Denise Stoklos, Grace Passô, Nelson Rodrigues
Ainda que no último ano e meio os palcos e as plateias tenham ficado esvaziados por conta da pandemia de covid-19, o teatro se manteve pulsante. Além da experimentação com outras linguagens, principalmente o audiovisual, criando híbridos ainda em busca de classificação, foram colocadas em pauta questões importantes, como a efemeridade da memória das artes cênicas. Nesse sentido, evidenciou-se ainda mais uma das grandes lacunas na área, a publicação de dramaturgias, problema agravado quando se trata de textos contemporâneos, e a dificuldade de legitimação, para alguns setores das Letras (e leitores), do texto teatral como literatura.
Uma das questões que acirram esse território fronteiriço do teatro é justamente sua origem ligada à oralidade, ao presente da encenação e ao convívio. As teatralidades ocidentais emergem de ritos, festividades, do corpo em festa ou devoção, para posteriormente serem formalizadas em arquivos e palavras escritas. Há, dessa forma, uma dupla existência teatral: a do repertório (o efêmero das linguagens espetaculares, da palavra, dos gestos e ritmos do corpo) e a dos arquivos (o teatro como literatura e os registros que são inscritos, em diferentes mídias, a partir da encenação).
Para que se pense a memória do teatro é preciso levar em consideração essa realidade que, assim como seu objeto, é performática e está em constante disputa. Atualmente, muito do que entendemos como teatro vem justamente de documentos de memória. Foi o peso da palavra escrita e reproduzida que legitimou o teatro grego como o berço do teatro ocidental. Os clássicos de Eurípides, Sófocles e Ésquilo, hoje amplamente conhecidos (e publicados), são apenas uma pequena parte da vasta produção desses autores, entre tantos outros perdidos no tempo.
Na Grécia, o teatro não tinha um papel apenas de entretenimento e, além de toda força que o compartilhamento de um mesmo tempo e espaço pode evocar, as peças provocavam também debates sobre a sociedade e a vida política. Assumia, portanto, um caráter de instrumento de reflexão. Assim, o teatro é pensado em sua dimensão social e em termos teóricos por pensadores como Platão e Aristóteles — este último é autor de Poética, obra que ajudou a estruturar fundamentos da estrutura do gênero dramático.
Por outro lado, foi a efemeridade do repertório que apagou as performances de povos originários latino-americanos desse fio da historiografia oficial. As publicações de teatro têm, portanto, um peso ético e político, que diz respeito tanto às formalizações estéticas que propõem quanto à luta por espaço num mercado editorial mais amplo. No Brasil, onde o teatro é introduzido como instrumento de dominação religiosa pelos jesuítas, ainda no século XVI, com peças de padres como José de Anchieta, as publicações dramatúrgicas só começam a se tornar uma realidade no século XIX, após a chegada da família real portuguesa que se mudou para a colônia para fugir de Napoleão Bonaparte.
Apesar da existência pregressa de Casas de Ópera (como a de Ouro Preto, MInas Gerais, que hoje é o teatro mais antigo ainda em funcionamento nas Américas, datado de 1769/1770), ou mesmo de iniciativas de teatro popular e itinerante, o decreto para a construção do primeiro teatro do país só foi assinado por Dom João VI em 1810 e o espaço, localizado no Rio de Janeiro, passou a ser palco de companhias europeias. Um teatro escrito por brasileiros só começaria a tomar corpo, de fato, a partir da década de 1830, já no período posterior à Independência. Autores como Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, José de Alencar, Castro Alves, entre outros, contribuíram com a produção dramatúrgica de um país que tentava construir sua própria identidade, desvinculando-se de Portugal.
No momento em que florescia o Realismo, na segunda metade do século XIX, a produção teatral continua ganhando fôlego e agrega um número crescente de autores, entre eles Artur de Azevedo e Machado de Assis, que ficariam mais conhecidos por seus trabalhos em outros gêneros, como poesia e romance, mas que fizeram da dramaturgia também um exercício de criação e comunicação com as massas. Apesar de discreta, houve também a participação de mulheres nesse processo de escrita para teatro, como é o caso de Maria Angélica Ribeiro (1829–1880), cuja peça Gabriela, que estreou em 1863, foi bem recebida pela crítica e pelo público.
Até esse momento, porém, todas as dramaturgias levadas aos palcos dependiam do que estava no papel. No século XX, o surgimento da figura do encenador transforma a relação com o conteúdo do texto e o que era levado para a cena. A desconstrução do imaginário até então consolidado de teatro é radical. Assim, importantes peças de teatro, muitas vezes, não tinham sua força apreendida pelos textos. A partir da década de 1940, grandes nomes, como Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto, impactam o cenário nacional com suas criações para teatro, como Vestido de noiva, O auto da Compadecida e Morte e vida severina, respectivamente.
É um período, também, em que o teatro político ganha mais força, especialmente na década de 1960, frente às atrocidades da ditadura militar, e que questões identitárias começam a ganhar espaço, como em trabalhos do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias do Nascimento — diretor, pesquisador e dramaturgo que organizou, entre outras, a coletânea Dramas para negros e prólogo para brancos (1961). A obra reunia textos de dramaturgos como o próprio Abdias, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, José Moraes Pinho e Romeu Crusoé. Data desse compilado, por exemplo, a peça Além do Rio (1957), de Agostinho Olavo, que, em um movimento de releitura e antropofagia do clássico da literatura ocidental, publica a primeira transcriação de Medeia para o Brasil. Na trama, diferentemente do choque entre as culturas gregas e os ditos bárbaros presente no texto de Eurípides, temos um conflito entre o casal Jinga, uma rainha africana da Costa do Ouro, e um Jasão branco, partidário da escravatura. Tais movimentos foram decisivos para outros processos de releitura de cânones, que posteriormente trouxeram aos palcos e a programas televisivos as aclamadas Medeias de Fernanda Montenegro (criada por Oduvaldo Vianna Filho), Bibi Ferreira (de Chico Buarque e Paulo Pontes) e Denise Stoklos (na Des-Medeia escrita e publicada pela própria intérprete).
Até hoje esses autores — entre outros poucos, considerando-se as várias criações para o palco ao longo do último século — não só são enaltecidos por suas dramaturgias, como também são, inquestionavelmente, lidos como literatura. Suas obras ganham reedições frequentes de grandes editoras, algumas delas incluídas no material didático de escolas, e permeiam o imaginário coletivo por meio de outras linguagens, como o cinema, através de adaptações. O feito pode ser considerado raro e levanta debates sobre que tipo de teatro (se é que possível fazer esse recorte) atrai o mercado editorial e ultrapassa a resistência de certos setores críticos e do público leitor.
PARTICULARIDADES DO TEXTO TEATRAL
Sobre o teatro publicado e suas particularidades de criação e leitura, Luís Reis, professor do Departamento de Artes da Universidade Federal de Pernambuco, analisa que nesses textos há diferentes indícios da encenação. Em autores como Samuel Beckett, por exemplo, tais marcas são bastante fortes, o que faz com que muitas montagens do mesmo texto sejam parecidas, uma vez que a própria dramaturgia já apresenta diversas instruções cênicas, de posicionamentos, ações, modos e intensidades de fala etc. Por outro lado, autores como William Shakespeare apresentam textos dramatúrgicos nos quais a força da cena está mais diluída, não havendo tantas didascálias com indicações do que os atores devam fazer. Fator estético que diz muito sobre o período histórico do teatro elisabetano, momento de proeminência das obras do bardo inglês.
“Osman Lins dizia uma coisa ótima no ensaio Guerra sem testemunhas: que ele não gostava de teatro, mas que não podia, como escritor, abrir mão do prazer de ter o texto dele dito diante de uma multidão e que era isso que levava ele a escrever teatro. Ele entendia essa força da literatura viva. A criação poética no teatro, em grande medida, é você ver a literatura ganhando corpo, suor, voz, saliva”, pontua Luís Reis. “A literatura dramática requer algum conhecimento do fenômeno teatral, talvez por isso muitas pessoas não tenham o hábito de ler ou não estejam familiarizadas com ler peças. A literatura dramática é uma tentativa de registrar no papel a poesia teatral. […] No teatro você trabalha, você é cocriador. E isso também fica evidente na leitura do texto, ele te interpela.”
Um dos fatores que ilustram a fala de Reis é que boa parte dos textos teatrais publicados prescindem de narração ou de descrições detalhadas de ambientes ou do caráter psicológico dos personagens, conforme vemos em gêneros narrativos como o romance e o conto. Mesmo que o século XX tenha mostrado que qualquer texto pode ir para a cena (bulas de remédio, transcrições de documentos judiciais, fluxos de consciência e outros), nas publicações dramatúrgicas brasileiras ainda é imperativa a presença de diálogos interpessoais ou monólogos dirigidos ao público/leitor.
Dessa forma, a escrita teatral se inscreve mais na ação (seja falada ou em sentido literal) do que na narração. Na literatura teatral, assim como no palco, temos um corpo vivo e falante, que produz mais movimentos exógenos que endógenos. Se em um romance é possível que determinado personagem pense, em silêncio, sobre outro personagem que está diante dele, no teatro dificilmente teremos essa forma de escrita, uma vez que o texto (pelo menos em suas formas mais ligadas ao drama aristotélico) está sempre realizando uma triangulação entre personagens e espectadores.
Essa experiência singular da leitura dramatúrgica, que evoca o fenômeno da encenação, pode ser apontada como uma das razões que causam um certo estranhamento do grande público (muitas vezes completamente apartado do teatro, por falta de acesso ou estímulo). O editor Philippe Curimbaba Freitas, da Temporal — editora focada na publicação de dramaturgias —, aponta que é importante estimular que o público geral associe o texto dramatúrgico à literatura. Para ele, alguns livros desse gênero literário apresentam maiores dificuldades porque lidam com a linguagem do palco, que não está dita. “É como uma partitura musical: as notas estão escritas, mas não como você tem que tocar”, enfatiza.
Se o teatro é uma arte da presença — em que artistas e público compartilham o mesmo tempo e espaço — a experiência de leitura do texto é primordialmente individual. Assis Benevenuto, um dos fundadores e editores da Javali, também especializada na edição de teatro, ressalta a importância dos livros nas construções de pensamentos e afetos. “Muitas vezes esses livros não são livros de teatro. Quando será que um livro de teatro cumprirá essa função? Quando ele será essa experiência?”, indaga. “Teatro e cinema não são lidos de forma massiva nas escolas. Se a gente consegue que um livro desses seja adotado, por exemplo, no Ensino Médio, isso muda a perspectiva de tudo: das editoras, do teatro, até mesmo do preconceito sobre o que é fazer teatro.”
Segundo a recente pesquisa de mercado realizada pela Nielsen Book, coordenada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em parceria com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), em 2019 foram editados 50 mil títulos no Brasil, sendo 73% deles reimpressões e 27% novos títulos. O levantamento, divulgado em junho de 2020, apontou que o setor livreiro produziu 395 milhões de exemplares naquele ano. Ao todo, somando as vendas do mercado e do governo, foram vendidos 434 milhões de livros, gerando um faturamento de R$ 5,7 bilhões. Dentre as produções por temáticas, a religiosa apresentou o maior crescimento, indo de 18,8% na pesquisa anterior para 24,9% na atual. A seção de Artes, que engloba não apenas o teatro, mas diversos outros segmentos, subiu de 597.600 exemplares (0,17% em 2018) para 1.147.601 (0,37% em 2019). Diante desses dados, não é de se estranhar a pouca presença dos livros de teatro no imaginário do leitor brasileiro, conforme frisou Benevenuto. Talvez, perante possíveis iniciativas de adoção de dramaturgias no Plano Nacional de Leitura (PNL), esse cenário possa ser modificado, com a emergência não só de novos leitores, como também de novas editoras e artistas interessados em experimentar as publicações de teatro em todas suas possíveis variações (gráficas, de linguagem e outras).
Abdias do Nascimento, Jé Oliveira, Ariano Suassuna
Membro do grupo teatral mineiro Quatroloscinco, Assis criou a editora a partir do desejo (e necessidade) de autopublicação e de referências para formação pedagógica. A Javali foi pensada a partir de outras iniciativas espalhadas pela América Latina, como a Libros Drama, de Ariel Farace, de Buenos Aires, e já publicou 40 títulos desde sua fundação, em 2015. Entre os títulos impressos estão obras como Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens, de Jé Oliveira, Vaga Carne, de Grace Passô, as obras de Eid Ribeiro e uma coletânea com textos contemporâneos de grupos e artistas negros de Belo Horizonte. Dentre os próximos projetos da editora figuram a publicação da tradução de Ñuke, de David Arancibia Urzúa, escritor que se declara mestiço mapuche chileno, e Jaity Muro, em versão bilíngue (guarani-kaiowá/português), dramaturgia de Júnia Pereira e Rossandra Cabreira, do Grupo Orendive, de Dourados (MS).
“Não dá pra pensar teatro sem pensar a língua, [pensar] a linguagem sem pensar a língua. Não dá pra pensar um teatro político, ou teatros políticos, não dá pra pensar esse país sem pensar nos povos originários, nos afrodescendentes, sem pensar nós que somos classificados como brancos, sem pensar a confusão que é esse país”, reflete sobre o perfil editorial da Javali. “São posicionamentos políticos e estéticos. […] Se a gente publicasse só os franceses famosos, venderíamos bem, seríamos super contemporâneos. Mas de novo? Sempre?”
Assim como a Javali, a Temporal também investe na edição de autores contemporâneos, dos anos de 1960 aos dias atuais, entre brasileiros, como Sérgio de Carvalho, da Companhia do Latão, e Oduvaldo Vianna Filho (autor de A longa noite de Cristal, de 1969, inédita em livro até 2019), e estrangeiros, a exemplo de Botho Strauss, Thomas Bernhard e Jean-Paul Alègre. A editora também pretende investir em obras do final do século XIX que influenciaram as transformações da modernidade que viriam a seguir, como uma forma de resgate da tradição teatral.
A Temporal também tem investido em publicações na internet de textos críticos e teóricos sobre as artes cênicas. A intenção é ampliar os debates sobre a linguagem e aproximar outros públicos dos textos dramatúrgicos, criando, dessa forma, uma ponte que aproxima a produção ensaística e paratextual das textualidades ficcionais. “É uma forma de trazer um pouco essa experiência da leitura do teatro, que é uma coisa que a gente percebe que as pessoas têm um pouco de medo. A ideia é fazer o público geral entender o teatro como algo que pode ser lido, associado à literatura. Ler uma peça de teatro ser como ler um romance, um conto. É uma aposta e uma tentativa de aumentar público”, reflete Philippe.
Um dos esforços da Javali para aumentar sua abrangência está (pelo menos estava antes da pandemia) em um encontro tête-à-tête com seu leitor. Isso se tornou possível graças a uma banca de livros itinerante montada em apresentações e festivais. Com a banca, segundo Benevenuto, há uma troca de ideias e a possibilidade de que ele conte um pouco sobre a história daquelas publicações. Tais incursões, na visão do editor, possibilitaram a circulação dos livros para além das livrarias que estão presentes principalmente nos grandes centros urbanos — para ele, é uma tarefa fazer com “que esses livros estejam lá [fora dos grandes centros] e que as pessoas que fazem teatro nesses lugares tenham um local para acessar esses livros”.
A editora Cobogó também desenvolve um trabalho robusto em relação às dramaturgias brasileiras contemporâneas, com a publicação de peças de nomes como Jô Bilac, Inez Viana, Christiane Jatahy, Marcio Abreu e Jhonny Salaberg. Se essas peças contemporâneas — a maioria já montada — já se aproximam de uma oralidade mais palatável para o leitor, algumas obras, principalmente aquelas que adaptam clássicos estrangeiros, têm o desafio adicional da tradução. Rubens Figueiredo, que traduziu A gaivota, Tio Vânia, Três irmãs e O jardim das cerejeiras, clássicos de Anton Tchékhov, reunidos em uma edição recente da Penguin-Companhia das Letras, defende que a relação das palavras com o palco é uma via de mão dupla, com o dramaturgo pensando a encenação e os atores e diretores se confrontando com as imposições do texto.
“O autor escreveu tendo sempre em mente que o texto se destinava a ser falado no palco. E foi assim também que eu traduzi, em português. Na minha visão, os atores e diretores não são autores nem tradutores, como estes também não são atores nem diretores. Sem o pianista, a música não existe. Mas nem por isso o pianista muda as notas da partitura. São essas restrições, de parte a parte, que constituem os desafios do artista. Em confronto com os limites do seu âmbito próprio de ação, o artista desenvolve sua força, confere alcance ao resultado do seu trabalho. Fugir dos limites, quem sabe, pode ser antes uma facilidade do que um mérito ou uma demonstração de talento”, enfatiza.
Outras correntes de tradução teatral, adotadas por nomes como Sara Rojo e Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, que além de linguistas são também diretoras de teatro, defendem uma tradução que se aproxime do palco. Para tanto, realizam seus processos tradutórios em parceria com os atores, numa espécie de tradução coletiva. Para Barbosa, as traduções brasileiras dos clássicos gregos, realizadas ao longo do século XX, perderam a conotação popular que o teatro possuía na Grécia e remontaram a uma linguagem mais erudita, próxima da poesia e do beletrismo.
Em relação ao fomento da publicação de dramaturgias, algumas iniciativas têm buscado preencher lacunas deixadas pelo mercado editorial. Em Pernambuco, o Governo do Estado, em parceria com a Cepe Editora, promove o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia, que premia obras inéditas nas categorias Teatro Adulto e Teatro para Infância. Além da premiação em dinheiro, os autores têm suas obras publicadas, em livro físico ou digital. Editais do tipo, aliados a projetos como oficinas de dramaturgia, estimulam o surgimento de novos dramaturgos e a possibilidade de ampliar as visões de mundo presentes nesses textos.
OLHARES PLURAIS
O número reduzido de publicações de dramaturgia pode dar a impressão de que se produz pouca literatura do gênero no Brasil, o que não é verdade. Com uma produção vibrante e prolífica ao longo das últimas décadas, a dramaturgia nacional tem refletido as inquietações de seus criadores e dos tempos em que são escritas. Questões identitárias, que refletem as vivências de corpos e subjetividades historicamente excluídos, como os da comunidade LGBTQIA+, negros, indígenas e mulheres, têm sido transpostas para as letras e para os palcos a partir dos próprios sujeitos em questão.
Mesmo que não cheguem a ser publicadas nos meios tradicionais, essas dramaturgias começam a encontrar também espaço na internet, com a proliferação de sites que mapeiam essa produção, como é o caso do Melanina Digital (melaninadigital.com), site que reúne criações de dramaturgos negros contemporâneos. O endereço virtual também agrega conteúdos como vídeos, fotos de peças e áudios de leituras dramatizadas. Podcasts também têm sido uma ferramenta usada com frequência para discutir a produção deste gênero literário e lançar luz sobre a produção de minorias, como o Spoilando a Peça (disponível no Spotify), programa que documenta a dramaturgia contemporânea feita por mulheres.
Uma questão acentuada pela pandemia e a consequente impossibilidade de realizar encenações teatrais ao longo do último ano e meio foi a proliferação dos híbridos de teatro com as outras linguagens. Nesse processo, a dramaturgia se aproximou de forma ainda mais intensa do audiovisual, com grupos de teatro como o Magiluth, de Pernambuco, e o Armazém Cia de Teatro, do Rio de Janeiro, entre outros, classificando o texto de suas obras como roteiros. São trabalhos atravessados em suas temáticas pela crise sanitária e o contexto político e social, direta ou indiretamente, e que, em sua forma, também tensionam convenções de linguagem.
É, portanto, muito provável que a pandemia de covid-19 modifique não apenas os modos de produção de artistas e editoras, como já vem acontecendo, mas que incendeie tantas outras incertezas e perguntas. Parafraseando Alain Badiou, em seu Elogio ao teatro, essa arte das hipóteses, das possibilidades, esse tremor do pensamento diante do inexplicável, é o teatro em seu mais alto destino, visto como uma máquina de absorver contradições e criar a partir delas.