comum e sinalizando o verdadeiro papel do bardo, oscilando entre a morte e o renascimento. Bem Haja.