A obra poética de Marly de Oliveira pode ser sintetizada em três características principais: dicção refinada, ritmo marcante e sensibilidade filosófica.
A editora Record lança a Antologia Poética, que reúne 15 livros da autora, publicados entre 1957 e 1990. O trabalho teve como organizador ninguém menos que o poeta João Cabral de Melo Neto, seu marido.
Lançada originalmente em 1998, a antologia foi o 18º livro de Marly, premiada nacional e internacionalmente, mas cuja obra tem estado um tanto quanto esquecida. Por isso, o relançamento cumpre duas funções: apresentar a autora às novas gerações e trazer de volta aos antigos admiradores uma grande autora.
De fato, a antologia é um presente para quem aprecia a escrita de Marly, que desde o primeiro livro, Cerco da Primavera (1957), dava mostras da sua força poética. No poema A morte, a jovem de apenas 22 anos abordou, com primazia, o embate que todos teremos mais cedo ou mais tarde.
“E lutarás comigo/ fresca ainda de vento/ presa às luzes do dia/ pelos cabelos últimos. /Quebrantarás meus olhos, sei./ Apagarás as mãos/ para a ternura/ para o amor/ também sei./ E alçarás a distância/ entre mim e quem amo/imperdoável./ E me terás por fim./ Mas sem entrega,/dura./ Mais que difícil/fria.”
Esse talento precoce não passou despercebido. O livro ganhou o prêmio Alphonsus Guimarães e tornou-se o cartão de visita da autora, que logo conviveria proximamente com vários escritores da época, inclusive internacionais. O livro foi saudado com entusiasmo por críticos como Alceu Amoroso Lima e Antônio Houaiss, e poetas como Manuel Bandeira, Cecília Meireles e, depois, o italiano Giuseppe Ungaretti.
Nascida em 11 de junho de 1938, em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, a jovem Marly logo mudou-se para o Rio de Janeiro. Na capital, formou-se em Letras Neo-Latinas pela PUC, e recebeu uma bolsa para estudar na Universidade de Roma. Foi lá que conheceu Giuseppe Ungaretti, um dos maiores poetas europeus do século XX.
Ungaretti foi um dos primeiros a ser seduzido pelo talento da capixaba. Ao ler alguns poemas escritos por Marly em italiano se encantou pelos versos, chegando a apresentá-la num programa literário de radiotelevisão transmitido na Itália.
“Marly de Oliveira é uma jovem poeta brasileira. Quem conhece os seus versos em português, aqueles do seu livro Cerco de Primavera, e aqueles que compõem a sua nova coletânea Explicação de Narciso sabe que neles ela dá prova de raros dotes de profundidade e de graça. Mas como terá feito esta jovem para apoderar-se de nossa língua, de sua secreta musicalidade ao ponto de poder oferecer o dom da poesia que agora ouvireis? É um milagre: a ingenuidade e a profundidade aqui se mesclam com uma novidade talvez superior àquela que surpreende quando se exprime na sua língua materna. É um milagre: simplesmente poesia em um italiano luminoso”, afirmou Ungaretti.
O livro Explicação de Narciso foi dedicado a Ungaretti e também a Antônio Houaiss. Prova da sua articulação no meio dos escritores, apesar de muitos, como Clarice Lispector, a citarem como extremamente tímida. “Eu mesma não sei como consegui quebrar o pudor que Marly de Oliveira tem de aparecer em público. E nem todos sabem quem ela é. Vou apresentá-la com grande alegria: trata-se de um dos maiores expoentes de nossa atual geração de poetas, que é rica em poesia”, afirmou Clarice sobre a amiga íntima, para quem Marly dedicou o livro A suave pantera (1962).
Esse livro, aliás, é uma das obras mais intrigantes de Marly, que aborda, a partir de uma pantera enclausurada, a beleza, a liberdade, a opressão, a crueldade e os instintos animais prestes a saltar à pele. “É suave, é suave, a pantera/ mas se quiserem tocar/ sem a devida cautela/ logo a verão transformada/ na fera que há dentro dela.” A publicação foi agraciada com o prêmio Olavo Bilac, concedido pela Academia Brasileira de Letras.
O enciclopedista Antônio Houaiss foi outro admirador confesso da obra de Marly, tendo publicado sobre ela uma série de estudos. Ao analisar o quarto livro da poeta, A vida natural, sustentava que a aventura poética mostrada pela autora, atingia um estado único na poesia brasileira. “Um fluir sonoro de completo, mas imanifesto domínio dos apoios fonéticos; um artesanato de formas fixas que se embebe no mais acurado conhecimento do passado; uma temática que leva, ao mesmo tempo, ao quinhentismo e antes, e aos amanhãs e depois, pertemporizando-se”, escreveu Houaiss.
A vida natural foi dedicado a Nélida Piñon, outra grande amiga da escritora, e traz uma linguagem etérea. “Ah monja do silêncio, que sei eu?/ que pretendo entender não entendendo? abrigada na noite/ de todas as violências/ noite onde tudo apenas pré-existe/ num sono unânime e completo, sem/a dureza da forma/ e a força de ser vivo.”
Outro livro celebrado da autora foi O mar de permeio (1997), que lhe conferiu o Prêmio Jabuti. Neste caso, sua poesia foi descrita como sendo dotada de “uma linguagem precisa, com musicalidade e profundidade filosófica, abordando temas como amor, tempo, perda e transcendência”. “Bom é ser árvore, vento/ sua grandeza inconsciente;/ e não pensar, não temer,/ ser, apenas: altamente”, escreveu Marly de Oliveira.
Esta antologia recente reúne textos dos diversos livros da autora, além de incluir poemas inéditos. Entre suas obras de destaque, estão Cerco da primavera (1957); Explicação de Narciso (1960); A suave pantera (1962); Invocação de Orpheu (1979-1980), que conquistou os prêmios Fundação Cultural do Distrito Federal e Internacional da Grécia; Retrato (1986), Vertigem (1986) e Viagem a Portugal (1986), que receberam o prêmio UBE (União Brasileira de Escritores); além de O banquete (1988), laureado com o Prêmio Pen Clube do Brasil.
Marly foi casada com o diplomata Lauro Moreira, com quem teve duas filhas. Posteriormente, com também diplomata e poeta João Cabral de Melo Neto, que prefacia antologia e ressalta que a escritora é capaz de “construir, tanto o poema longo como o poema curto, sempre mantendo alto nível intelectual”. Sua preferência pela palavra concreta e pela imagem para descrever o cotidiano e seus próprios sentimentos impressionou o poeta pernambucano, que considerou os livros de Marly como “um exemplo único de coerência, com a paixão da língua portuguesa”.
Com o passar dos anos, embora tendo recebido várias distinções, a obra de Marly de Oliveira - que faleceu em 2007 - foi perdendo lugar junto à mídia e ao público leitor.
Escrevendo sobre ela em 1989, Antônio Houaiss lamentava que, em vista das sérias deficiências no ensino da língua portuguesa no Brasil, poucos seriam os leitores que saberiam situar-se nos seus escritos. Mas arrematava convicto que “tempos virão em que isso se alcançará. E Marly de Oliveira – poeta por ora de poetas – será poeta de todos nós, que a leremos emocionados e gratos pela coragem e beleza que esparziu no nosso mundo.”
Não foi o que aconteceu. Talvez com essa nova edição da Record, o público ganhe mais uma oportunidade de tomar contato com a obra de Marly de Oliveira.