O genuíno em "Sem despedidas", de Han Kang

Publicada originalmente em 2021, “Sem despedidas” é a mais recente tradução brasileira da autora vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2024, lançada nesta quarta-feira (7) pela Todavia

“Espero que esta seja uma obra sobre amor genuíno”. É esta a frase singela e forte, que a escritora sul-coreana e vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, Han Kang, escolheu para finalizar o breve comentário pessoal que faz em Sem despedidas. Originalmente publicado no ano de 2021 na Coreia do Sul, o livro sai no Brasil pela editora Todavia e conta com a tradução de Natália T. M. Okabayashi.

O cenário da obra de Kang é a bela Ilha de Jeju, localizada no sul da península coreana. Com praias paradisíacas, hospedagens de luxo e parques nacionais, a ilha é um destino adorado pelos sul-coreanos e pelos estrangeiros que visitam o país, mas poucos se aprofundam na história da província.

Durante os anos de 1910 e 1945 a Coreia ainda era unificada e esteve sob o domínio imperialista do Japão, que entre uma pluralidade de ações radicais, chegou a proibir o uso da língua coreana, sequestrou e abusou de meninas e mulheres e instaurou trabalhos em condições análogas a escravidão. Com o rendimento do Japão e consequente fim da Segunda Guerra Mundial, o território total correspondente à península coreana foi dividido pela metade pelos Estados Unidos e então União Soviética, criando assim a Coreia do Sul e a Coreia do Norte.

Foi neste cenário de vulnerabilidade que o primeiro presidente da Coreia do Sul, Syngman Rhee, subiu ao poder e instaurou um período de forte repressão ao comunismo, autoritarismo e corrupção, causando forte turbulência na política. Insatisfeitos, um grupo de residentes da Ilha de Jeju iniciou um movimento contra a brutalidade e a favor da unificação coreana, que foi logo respondido com ainda mais violência e uma ordem do presidente para erradicar os “rebeldes” e aqueles associados com eles (ou seja, familiares, vizinhos, amigos…).

Estima-se que 40 mil coreanos tenham fugido para o Japão e que 30 mil coreanos tenham sido brutalmente mortos pelo governo, porém alguns portais e historiadores afirmam que o número de vítimas pode chegar a casa dos 80 mil. É citado no livro de Kang que 10% dos residentes da Ilha de Jeju foram mortos durante esse período sombrio da história.

Carregando o peso dessa bagagem histórica não tão difundida, Sem despedidas é uma obra que se adequa ao estilo onírico e melodioso dos demais livros de Han Kang através de uma prosa em primeira pessoa capaz de narrar até os mais escabrosos fatos com certa delicadeza humana. Aliás, a humanidade parece seguir como tema de preferência da escritora.

Em Sem despedidas é a protagonista Kyung-ha que carrega o leitor por entre as páginas, narrando a crise mental que vive dentro de si mesma e os reflexos disso no mundo exterior. Como escritora consolidada, os seus anseios e medos parecem se materializar através de um sonho com um cemitério de árvores curvadas, troncos pretos que se assemelhavam a crianças, homens e mulheres.

Diante do caos mental em que se encontra, os dias de Kyun-ha parecem estar estacionados, mas isso muda quando Inseon, uma amiga de longa data a pede que viaje até sua casa, na Ilha de Jeju e cuide de seu pássaro de estimação, que foi abruptamente deixado.

É revelado que Inseon e Kyun-ha se conheceram quando trabalharam juntas em um jornal, a primeira como fotógrafa e a segunda como jornalista. Possuindo a mesma idade, logo se tornaram mais do que colegas de trabalho e mesmo quando ambas deixaram as respectivas profissões para trás, seguiram em contato. Enquanto pode-se perceber uma mínima similaridade entre a personagem principal e a escritora do livro, a figura de Inseon e sua história carregam o teor histórico que Han Kang comumente trabalha em suas obras:

Filha de pais mais velhos, a família de Inseon era formada por residentes de Jeju que enfrentaram o cenário de horror durante os anos de 1947 e 1954, tendo seu próprio pai sido capturado e preso pelo governo. Mesmo sem querer, ela é uma criança nascida a partir daqueles que conheceram a dor do Massacre de Jeju.

Se em sonho ou na realidade, ela passa o que sabe sobre o acontecimento para Kyun-ha, que absorve pouco a pouco todo o sangue derramado naquela terra onde é forasteira.

"Com passos despreocupados, o pássaro subiu na palma da minha mão. No momento em que as patas ásperas tocaram minha pele, o frio se foi, como se dentro do meu coração e das minhas pupilas tivesse brotado um fogo", escreve Han Kang.

É com a sua prosa poética que Sem despedidas encanta e hipnotiza o leitor, obrigando-o a encarar os corpos mortos e abandonados em Jeju, a dor e as rachaduras nas vidas dos moradores que sobreviveram e das gerações que nasceram deles, como é o caso de Inseon.

Mesmo tocando na ferida histórica de uma nação, Han Kang afirma desejar que o livro seja “uma obra sobre amor genuíno”. Assim como em suas obras Atos humanos e O livro branco, ela cria uma narrativa onde o sentimento de amor se faz genuíno aos olhos atentos. Está na relação entre as duas amigas, quando Kyun-ha larga tudo para viajar até Jeju, está em Inseon cuidando com delicadeza dos seus pássaros e está, principalmente nas memórias escavadas pouco a pouco, revelando uma vida inteira de ação para encontrar o que se perdeu.