Essa não é uma autobiografia. A escritora Janet Malcolm (1934-2021) dizia não acreditar nesse gênero literário. De fato, por mais que se tente não sucumbir à vaidade, falar de si mesmo com honestidade sempre implicará em esconder ou maquiar características de personalidade não muito lisonjeiras. E o recurso da memória, bem sabemos, é bastante falho, na medida em que, como mecanismo de defesa, seleciona, filtra o que será armazenado. “As lembranças com enredos, é claro, são as que cometem o pecado original da autobiografia”, reflete Janet no livro Imagens imóveis: sobre fotografia e memória (Companhia das Letras, 2024). Muito mais sobre lembranças do que imagens, a autora transmite a inevitável melancolia que nos acompanha ao longo da vida, mesmo no que se convencionou chamar de momentos felizes.
A obra é o que mais se aproxima de um relato da própria existência da jornalista colaboradora da revista The New Yorker. Ou, como diz o prefácio assinado pelo colega de redação e amigo íntimo Ian Frazier, uma “reunião dos últimos escritos deixados por Janet”. Mesmo quem não conhece a obra da autora de origem tcheca que se radicou nos Estados Unidos – escreveu oito livros de não ficção com dois pés fincados na crítica mordaz, ao fazer jornalístico amparada na psicanálise –, não ficará incólume à narrativa sobre memórias de vida lembradas a partir de fotografias caseiras com generosas pitadas de humor afiado e permeadas por reflexões sobre o próprio ato de recordar e suas inevitáveis nebulosidades, pois cheio de recortes, idas e vindas, uma narrativa sem ritmo contínuo. “O brilho da memória pode ser igualmente enganador. O passado é um país que não emite vistos. Só podemos entrar nele clandestinamente”, pondera a autora, ressaltando em seguida que a maior parte das coisas que nos acontece cai no esquecimento. Para isso faz uso de analogias com o peso de imigrante carregado nas costas. “Os eventos das nossas vidas são como negativos de fotos. Os poucos que acabam virando cópias impressas são os que chamamos de nossas lembranças.”
Quando ela cita um trecho da famosa frase do mais psicanalista dos escritores russos, Tolstói, em Anna Kariênina, faz uma adaptação impregnada de ironia, bem à sua maneira, para falar da convivência com os parentes: “Todas as famílias felizes se parecem na dor que seus membros causam uns nos outros, inevitavelmente, como se obedecessem às ordens de uma autoridade superior perversa”. Criada em uma família imigrantes tchecos que foi para os Estados Unidos para fugir da Segunda Guerra Mundial, Janet relata o antissemitismo difundido na escola e absorvido por ela, antes de ter consciência de sua origem judaica. O que aparentemente parecia para a então menina Janet uma família integrada ao lifestyle norte-americano, na verdade se revelava integrante de uma espécie de gueto, com ciclo de amizades com outras famílias igualmente tchecas e de origem judaica. A interação com a vida americano veio somente após longas décadas em solo estrangeiro e muitos choques culturais. Como não saber falar inglês na escola e achar que a professora, quando dizia bye,children, estava se referindo a alguém em especial. O senso de humor tcheco também rendeu algumas saias justas. “O que talvez fosse engraçado em Praga era constrangedor em Nova York.”
Precursora do jornalismo literário, estilo que alia técnicas de narrativa ficcional à reportagem, ironicamente Malcolm foi parar no banco dos réus justamente pelo exercício da prática. No livro, ela conta o imbróglio que se deu quando escreveu, em 1983, um perfil sobre o psicanalista e especialista em sânscrito Jeffrey Moussaieff Masson, que não gostou do que leu a seu respeito e acusou a jornalista da New Yorker de tê-lo citado equivocadamente. Ela fez uso do monólogo sem interrupções para reproduzir o que Masson teria dito em diversas entrevistas à autora. O recurso era muito usado na revista norte-americana. Após seguir para a Suprema Corte, Malcolm acabou ganhando o processo.