Força e desesperança

Rogério Pereira segue um projeto literário que lança ao leitor um livro a cada década

O escritor Raduan Nassar diz sobre Na escuridão, amanhã, de Rogério Pereira, que é uma das narrativas mais fortes que já havia lido em sua vida, “dessas que a gente não esquece”. Não exagerou. Os dois romances de Rogério Pereira – o recém-lançado Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (publicado em 2013, mas relançado em 2023), ambos da Dublinense, são narrativas que misturam o memorial e o ficcional de forma impactante: com uma força, desesperança e impotência, que surpreendem e desafiam o leitor.

Num estilo seco, as vezes sarcástico, Rogério Pereira retrata uma realidade onde não existe final feliz nem redenção para os personagens. “Deus nunca teve tempo para nós. Talvez não soubesse o caminho até nosso solo infértil”, escreve o autor em Na escuridão, amanhã, que chegou a ser finalista, em 2013, do prêmio São Paulo.

As duas histórias são aparentemente simples, com temas já explorados por outros autores. Na escuridão… narra a saga de um casal e dos três filhos que saem do campo para a periferia de uma grande cidade. Uma família marcada por silêncios e desilusões. Em Antes do silêncio narra a morte da mãe.

Ele próprio explica essas escolhas. “Parto sempre do microcosmo familiar, minha aldeia doméstica, um espaço em que a violência, a miséria e o alcoolismo sempre desenharam um mapa rumo ao inferno cotidiano’”, explicou o autor em entrevista ao jornal O Estado de Minas.

Citou, na ocasião, a dinamarquesa Tove Ditlevsen, autora de Infância, que escreveu. “A infância é longa e estreita feita um caixão e não dá para escapar dela por conta própria.”

“Acredito que esta é uma travessia da vida toda, uma espécie de prisão a que todos estamos condenados. A questão é como lidar com o escuro calabouço chamado infância. Eu lido agarrado à literatura”, contou o autor.

Memórias

Na opinião da escritora e doutora em Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Alexandra Vieira de Almeida, “o mundo perverso vivido pelas personagens não deixa de mostrar os momentos poéticos lembrados pelo narrador, em que história de abusos são retratadas não com uma linguagem realista ou fotográfica, mas como flashes literários, em que se torna o elemento mais forte para abafar os gritos da dor e do asco que vive em meio à cidade grande”.

O expurgo do pai violento, da vida miserável e da falta de perspectivas não cessam com Na escuridão, amanhã. Em Antes do silêncio, Rogério Pereira volta a remexer nas feridas familiares, desta vez esmiuçando a morte da mãe por um câncer.

No texto, apesar de um pouco de afeição, não há espaço para sutilezas. O início do livro já revela que não fará concessões em expor a degradação sofrida por si e pela mãe. É a crônica de uma morte lenta, datada e detalhada.

“A mãe morreu… A morte esculpida nos olhos, um espelho invertido. O sol ardia no telhado… Estava morta sobre as cobertas bagunçadas. Numa última tentativa de encontrar alguma vida, arriscou libertar-se do catre a que o câncer a condenara. As pernas magras balançando na altura mínima entre o estrado e o piso frio. O último gesto antes do fim. O corpo caiu de lado: cabeça e braços fora de sincronia. Uma biruta sem aeroporto, sem vento, sem rumo... Novamente, a morte entrou pela porta da frente”, descreve o autor, logo na página de abertura do livro.

Ao longo da obra, ele percorre os estágios da mãe em relação à doença, faz um retrato da destruição que ela causa no corpo e no ser. Segue essa narrativa sem cair na monotonia. “Em Antes do silêncio, o narrador se torna um sobrevivente de sua própria história, que ele pode contar, sem pudores ou culpas renhidas”, comenta Alexandra Vieira de Almeida.

Curiosamente, neste romance, Rogério Pereira também aborda uma insólita convivência com um sobrevivente do Holocausto, que persiste, há tempos, na leitura de um único livro. Uma estranha comparação das pequenas dores do cotidiano com as avassaladoras cicatrizes de um genocídio que, igualmente, e nas suas proporções, vitimam e marcam os sobreviventes. As citações e alusões do homem que sobreviveu aos nazistas se pautam, segundo Rogério, na obra de Primo Levi, É isto um homem? Há também, um fato curioso: os capítulos que narram a doença da mãe são abertos por numerais. Os que registram o sobrevivente do nazismo, por letras. Quase um livro dentro de outro livro.

Trilogia

Os dois livros publicados com 10 anos de diferença, 2013 e 2023, fazem parte de um grande projeto de vida do autor: escrever uma trilogia baseada nas memórias. A Dublinense publicou o romance Antes do silêncio, em 2023, reeditou Na escuridão, amanhã, e deve lançar, em 2033 o desfecho da obra, com o lançamento de A longa distância.

“Este plano virou uma espécie de obsessão, uma assombração que me acompanha pelos dias. É algo simples e complicado”, desabafa o autor, que admite: “O que mantenho com a sanha de um faminto é escavar as memórias em busca de algo que não sei muito bem”.

O lançamento do primeiro livro foi cuidadosamente planejado. Ao fechar o contrato com a extinta Cosac Naify, que lançou a primeira edição, Rogério fez questão de ressaltar que ela só poderia ir às ruas quando ele completasse 40 anos. Idade suficiente, justifica, para que não se arrependesse do que tivesse escrito. O mesmo aconteceu com Antes do silêncio, lançado aos 50 anos. O último projeto, que será conhecido quando ele completar 60 anos, já vem sendo elaborado há algum tempo. Vai abordar o suicídio do avô no início do Plano Collor, na década de 1990.

“Eu era adolescente quando recebi, no jornal onde trabalhava, a notícia, e teria que avisar a minha mãe que seu pai (meu avô) havia se enforcado. Parto dessa tragédia familiar para fechar a trilogia a partir da frase. “Aquele homem dependurado pelo pescoço numa árvore é meu avô”.

Além dos romances publicados, ele também escreve contos, como os incluídos no livro Toda cicatriz desaparece (2022).