Conheçam Selin, alter ego da escritora americana de origem turca Elif Batuman, e personagem-narradora do romance Ou-ou (Companhia das Letras, 2024). O título incomum é quase homônimo ao do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Ou-ou – Um fragmento de vida (1843), considerado um clássico da literatura e da filosofia, e no qual Batuman claramente vai buscar inspiração. Não à toa, a narrativa é repleta de questões existencialistas que circundam preconceitos étnicos, migração, choques culturais, sexo, feminismo, amizade e amor.
Ou-ou seria algo como “ou isso ou aquilo” – no original dinamarquês, enter-eller. A vida é uma questão de escolhas. Mas o acaso está sempre à espreita de Selin que, tal como Elif, nasceu em Nova York e escolheu a literatura como profissão. Até o momento, a autora nascida em 1977 tem sido bem-sucedida.
Ou-ou é a continuação do primeiro romance de Batuman, A idiota (2018), que foi indicado ao prêmio Pulitzer. Na primeira aventura, Selin, recém-chegada à Universidade de Harvard, só pôde lançar mão do conhecimento obtido nos livros. Agora, quase formada, esse conhecimento se alia ao cotidiano de escolhas e acasos. Não espere grandes acontecimentos, nem personagens complexos. Aqui Batuman faz o mais difícil, que é despertar a curiosidade do leitor apenas com diferentes pontos de vista.
O acaso, aliás, ganha aqui uma dedicação particular, que instiga o leitor a procurar saber. E nossa protagonista paga uma disciplina sobre o tema. O que a deixa, no mínimo, intrigada.“Qual era o papel do acaso na literatura? O romance realista partia das imprevisibilidades do dia a dia. Os personagens já não eram alegóricos ou meros tipos sociais. Estavam fadados a terem ‘personalidades’”, reflete Selin. Em outros momentos, ela cita Carl Jung, André Breton, Honoré de Balzac para fazer observações curiosas sobre o acaso. E, claro, Kierkegaard: “Maldito acaso! Estou contando com você. Não quero derrotá-lo com princípios”.
A obra dinamarquesa também joga Selin em outro dilema: a vida seria melhor vivida estética ou eticamente? Selin prefere a primeira opção, que a permite fugir à norma ocidental comum de objetivo de vida: casar, ganhar dinheiro e ter filhos. “Ninguém nunca dizia que essa era sua meta pessoal, mas desde pequena eu percebia que os adultos agiam como se tentar chegar a algum lugar ou alcançar qualquer coisa fosse um sonho fútil, um luxo, comparado ao verdadeiro trabalho que era ter filhos e ganhar dinheiro para sustentar esses filhos”, diz Selin.
Optando pela vida estética, Selin pode se cercar de amigos menos confiáveis, porém mais interessantes. A segurança do previsível leva ao tédio. Se não podemos prever a morte, entediados saberemos que ela virá logo. A estética, portanto, parece bastante promissora. “Eu queria ter experiências amorosas interessantes sobre as quais pudesse escrever.” E tem, literária e literalmente falando. Ainda que não sejam maravilhosas. Algumas bastante estranhas e frustrantes. “Eu não ficava entediada e transávamos todos os dias. Era um alívio sentir que eu não levava uma existência celibatária que negava a vida, aprendendo apenas com o que havia nos livros, alheia às coisas do mundo real. Minha pele estava mais bonita do que na época do colégio”. Depois de três dias, Selin já não aguentava mais. “Concluí que eu preferia ser celibatária, ter uma pele sem brilho e viver em paz.”
Se viver exige dedicação aos amigos, à vida social, às viagens, escrever romances pede um pouco de reclusão. Como fazer as duas coisas?, pergunta-se Selin. “Descobri que escrever sobre o que você já vinha pensando não era criativo, nem sequer era escrita. Era ‘olhar para o próprio umbigo’”, diz a protagonista, mas parece também dizer Batuman sobre si mesma. “Tentei dar um jeito no problema colocando os meus próprios pensamentos e observações em uma personagem fictícia”, diz Selin, mas parece nos dizer a autora.
Em viagem à Turquia, Selin se sente tão estrangeira quanto nos Estados Unidos. Talvez essa seja a parte do livro, já no final, em que há mais acontecimentos do que reflexões. “Foi uma grande decepção chegar à Turquia e descobrir que meu nome e minha aparência ainda demandavam explicações constantes – talvez até mais que na América. As pessoas ouviam meu sotaque, viam as roupas que eu vestia, as coisas que eu fazia, e na cabeça delas nada fazia sentido, nada batia com a minha carteira de identidade.” Naquela terra oriental, basta usar um véu para ser bem-recebida. No Ocidente, basta não ser de lá para não ser aceita. Ou ouvir que ser turca é caminhar ora em camelos, ora em tapetes.
Se tudo é estranho e adverso, mergulhar na literatura russa parece coerente. “Eu estava na Rússia porque conheci as literaturas do mundo e fiz uma escolha. Ninguém me pediu para vir. No entanto, eu estava aqui. Foi este momento decisivo da minha vida? Era como se a lacuna que sempre esteve à espreita fosse preenchida diante dos meus olhos, de modo que, dali pra frente, eu viveria de forma coesa e significativa, como em meus livros favoritos. Ao mesmo tempo, eu tinha a forte sensação de ter escapado de alguma coisa: de ter, finalmente, fugido do roteiro.”
As aspas são de Selin, mas também podem ser creditadas a Batuman. Foi da literatura russa que se alimentou a obra de estreia da turco-americana, Os possessos: aventuras com livros russos e as pessoas que os leem (2012). Ao mesmo tempo erudita e acessível, Batuman parece rir de si mesma e nos ensinar que a vida nem sempre deve ser levada a sério.