Noite sem fim de Ohran Pamuk

O Nobel turco Orhan Pamuk passeia pela historiografia e pelo romance noir, em "Noites de peste", para tecer um impressionante diagnóstico dos aspectos culturais e geopolíticos das epidemias

Entre as tantas qualidades que possui como narrador, a coragem de dizer o que pensa é um atributo notável do escritor turco Orhan Pamuk. Em fevereiro de 2005, mais de um ano antes de ser laureado pela academia sueca com o Prêmio Nobel de Literatura de 2006, Pamuk afirmou a uma revista suíça que “um milhão de armênios e 30 mil curdos morreram nessas terras, mas ninguém além de mim ousa dizê-lo”.

Pela ousadia de tocar num tema interditado no país até hoje, o mais importante escritor turco da atualidade, nascido em Istambul em 1952, foi renegado pelo regime autocrático de Recep Erdogan e respondeu a processo por “insulto à nação turca” – crime com pena de três anos de prisão –, que acabou arquivado.

A coragem de revolver temas sensíveis à cultura otomana (que reúne elementos turcos, árabes, persas e bizantinos) sem se render a um ocidentalismo fácil transparece o tempo todo nas 670 páginas do romance Noites de peste, lançado pela Companhia das Letras no Brasil.

Com tradução de Débora Landsberg, o livro que se define no prefácio tanto como “um romance histórico como a história contada em forma de romance” parte ironicamente de uma invenção: a fictícia ilha de Mingheria, no Mar Mediterrâneo Oriental – tão fantástica e bem-construída quanto o condado de Yoknapatawpha, de William Falkner, ou a aldeia de Macondo, de Gabriel García Márquez.

É deste ponto insular, acometido por um surto de peste bubônica no sintomático ano de 1901, que Pamuk vai investigar as implicações sociais, culturais e geopolíticas das grandes epidemias, que opõem o “ocidente civilizado” ao chamado “homem doente da Europa” – imagem que, da peste e da gripe espanhola até a Covid-19, insiste em atribuir o flagelo a uma ameaça que vem do Oriente.

Incubada nos navios abarrotados de peregrinos, que viajavam em condições insalubres, e transmitida por ratos e suas pulgas, a peste foi a mais mortal das epidemias modernas. Matou entre 75 e 200 milhões de pessoas no século XIX – entre 30 e 60% da população da Europa.

A investigação feita em Noites do Norte é histórica, mas também literal: no romance, é a partir do “método intuitivo e indutivo” do personagem da literatura britânica Sherlock Holmes, que os protagonistas da história, a princesa turca Pakize e seu príncipe consorte, o médico doutor Nuri, tentam desvendar o mistério que envolve a resistência à implementação de medidas sanitárias de contenção da epidemia na ilha – o que inclui o assassinato do químico e farmacêutico Bonkowski paxá, inspetor de Saúde Pública do Império Otomano enviado pelo sultão Abdul Hamid para debelar o surto.

No livro, os interesses das “potências europeias” e do decadente Império Otomano no combate à epidemia se contrapõem mas também se confundem, num conflito de civilizações em que nada é simples como parece. Como a reforçar a máxima dita logo nas primeiras páginas: “A arte do romance se baseia na habilidade de contar nossas histórias como se fossem dos outros e de contar histórias dos outros como se fossem nossas.”

Um jogo em que o obscurantismo religioso, o interesse comercial e a disputa pelo poder local e global contaminam as políticas de saúde pública – nada tão diferente do que presenciamos durante a pandemia de 2020.

Nesse sentido, mais do que a associação comumente feita com o romance A peste (1947), do francês Albert Camus, cabe a comparação com Um inimigo do povo, peça escrita em 1882 pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, em que autoridades de um pequeno balneário tentam acobertar a contaminação de suas águas.

Em Noites de peste, o sultão Hamid busca um “meio-termo indolor” que atenda tanto a britânicos, alemães, franceses e russos, preocupados com a chegada da doença às suas fronteiras, quanto os muçulmanos de todo o mundo, que pretende liderar. Desta maneira, cabe a seus representantes enviados à ilha a impossível tarefa de conciliar medidas científicas de isolamento e quarentena com crenças arraigadas dos grupos locais, gregos cristãos e turcos islamitas.

Equilibrando-se nesta mesma contradição, o governador de Mingheria, Sami paxá, reluta em admitir que a peste já assola os 80 mil habitantes da ilha. Seus argumentos para tentar dissuadir o Bonkowski paxá e seu assistente, doutor Ilias, da gravidade da situação – em nome de interesses econômicos e de grupos religiosos –, enquanto cresce a cada dia o número de mortos, evocam de maneira desconcertante o negacionismo bolsonarista durante a pandemia no Brasil.

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