Retratos de família

Vencedora do Prêmio Kindle de Literatura em 2020, Marília Arnaud firma seu estilo no novo livro, "Esboço em pedra e sonho", romance em que destrincha histórias de culpas, mágoas, frustrações e medos

A paraibana Marília Arnaud é uma escritora que não faz concessões, delicadezas ou afagos aos leitores. Nos seus trabalhos, a autora, que recentemente lançou Esboço em pedra e sonho, não usa meias palavras ou histórias bonitinhas, apesar de distrair o espectador com sua prosa poética, suave, que vai embalando a leitura até a hora em que dá o bote, cravando as garras nas entranhas dos incautos.

Nos seus últimos quatro livros, Suíte de silêncios (2012), Liturgia do fim (2016), O pássaro secreto (2020) e Esboço em pedra e sonho (2024), ela deixa claro ao que veio: esmiuçar o que se esconde no mais íntimo de cada pessoa, expor suas feridas, culpas, frustrações, medos. A escrita de Marília é visceral como são todos os nossos fantasmas.

Os livros da autora transitam, basicamente, por um tema único, transvestido de roupagens diversas: as relações familiares. Não as que vemos em propagandas de margarinas, mas aquelas que as pessoas escondem da forma mais velada, mais escura, às vezes por toda uma vida. O lado sombrio dos afetos.

Os amores genuínos, calmos, configurados, o chamado porto seguro emocional, curiosamente, está sempre vinculado a alguém mais velho. Alguém confiável e sereno, um alento para uma vida em que precisamos de algo que nos faça manter laços com a sanidade. Em todos os seus livros, avós, avôs ou mães representam um consolo, um alívio, um momento de relaxar. O elo que mantém em estabilidade, para conter as feras que habitam seus personagens.

“Crescemos, envelhecemos, e os afetos e desafetos, os acolhimentos e abandonos, os carinhos e abusos, o que experimentamos na infância e na adolescência nos acompanham pela vida afora como uma tatuagem, uma segunda pele”, explica a autora, cujas feições e voz suave, a simpatia aberta, não deixam antever o furor interno que ela é capaz de trazer à tona nos seus escritos.

Seus quatro romances, produzidos em um espaço de 12 anos, são contundentes. Em Suíte de silêncio, ela aborda a dor de uma criança abandonada pela mãe, que acompanha de perto o sentimento de humilhação do pai. “Vó Sequela sentava-se ao lado do filho, tomava-lhe as mãos e se calava, segura de que não existem palavras de consolo para os arruinados pelo abandono, assim como nenhum silêncio capaz de confortar aqueles que perderam tudo”, registra um trecho do livro em que ela relata a prostração do pai após a saída da mãe de casa, sem qualquer aviso. Nesse caso, a figura da avó aparece como a força que reúne e sustenta a família.

No livro, paralelamente à dor do abandono materno, a protagonista também se debate com o fim de um relacionamento. “O esquecimento, meu amor, é um jogo onde o único adversário é você mesmo. Renunciei ao esquecimento. Para que me empenhar nessa busca pelo intolerável equilíbrio, pela indiferença, pela negação do que pulsa dentro de mim mesma?”

Se em Suíte de silêncio os sentimentos transbordam de forma relativamente suaves, nostálgicos, Marília permite que os pensamentos mais obsessivos e opressivos venham à tona, em Liturgia do fim. Ao narrar a história de uma família acossada por um pai violento, senhor de todas as coisas e pessoas que transitam em seu entorno, destruindo-as com sua indiferença e violência, ela centra esse dano no filho que ousou enfrentá-lo, e que foi expulso de casa, transformando-se em um ser exilado para sempre da sua própria história.

“O que de fato eu construíra durante mais de três décadas? Carreira, livros, família? Pois tudo isso, que se traduzia em nada, no fim das contas não passara da tentativa de construção de um homem para o olhar de seu pai”, confessa o personagem principal, ao deixar toda sua vida para trás e voltar à casa onde nascera para acompanhar a morte do patriarca.

É em O pássaro secreto, que relata a história de Ramona, uma adolescente que sofre bullying e tem consciência das suas limitações físicas, que a autora alcança seu tom mais denso. Após a descoberta de uma irmã fora do casamento, uma garota linda que obtém toda a atenção que jamais experimentara, e vem morar na sua casa para roubar sua intimidade, a jovem Aglaia vive um surto que põe por terra todas as suas expectativas de uma adolescência saudável. “Como amar alguém que vem para dentro do seu mundo sem ser convidado, e ainda lhe rouba tudo, ou quase tudo, considerando o fato de que eu não tinha muito? Como perdoar alguém que lhe rouba até mesmo o que você julgava impossível de lhe ser tirado?”

A dor da saudade, da culpa, de um tempo que se foi, e a revelação de uma traição que ficou escondida durante décadas, dão o tom às falas de Ramona, protagonista de Esboço em pedra e sonhos. “Da morte eu já sabia, era por trás, de emboscada, que ela desmantelava a vida”, diz a personagem ao voltar à remota Nossa Senhora das Pedras para resgatar o espólio do último membro da sua família e enterrar a última pessoa com quem tivera uma ligação familiar profunda.

A autora garante que nem ela mesma sabe explicar como seus personagens surgem, o momento em que vão ser paridos, o rumo que tomará suas histórias, nem se conseguirão ser finalizadas.

“O processo de criação é um grande mistério. Normalmente, meus romances e contos não nasceram de um acontecimento, e, sim, de um personagem, normalmente o protagonista e narrador que surgem. O ponto de vista, a voz narrativa, é algo que considero fundamental na construção de uma obra de ficção. Um ponto de vista equivocado pode arruinar um romance.”

Esse ponto de vista equivocado foi experimen-tado por Marília há pouco tempo, período em que se dedicava ao Esboço em pedra e sonho. “Quando comecei a escrever o livro usei um narrador em terceira pessoa, um narrador onisciente, e logo percebi que não iria adiante, pois Ramona, a protagonista da história, me pediu que eu vestisse a sua pele.”

A maioria das narrativas de Marília Arnaud é, aliás, em primeira pessoa. A premência de expor seus monstros e suas dores, talvez exija que os personagens aproveitem a oportunidade para se expressar. “Gosto desta intimidade com o narrador em primeira pessoa. Gosto de ver o mundo por seus olhos, sobretudo quando eles me mostram um mundo labiríntico, feio, perigoso.”

Marília Arnaud também não sabe dizer de que forma vão se formando os personagens. “Costumo dizer que não sou eu quem os busca. São eles quem me escolhem e me narram suas histórias de vida. Sou assim, uma espécie de guardiã desses seres fictícios, dessas entidades mágicas que me habitam com suas idiossincrasias e complexidade.”

São também seus personagens que ditam o ritmo e o tempo em que as narrativas são iniciadas. “Em algum momento resolvem dar o ar da graça e me puxam pelo pensamento. Com frequência, passo dias, meses até, tentando ouvir seus sussurros, até que suas vozes se tornem audíveis e eu possa iniciar a escrita propriamente dita. Diferentemente de muitos outros autores, não faço planejamentos, esboços ou qualquer coisa parecida. Simplesmente, deixo a narrativa fluir, e enxergo essa liberdade como uma espécie de pureza, a pureza da minha escrita.”

Veterana

Marília escreve livros, de forma profissional, há mais de três décadas. Tem nove títulos publicados, sendo quatro de contos – Sentimento marginal; A menina de Cipango, Os campos noturnos do coração e O livro dos afetos. Em seguida vieram os quatro romances. Nesse contexto, até um livro infantil foi editado, Salomão, o elefante.

Apesar da carreira longeva, somente a partir do seu terceiro romance, O pássaro secreto, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura, em 2020, a artista passou a ser reconhecida.

“Publiquei dois romances antes do Prêmio Kindle, que passaram quase despercebidos, inclusive aquele que considero o meu livro mais bem-construído, Liturgia do fim. Apenas com a publicação de O pássaro secreto, que continua me presenteando com muitos leitores, os livros anteriores passaram a ser lidos e comentados. Desconheço algo que dê mais visibilidade do que um prêmio literário nacional.”, diz a autora.

Marília reconhece que, apesar de estar na ativa todo esse tempo, somente com o prêmio algum valor significativo passou a cair na sua conta bancária. “Nunca pude viver apenas da venda dos meus livros: longe disso… Sou advogada e durante muitos anos atuei na Justiça Trabalhista como analista judiciária. Há um ano, decidi me aposentar para usar meu tempo integralmente com a escrita.”

Depois da aposentadoria, a rotina de escrever passou a tomar seus dias. “Durante anos, escrevi nas raras horas livres: noites, madrugadas, finais de semana, sem qualquer disciplina, tudo de forma bem caótica. Obviamente teria escrito muitíssimo mais, se não fosse obrigada a trabalhar. Agora, uso parte das manhãs e as tardes inteiras para a escrita: as noites ficam para a leitura.”

Apesar de ter tempo para trabalhar e divulgar sua obra, ela admite que tem enfrentado problemas para se tornar visível ao grande público. “As dificuldades são reais e, acredite, antes da internet eram maiores. Não há dúvida de que nós, autores e autoras que vivemos fora do eixo Rio-São Paulo, estamos à margem dos grandes eventos literários, do mercado editorial, enfim, de toda a estrutura que faz o livro circular.”

Ela, no entanto, comemora o bom momento da literatura feminina no Brasil. “Estou na vida literária há muitos anos, e confesso que nunca antes vi uma literatura brasileira tão rica, tão pujante, em quantidade e qualidade, tão diversificada, uma imensidão de vozes e de temas, especificamente questões identitárias de gênero e raça. Durante anos, o mercado editorial alijou as mulheres. Acredito que essa situação mudou; basta ver para quem estão indo os prêmios literários. Cito algumas que li nos últimos três anos: Ana Cristina Braga Marques, Maria Fernanda Elias Maglio, Maria Valéria Rezende. Rosângela Vieira Rocha, Micheliny Verunshk, Débora Ferraz, Letícia Palmeira, Alê Motta, Conceição Evaristo, Adriana Lisboa, Cíntia Moscovich, Heloísa Seixas, Carola Saavedra, Anita Deak, Vanessa Passos, Socorro Acioli, Aline Bei, Andréa del Fuego, entre muitas outras.”

Leitora desde a infância, começou a se interessar pelos livros de Monteiro Lobato, e, logo em seguida, pelas obras de Machado de Assis, José Lins do Rego e Érico Veríssimo – cujos personagens das sagas O tempo e o vento são citados nos seus romances. Marília tem uma paixão especial pela belga Marguerite Yourcenar, que se naturalizou americana. “Gostaria de ter escrito Memórias de Adriano”, diz a escritora.