O escritor chileno Roberto Bolaño morreu jovem, aos 50 anos, em julho de 2003. Quando entrou pela última vez no hospital espanhol em que viria a falecer, já havia passado um quinto da vida lidando com uma doença hepática grave o suficiente para fazê-lo entrar na fila por um transplante de fígado. Na véspera de sua última internação, ele havia deixado com sua editora espanhola o manuscrito de O gaucho insofrível. Este livro, que terminaria sendo lançado naquele mesmo 2003 em Barcelona, sai agora no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Joca Reiners Terron.
Ao morrer, Bolaño deixou mais de 14 mil páginas inéditas, hoje aos cuidados da sua mulher e filhos. Entre este material, estava o imenso romance 2666, para o qual chegou a deixar instruções de publicação, além de textos cuja decisão de trazer a público coube à família, como é o caso de O Terceiro Reich, lançado em 2017; As agruras do verdadeiro tira, de 2011; O espírito da ficção científica, de 2016; e Sepulcros de vaqueros, de 2017, ainda sem tradução no Brasil. Como se sabe, 2666 saiu em um enorme volume único com mais de 800 páginas, diferente da intenção registrada por Bolaño de que fosse publicado em cinco partes.
A publicação de obras póstumas normalmente vem acompanhada de questionamentos para os quais raramente há respostas seguras. O espírito da ficção científica, por exemplo, foi escrito em 1985. Em seu lançamento na Feira do Livro de Guadalajara, a imprensa questionou a família do escritor sobre a propriedade de publicar algo que ele próprio manteve guardado. Carolina López, mulher de Bolaño, admitiu que talvez o livro nunca fosse publicado se o escritor fosse vivo – mas só porque provavelmente ele estaria mais ocupado escrevendo novas obras, e não necessariamente por desgostar do texto. Mesmo a decisão sobre o formato de 2666, a única coisa da qual se pode ter certeza é a da impossibilidade de diálogo entre autor e editor a partir de sua morte.
Como última obra entregue pessoalmente por Bolaño à editora, O gaucho insofrível escapa a polêmicas desta natureza. Em pouco mais de 150 páginas, são cinco contos e duas conferências que têm em comum o fatalismo. Seria uma conclusão óbvia – mas apressada – dizer que isso se deve à gravidade de sua condição de saúde naquele momento. Como em outras obras de Bolaño, o fatalismo de O gaucho insofrível está mais relacionado ao enquadramento da América Latina como lugar fadado a um destino pouco auspicioso.
Este pessimismo se expressa principalmente através da violência latente em todas as narrativas, uma violência herdada da própria formação do continente em seu processo de colonização, ditaduras, processos democráticos frágeis e ciclos econômicos autofágicos. É uma América Latina que de certa forma mimetiza uma personagem secundária do conto Jim, uma mulher mexicana que o narrador imagina “em um apartamento de San Francisco ou em uma casa de Los Angeles, com as janelas fechadas e as cortinas abertas”, dona de um rosto que expressava sofrimento e, por baixo dele, raiva.
Nesse texto curto, o personagem-título vaga pelas ruas da Cidade do México e assiste hipnotizado a um engolidor de fogo que se apresenta na rua. O que seria uma cena trivial, ou, no máximo, pitoresca, ganha potência e complexidade, quando se percebe a franca hostilidade do artista circense contra Jim, cujo pescoço vermelho não deixa dúvidas de que é norte-americano.
É uma hostilidade que, no entanto, nunca se transforma em ação, como acontece também no conto que dá nome ao livro. Em O gaucho insofrível, o advogado aposentado Héctor Pereda participa de panelaços contra o governo quando a crise econômica dos anos 2000 afunda o país na recessão. Mas o bater das panelas é o máximo de mobilização popular que se observa, e o personagem estranha não ocorrer a ninguém uma revolução – ou um golpe de Estado. Ante a apatia generalizada e a ausência de dinheiro para despesas básicas, ele deixa Buenos Aires rumo a uma propriedade da família quase abandonada no extremo sul do país, onde pretende viver do que conseguir produzir.
Pereda chega à sua estância esperando viver como um gaucho tradicional, mas encontra pampas em que não há gado, apenas coelhos selvagens. A expectativa pelo modo de vida viril do homem dos pampas pilchado (vestido com a roupa típica, que inclui a bombacha) contrasta com a apatia que observa, semelhante à da capital: Pereda encontra os gaúchos andando de bicicleta e não de cavalo, vivendo de esfolar coelhos selvagens em vez de manejar o gado e se reunindo no bar para jogar Banco Imobiliário. Entre uma Buenos Aires que deixava de ser sua estrela e os pampas que não mais representavam a tradição, Bolaño conduz o personagem para um não-lugar, uma espécie de purgatório que é quase sinônimo de América Latina.
No conto fantástico “O policial dos ratos”, a dimensão da violência se aproxima daquela construída em 2666, mais palpável. O rato Pepe é responsável por patrulhar os esgotos de sua comunidade, quando descobre mortes estranhas, ocorridas sempre nas periferias dos espaços habitados – e para as quais poucos parecem ligar. Quando Pepe começa a intuir que as mortes não são causadas por predadores, tudo muda na forma como compreende sua própria comunidade, e a própria dimensão da existência como roedor.
Apenas nas duas conferências finais e, especialmente em Literatura + doença = doença ele aborda a própria condição, mas é justamente quando traz a morte para perto que Bolaño busca deixá-la a uma distância respeitosa de si, analisando a doença na poesia de Baudelaire, Mallarmé, Fernando Pessoa, Franz Kafka. Na superfície, a doença é uma forma de libertação que permite ao ser humano cair na mediocridade, insultar seus pares e, ainda assim, contar com a ternura alheia, que compara a uma curiosidade mórbida pelo destino do convalescente.
Nesses autores, ele identifica outros caminhos, na relação da doença com o sexo, com o ato de viajar, com a linguagem e com a própria literatura. Ao fim e ao cabo, estar ou não estar doente faz pouca diferença, parece concluir, pois o antídoto está no abismo, alcançável apenas por quem segue buscando o desconhecido. Se é assim, há abismo, no fim das contas? O que Bolaño parece concluir é que tanto faz. Não há outro caminho para quem vive a não ser viver, até o último minuto.
Ironia para encarar o fatalismo
Texto: Renata Beltrão
04 de Março de 2024
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