No distante mundo pré-pandemia, uma crise assombrava o mercado editorial brasileiro. Seu roteiro: a recuperação judicial das grandes redes nacionais de livrarias, a agressividade injustificada da empresa do homem mais rico do mundo, problemas e omissões por parte do Governo Federal na compra de livros e a falha estrutural de sempre do Brasil em formar leitores. Quando estoura a atual crise humanitária sem precedentes no contemporâneo, com o Brasil já mergulhado em um sentimento anticultural talvez inédito, o roteiro, que já era sombrio, ganha contornos ainda mais assustadores. E as livrarias independentes — o elo mais frágil de uma cadeia já fragilizada — sofrem um baque enorme.
No pandêmico abril de 2021, as livrarias Argumento, Berinjela, Blooks, Folha Seca, Janela, Leonardo da Vinci, Lima Barreto e Malasartes se uniram no grupo “Livrarias Cariocas”, reforçando a mensagem de fragilidade: “O que seria da história das cidades sem esse lugar, sem essa ideia chamada livraria?” O grupo de livreiros do Rio de Janeiro passou a reforçar as pautas coletivas para se contrapor às tamanhas circunstâncias adversas.
A Blooks (também com lojas em São Paulo), por exemplo, precisou de um financiamento coletivo em setembro passado para resistir. Conseguiu arrecadar R$ 93 mil de leitores e apoiadores dedicados.
A histórica Livraria Da Vinci, nos últimos anos sob nova administração, adotou as redes sociais para, por um lado, criticar o projeto do governo federal em adotar taxação para os livros — que teria impacto no mercado como um todo, nas livrarias em especial —, e por outro, sensibilizar os clientes e leitores sobre um hipotético fechamento. Em postagem de 17 de março, a página da livraria mostrava um recado: “Fechada para sempre”. Dizia o texto: “Imagine essa mesma placa no restaurante do seu bairro, pendurada na vitrine do seu mercadinho preferido, em todo o pequeno comércio da sua cidade. Imagine sua cidade sem comércio local, sem vida de rua, sem cena cultural, uma cidade que gera poucos subempregos super explorados. Imagine sua cidade tomada pela economia de aplicativos com um exército de trabalhadores andando de bicicleta ou moto 14 horas por dia para a sua felicidade smart e quem não pode se sacode”.
Era apenas uma reflexão (“A Da Vinci não fechou, nem vai fechar, gente”, afirmou a mesma página), com visão crítica sobre as grandes companhias, muitas delas estrangeiras, arvoradas na especulação do capital e do trabalho, despreocupadas com qualquer vã distração além do lucro certeiro e, por vezes, bilionário. “A loja subterrânea/ expõe os seus tesouros/ como se defendesse/ de fomes apressadas”, preconizava Carlos Drummond de Andrade, no poema dedicado à Da Vinci, publicado em 1973.
Outras lojas, menos afeitas ao ambiente hiperconectado das redes sociais e do comércio virtual, tiveram destinos desagradáveis. A São José, uma das mais antigas da cidade, fechou. Em quase 80 anos de existência e diversos endereços, a essa livraria é atribuído o primeiro lançamento com a presença do autor autografando os livros: era Manuel Bandeira e o seu Itinerário de Pasárgada, em 1954. Nos anos seguintes, a livraria receberia outros eventos, inclusive de música, inaugurando no país uma mistura que se mantém até os dias de hoje — ou dos dias do que se pode chamar pré-pandemia. Quando leitores podiam confraternizar cercados de livros em cafés e restaurantes, e filas se formavam para que uma pessoa, no mais das vezes estranha, assinasse a primeira folha de papel de um volume recém-adquirido ali mesmo.
Com particularidades e diferenças, as histórias das livrarias de rua do Brasil neste pouco mais de um ano de pandemia se dividem em angústias, incertezas, coincidências e desfechos variados. Do apoio da comunidade de leitores formados em torno das lojas à falta de amparo de um governo em cujo cerne está a destruição da cultura como um todo (pelo menos no discurso, e aqui linguagem e ação se confundem), as livrarias formam um microcosmo próprio, em acelerada transformação desde que o primeiro coronavírus se reproduziu por aqui. Se as livrarias de rua cariocas ganharam espaço na mídia graças à sua tradição, como em outras partes do país o ramo mais sensível do mercado editorial tem reagido?
Quando a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévich ganhou o Nobel de Literatura seis anos atrás, o gênero da história oral foi alçado a patamares inéditos, transformado pela paciência aparentemente infinita da autora em literatura de alta voltagem. Pouco explorado pelo jornalismo brasileiro, com um pouco mais de espaço no campo da historiografia, o gênero foi o escolhido pelo Pernambuco para contar, ao lado de livreiros de sete cidades diferentes, uma história oral da pandemia para as livrarias brasileiras. Uma história oral, que, como já afirmamos, parece um roteiro. Um daqueles de assustar.
Atores e cenários: Alencar Perdigão (Livraria Quixote, Belo Horizonte – MG), Daniela Amendola e Roberta Paixão (Mandarina, São Paulo – SP), Éderson Lopes (Taverna, Porto Alegre – RS), José Luiz Tahan (Realejo, Santos – SP), Natália Costa Garcês (Palavrear, Goiânia – GO), Tamy Barbosa (Lamarca, Fortaleza – CE) e Thiago Tizzot (Arte e Letra, Curitiba – PR)
O PRIMEIRO ATAQUE
Alencar: “Quando começou, em março do ano passado, foi um susto enorme. Um ano se passou, sobrevivemos e aprendemos muitas coisas. Abre e fecha. No total foram mais de cinco meses fechados mesmo. Aprendemos a trabalhar com o delivery. A gente não tinha nem site.”
Roberta: “Era tudo muito novidade para todo mundo. Começamos a tomar atitudes por instinto. Ficamos três meses com a loja fechada. Mas a gente não tinha presença online. Havia uma base de seguidores boa pelo Instagram, mas o negócio era presencial. Aí começamos a ativar WhatsApp, falando com pessoal pelas redes.”
Tahan: “Tinha ido para Portugal em janeiro de 2020 a trabalho e férias, e já estava rolando um papo. Na TV portuguesa, menos desenvolvida do que a nossa, os caras só falavam disso. Em março, vou para um evento nosso no Rio, volto para Santos, e aí na livraria, a cada dia que passava, as coisas iam ficando mais cristalizadas em torno da urgência. Como meu espaço não é grande, fisicamente consigo controlar. Com três funcionários, mandei todos ficarem em casa e decidi tocar a livraria sozinho. Meu contador até me falou do corte de salários [previsto em medida provisória do governo federal], mas não sou eu que tenho que cortar, é o governo que tem que ajudar. Avisei a clientela, e pensei em criar um serviço de livreiro em domicílio.”
Tamy: “Foi muito repentino. Estávamos para completar cinco anos de atividades, e vínhamos trabalhando para estruturar o negócio. Em 2019 tivemos um fim de ano muito bom, começo de ano em 2020 bom, chegamos num patamar de estabilidade, começando a ver que tinha condições de colher os frutos. Aí a pandemia foi um baque muito grande. A gente investiu, antes, na livraria e na cozinha, sempre com foco muito grande em eventos. A gente só ia conseguir manter esse negócio se a gente conseguisse promover encontros entre as pessoas, no espaço físico. A gente teve sucesso, porque havia muitos lançamentos, saraus, pocket shows, vários eventos. Coisa de lotar a casa. E aí de repente não podemos mais receber ninguém.”
Ederson: “O livreiro sempre esteve preocupado em sobreviver. Mas, no momento que a pandemia começou, tudo ficou ainda mais amedrontador. Fizemos um desabafo nas redes sociais, colocamos algumas contas em renegociação. Logo recebemos muito apoio de habitués, clientes muito presentes na livraria começaram a fazer compra antecipada… Recebemos muito apoio. Teve cliente que pagou o aluguel por um mês.”
Thiago: “Decidimos parar no dia 20 de março para ver o que ia acontecer. Achando que ia ser coisa de um mês, um mês e meio. Pensamos: ‘A gente vai dar uma segurada e vai passar…’ No dia 21 de março, que era um sábado, estava marcado o lançamento do meu livro [Esqueletos que dançam]. Mas a gente achou melhor fechar. Se não me engano, ainda não havia orientação da prefeitura e do governo do estado. Mas não tinha opção.”
Daniela: “Começamos a fazer entrega com nossos carros. O que ficou claro foi como a aproximação com os clientes realmente rolou, e que a gente já tinha conseguido criar uma comunidade, uma referência. A Mandarina é livraria de rua, tem poucas na cidade. Conseguimos manter vendas, apesar de o forte ser os eventos.”
Roberta: “Conseguimos transferir a experiência do livreiro, ali na sua frente, para o online. Esse foi o grande desafio.”
Tamy: “A gente não tinha saída, então colocamos as pessoas da cozinha para fazer vendas online. É um atendimento muito complicado por WhatsApp, não há controle do estoque. Fomos indicando livros a partir do que a gente via em cima das mesas… Mas como existiu uma campanha muito grande de apoio aos negócios locais por parte da comunidade, conseguimos fazer.”
Thiago: “Eu fiquei sem ir para a livraria por mais de um mês. Aí a gente percebeu que ia ser mais demorado. Precisávamos sobreviver de alguma forma, não tinha como ficar simplesmente fechado. Comecei a fazer contato com as editoras para tentar fazer venda pela internet, por rede social, de alguma forma com a loja fechada. Consegui fechar parcerias com algumas editoras, que funcionaram. No começo, esses primeiros meses foram bem surpreendentes porque a gente começou a vender livros num volume que a gente não esperava. Começamos a ter um movimento de fato regular, conseguimos. A loja e a editora [ambas se chamam Arte e Letra] se movimentaram.”
Natália: “Foi surpreendente. Antes da pandemia, o café sustentava a livraria. As vendas das livrarias eram sempre menores do que o faturamento com o café. Mas a gente conseguiu se manter com a venda dos livros. Foi uma surpresa muito boa. A gente conseguiu reverter. Café não tinha como abrir, não tinha como.”
Thiago: “Nossa presença online era mais por conta da editora e do café. Com a livraria por si só, sempre achei que a gente não tinha como ir para a internet. A nossa livraria é de rua, é quase impossível a gente criar uma loja virtual para competir com outras lojas que têm muito mais experiência e mais capacidade de acervo. Não adianta. Claro que a gente buscou, mas tem que ser bem claro no que se pode fazer. Não temos como brigar com Amazon, Cultura, Travessa, Martins Fontes, que têm uma equipe e um aparato para estar virtualmente.”
Tamy: “A gente ainda estava se estruturando, não conseguimos aquele auxílio do governo [da medida provisória]. Negociamos com os funcionários, porque eles conseguiram receber o auxílio. O locatário apoia nosso trabalho, sempre foi muito aberto à negociação, muito paciente.”
Ederson: “Especificamente em nossa livraria não tivemos queda de faturamento com as vendas. Em março e abril de 2020 tivemos até um impulso de visibilidade.”
Thiago: “Aconteceram muitas coisas, como um cliente dizer: ‘Eu quero comprar, vou transferir um dinheiro e quando abrir eu vou pegar o livro’. E nunca veio. Não sei como foram nas outras áreas, mas com as livrarias eu senti esse apego das pessoas ajudarem, não deixarem esse espaço morrer. Sentia que as pessoas não tinham necessidade de comprar algum livro, mas faziam esse movimento mesmo assim”.
O MONSTRO TOMA CONTA
Tamy: "Tínhamos 12 funcionários, agora temos quatro, fora eu e o Guarani [Oliveira, sócio].”
Alencar: “Continuamos com a loja aqui na Savassi [a Quixote tem também uma loja no campus da UFMG, fechado desde o início da pandemia]. No ano passado, fizemos delivery e contamos com alguma ajuda do governo. Redução de jornada, férias coletivas, eu e a Cláudia [Masini, sócia] ficamos os dois ralando igual louco. No início rolou um entusiasmo: minha expectativa foi superada pelo entusiasmo dos clientes. Focamos muito e profissionalizamos ao máximo o atendimento. Priorizando atendimento de uma pequena livraria, tiramos foto, mandamos áudios lendo trechos.”
Tahan: “Para trabalhar sozinho, eu botava um rock n’ roll ou chorinho pra lembrar as sextas-feiras na livraria. Fotografava os títulos, fazia os posts individuais, embalava e empacotava e no fim da tarde saía para entregar na casa de cada leitor.”
Thiago: “Quando falo ‘a gente’, sou eu correndo sozinho dentro da loja. É muito diferente o esquema de trabalho, mesmo com apoio da família.”
Tahan: “Não quis fazer um delivery apenas. Quis propor alternativas a partir do que o leitor gosta de ler, aí eu vou sugerir [leituras]. Até inibo pedidos sem direção. Estou em desvantagem, tenho só 100 metros quadrados para armazenar, prefiro sugerir de dentro do meu estoque, que tem uma identidade construída, assim me fortaleço. É a minha vocação de livreiro. Depois degringolou para pedido de [qualquer] livro mesmo, mas a proposta inicial era essa.”
Ederson: “Começamos há alguns anos como livraria online, fazendo entregas de bicicleta. Até então era a única livraria da cidade com site bem estruturado, fazendo vendas para o Brasil todo. Então conseguimos migrar todo o faturamento da loja física para a loja virtual, novamente, num esquema de o cliente fazer a compra e receber em um ou dois dias. Foi positivo já estarmos estruturados para o online antes da pandemia.”
Alencar: “O movimento foi aos poucos voltando. Passamos a contar com um outro vendedor, [porque] o WhatsApp é um atendimento mais detalhado, 10 pessoas ao mesmo tempo teclando. É apertado, mas funcionou.”
Roberta: “Buscamos outras fontes de receita, por dois motivos. Com o café fechado, precisamos de mais faturamento na loja, e precisamos também oferecer mais conteúdo online para as pessoas em casa. Fizemos 30 lives com autores conhecidos: não só para fomentar redes, pelo negócio, mas para oferecer de volta alguma coisa para as pessoas. A primeira quarentena foi isso.”
TRÉGUA
Thiago: “Se não me engano, houve uma reabertura no final de junho. Tinha movimento, mais até do que tinha antes, normalmente. O café abriu muito depois. Mas uma coisa que coincidiu e que acabou gerando um movimento foi que ali por maio a gente lançou O mez da grippe, do Valêncio Xavier. Para a editora a repercussão do livro foi grande, e acabou respingando na livraria.”
Natália: “A gente demorou um pouco mais para abrir. Julho e agosto já estava tudo liberado, mas a gente só funcionou no final de setembro. A gente entendia que não era o momento, decidimos então esperar. Isso inclusive gerou identificação com o público. Mas, quando reabrimos, sentimos uma queda. Nosso público fiel continuava em casa, em isolamento. Ainda sem previsão.”
Daniela: “Editores e leitores ligavam e falavam que a livraria era fundamental, ‘precisamos desses espaços’.”
Tamy: “Fora que tivemos alguns problemas. A gente tem uma estrutura que precisava de reforço de segurança, um portão. Mas a gente não tinha condição financeira para fazer. A Avenida da Universidade [onde fica a livraria] ficou completamente vazia. Uma série de roubos já vinha acontecendo em outros estabelecimentos na região, e aí aproveitaram ainda mais a situação. Levaram os nossos computadores, poderia ter sido pior… tinha caixa de som, outras máquinas. Mas imediatamente os clientes se colocaram para ajudar: não tinha como arrecadar tanto dinheiro, acabamos aceitando campanhas de doações. Com uma semana, a gente conseguiu comprar computadores, compramos celular. E fizemos o reforço da segurança.”
Alencar: “Foi uma surpresa positiva que salvou o ano: nosso delivery aumentou muito, chegou a mais ou menos 40% da venda com as portas abertas. Aí com redução de aluguel, reforço do governo federal [via MP de redução de jornada e salário], os motoboys eram os porteiros do prédio onde moro, funcionou muito bem. Seguramos até agosto.”
Roberta: “Em julho começamos a abrir: depois foi progressivo. Em termos de vendas, foi um ano bom, a gente se fortaleceu muito. Aceleramos o processo da loja online.”
Ederson: “Ficamos ano passado quase todo com as portas fechadas. Tivemos um lockdown inicial, depois não houve um fechamento geral por parte das autoridades. Houve momentos de fazer atendimento presencial com restrições, mas optamos por manter a loja com as portas fechadas, também por estarmos habituados com a venda online. Aceitando o fato de não poder ter eventos, talvez não fizesse tanta diferença. Foi essa a decisão que tomamos. Pessoas apoiaram ainda mais. Abrimos para o público no dia 10 de dezembro.”
Thiago: “Foi muito maluco [publicar O mez da grippe]. A gente já tinha esse livro acertado desde 2018. Mas acabamos adiando um pouco, era para ter saído em dezembro de 2019. Quando vimos já era 2020, parei para trabalhar em abril de 2020, a loja já estava fechada. Era maluco. Eu lia o livro, bastante focado na pandemia da gripe de 1918, e parecia que estava lendo as notícias de hoje. Restrição de circulação, notícias de cinemas fechados, festas impedidas, remédios milagrosos. O Valêncio pega dois jornais… Em um, tudo está bem, e o outro mostra o número de mortes, etc. É muita coincidência. Todo o processo de feitura do livro, e a gente estava fechado. Eu ia na gráfica sozinho, tinha eu, meus pais e minha esposa, até minha filha foi colar livros para ajudar, porque estava tudo fechado. Aí, saiu. Foi uma coincidência.”
NOVOS MONSTROS
Tamy: “Há agora uma concorrência com as editoras, porque elas fazem promoção com descontos agora nos seus próprios sites, então está mais complicado ainda. As editoras até têm sido compreensivas com atrasos, mas a gente não consegue fazer reposição. Lançamentos é o que mais vende, então só de não conseguir esses livros novos é um problema. Na verdade, tivemos uma queda de 50% no período da reabertura. As pessoas estão comprando nos sites das próprias editoras…”
Alencar: “A concorrência do próprio mercado editorial nunca foi muito organizada. Aí aparece uma Feira da Unesp, ainda. Editores se viram no caminho de se tornar concorrentes das livrarias, alegando que precisam sobreviver, e eu não digo que não. Mas esse é um caminho imediatista para um lucro mais rápido. O livro sai da editora em pré-lançamento, vai pra Amazon, quando chega pra gente já chega depois e depois de passar por sites e promoções. Antes, Amazon e Magalu. Aí chega a nossa vez. Isso destrói toda a cadeia.”
Natália: “A gente consegue parcerias com editoras para fazer promoções.”
Tahan: “O mercado tá estranho. É uma selva. Na hora que aperta, ninguém é amigo de ninguém. Não adianta ficar pensando na bolha, vivemos num país autoritário e selvagem. A Amazon faz isso. Porque esse filho de uma puta [Jeff Bezos, dono da Amazon e, segundo a última lista da Forbes, o homem mais rico do mundo] não diminui a margem? Como ele não pensa ‘Vamos tirar o dedo com sal da ferida dos editores e livreiros’. Ele já não depende do livro. A Amazon pode esperar, as livrarias não.”
Alencar: “A compra na Amazon afeta todo o estilo de vida das pessoas. A pessoa compra um livro pra economizar R$10 e chega no outro dia… mas ninguém precisa disso, o que se vende é a pressa, não é o livro. Aí deixa o comércio de rua morrer. Jeff Bezos faz questão de ser nocivo, é a filosofia dele mesmo. Ele diz que quer que todo mundo, quando tenha algum desejo, qualquer coisa, se lembre da empresa dele. Ele tem condições de destruir concorrentes.”
Roberta: “Houve um salve-se quem puder no mercado. No mundo online, todo mundo vende livro. A concorrência é acirrada.”
Daniela: “Mas temos uma relação boa com as editoras, de afinidade. A gente não pode dizer que estão fazendo algo contra nós. Para clube de leitura, por exemplo, elas acabam dando desconto.”
Thiago: “Em clube do livro a editora nunca perde a venda, tanto faz para ela vender pelo site ou pela loja, mas a livraria perde.”
Tahan: “Eu adoraria que as pessoas tirassem lições [da pandemia]. Não é pra Amazon ter moleza.”
Natália: “Essa é uma briga constante. O desconto que fornecem para Amazon, a negociação, enfim, tudo é diferente. A Amazon consegue dar desconto fantástico, e a gente não consegue competir. Esse também é um questionamento, porque não tem a conversa de manter livrarias. As editoras têm um papel fundamental nisso.”
Ederson: “Editoras têm se mostrado bastante compreensivas na negociação de títulos vencidos e na renegociação dos prazos. Há até uma melhora na relação com as editoras. A parceria vai além da consignação, existe agora uma relação mais engajada.”
Thiago: “Eu acho que esse movimento já vinha acontecendo desde quando a gente teve a ‘quebra’ da [Livraria] Cultura, ali já começou um movimento de as editoras pularem um pouco a cadeia. A pandemia agravou isso. É difícil criticar as editoras nesse sentido, elas tinham que achar um meio de sobreviver, mas não se pode negar que a cadeia do livro está com vários buracos. Várias etapas estão sendo puladas, e isso acaba prejudicando. Editoras melhorando o comércio online acaba indiretamente prejudicando as livrarias. Se não se tem um certo cuidado a lidar com isso, se começa a se aplicar um desconto muito grande, o consumidor vai comprar direto lá sempre. A livraria fica em desvantagem. A longo prazo isso vai ser muito prejudicial, porque quem vai deixar de vender são as livrarias pequenas. Isso vai ter que ser discutido no Brasil em algum momento. A cadeia precisa ser reforçada em todos os elos.”
CONTRA-ATAQUE
Tamy: “A gente começou o espaço com o restaurante e uma livraria pequenina. Em 2018 mudamos para um ponto maior, na Avenida da Universidade. Desde o começo tinha um bolinho, uma torta, e em 2019 começamos com almoço. Muito sem experiência de cozinha, mas estava dando certo, a gente tinha um bar. Agora no meio da pandemia, para reabertura, chamamos amigas nossas que trabalham com marketing, uma é chef de cozinha, deu uma consultoria para montar cardápio.”
Tahan: “Tenho mau humor com o termo ‘[livraria] independente’.”
Alencar: “A gente vivia muito de lançamentos. A rua é conhecida na cidade como a Rua da Literatura, pelos lançamentos de sábado de manhã e outros eventos. Além de ajudar no nosso faturamento, contribui muito para o clima cultural da cidade. Isso não conseguimos recuperar.”
Natália: “Duas ou três vezes por semana tínhamos eventos, lançamentos de autores, eventos musicais na sexta-feira… a gente fazia reuniões. Estamos no polo universitário, então havia reuniões de grupos universitários, professores e alunos.”
Ederson: “A gente chegou a fazer um curso online com um dos inúmeros professores parceiros, foi bem bacana a experiência, o curso segue com aulas. Mas como a gente teve uma demanda muito alta de vendas através do site, e como o atendimento online é demorado e mais complicado, optamos por atender os clientes [em vez de fazer mais cursos]. Realmente, a gente tava sem tempo. Com a livraria aberta, os leitores circulam no espaço, conversam sobre os livros, escolhem suas leituras. Às vezes nem conversam com um livreiro. A venda se faz sozinha. Remotamente, tem um atendimento mais demorado, anotar, ver no estoque, mandar dados, a pessoa demora para responder, depois tem as etapas de separação, embalagem, motoboy… Tem uma dinâmica toda diferente em que tivemos um aumento no trabalho.”
Daniela: “Percebemos reconhecimento de curadoria do acervo com essa crise.”
O MONSTRO RETORNA
Daniela: “Mas sempre houve uma incerteza sobre o que ia acontecer em 2021. Em março, novo fechamento. E aí uma experiência completamente diferente. Tem muito a ver com o esgotamento emocional de todo mundo.”
Roberta: “Decidimos dar uma paradinha nos cursos. Março foi muito difícil, as vendas baixaram muito, todo mundo sem energia.”
Thiago: “O que eu percebi é que dezembro abriu para o Natal, e as coisas ficaram meio abertas até fevereiro, havia um fluxo de pessoas, mas quando passou o Carnaval a coisa piorou e teve um fechamento generalizado. Aquele sentimento de ‘vamos ajudar, vamos manter as coisas abertas no comércio local’ deu uma esfriada, até por conta da crise econômica, as pessoas não tinham mais como fazer aquele esforço. Aí as vendas começaram a reduzir.”
Tamy: “Recebemos no período de reabertura R$ 15 mil da Lei Aldir Blanc. De lá para cá vivemos um momento muito crítico. Não fechamos porque não temos condições de fechar. A gente tem vivido um dia após o outro tentando colocar um dinheiro.”
Ederson: “Abrimos no dia 10 de dezembro. Mas aí Porto Alegre virou um novo epicentro da covid-19 por um tempo. Foi bastante sério. Um dos primeiros locais a ter a segunda onda… que na verdade foi uma primeira onda mais forte. Aí fechamos novamente, e todo o comércio também. Teve um impacto de 70% no faturamento em março de 2021 [em relação ao mês anterior]. Só começamos a recuperar agora.”
Natália: “Caiu muito esse ano. Estamos segurando de todas as formas possíveis. Não teve ajuda nenhuma. Sem regras bem definidas, ficamos alguns dias abertos, outros fechados. Caíram demais as vendas.”
SOBRE AUTODEFESA
Tahan: “A gente acaba trabalhando mais. Vou às raias do constrangedor, batendo na porta dos leitores. Tenho relação muito real com clientes. Me sinto muito angustiado se eu não estiver me movimentando, buscando diretamente. Contrato empresas de bicicletas para fazer entregas. Por ser também editor e gerenciar o Tarrafa Literária [festival de literatura em Santos], essas funções se revezam ao longo do dia, assim como agora tenho o clube de assinaturas e outras funções. Mas a pandemia me reconectou fortemente com o ofício do livreiro. Eu gosto. É uma urgência, uma autodefesa.”
Ederson: “Penso muito no atendimento aos clientes e no cuidado que isso requer. Mesmo antes da pandemia, a gente trabalhava com um atendimento bastante cuidadoso. Desde a entrega do produto, com embalagem artesanal, mensagens no pacote… Detalhes que são muito importantes e que fazem bastante a diferença. Isso nos impulsiona, quem não gosta de um pouco de afeto? Forma-se uma corrente, um retorno positivo desse cuidado e dessa atenção. Qualquer coisa manual, um pouco mais de tempo para conversar com a pessoa, tudo isso demanda muito. Às vezes o livreiro acaba sendo um pouco mecânico (venda, sacola, motoboy). Não tem nenhuma relação, nenhum signo ou experiência. A gente sempre tenta passar isso, uma experiência como livraria, para a pessoa se sentir próxima. Sempre que a gente mencionava a situação difícil, entravam um monte de pedidos no site. Essa relação faz com que o trabalho seja mais leve.”
Tamy: “Nossa cidade é carente de livraria de rua, ainda mais uma que consiga ser atrativa e dialogar com as pessoas. Eu e o Guarani [sócio]… nosso contato com os livros veio pela universidade. Veio muito mais de livros políticos, da formação política. A gente queria um nome revolucionário. A gente se identifica com a luta do [Carlos] Lamarca, teve tudo a ver com a ideia de uma livraria.”
Roberta: “Nos tornamos livreiras antes da pandemia. Pra que serve e o que é uma livraria? Para que existem? Essas perguntas ressurgiram. Não foi surpresa, mas foi uma constatação agradável [perceber que as pessoas precisam das livrarias]. Ficamos lendo, dando indicações, conversando com as pessoas. A gente já tinha aberto uma conexão, um caminho. Que se manteve.”
NOVOS ATAQUES
Ederson: “Reagimos de novo, fomos a público expor a situação, para clientes, amigos e escritores. Deram a ideia de fazer um financiamento coletivo, botamos no ar e foi um sucesso. Conseguimos 60% da meta em duas semanas, e acabou também dando visibilidade para a situação da livraria e até para outras livrarias da cidade.”
Alencar: “Desde a reabertura, seguramos até janeiro. Agora mais um lockdown. É a parte mais difícil da história. Não tem nenhuma ajuda anunciada… em nenhum nível de governo. Fechamos e estamos aqui. E não tem mais o entusiasmo, a preocupação. A generosidade acaba diminuindo, até pelas dificuldades financeiras de todo mundo. Agora o delivery está bem inferior ao que conseguimos no ano passado. Estamos passando por um momento de grande dificuldade.”
Roberta: “Fomos pedir ajuda para todo mundo. Promoção, doação de editoras. Milton Hatoum fez autógrafos personalizados para a gente.”
Natália: “Eu não estou conseguindo ser muito otimista. Os casos de covid estavam em estabilidade, mas voltaram a crescer. Estou tentando ao máximo. Até o final do ano, estamos preparados para o abre e fecha. Estamos tentando organizar entrega com empresas. Aprimorando site, pensando em promoções por mês. Eventos não voltarão, eles é que atraíam muito público… acho que até o fim do ano não vamos conseguir retomar a antiga rotina. Entregas e takeaway [retirada presencial]. Tentar manter a livraria aberta: nem pensamos em lucro. Pensamos na Palavrear viva.”
Ederson: “Houve uma queda real no poder aquisitivo das pessoas. Alguns clientes têm o hábito de comprar tantos livros por mês, agora compram menos. Suponho que seja pela perda de poder aquisitivo. Estamos gastando mais com alimentação, por isso cortamos em algumas áreas. Não é a melhor vida sem os livros, mas dá para sobreviver.”
Thiago: “O que nos ajuda muito é que a gente tem a editora. A editora também teve um aumento grande dos livros, e nos mobilizamos para estar melhor distribuídos. Também cresceu o número de vendas, somado com a livraria, a gente consegue manter. Em março, na primeira semana de abril, tivemos a Feira da Unesp, e a editora foi super bem.”
Alencar: “Não consigo pensar em outra possibilidade a não ser união para manter a cadeia do livro. Com a crise das grandes redes, o mercado está corrompido. Se não fizer isso, não vai ter jeito. Tem que respeitar, cada um tem seu papel. Uma Lei do Livro seria uma opção. Uma Lei do ‘Preço Justo’, como dizemos, em respeito à cadeia. É importante o papel da editora, da livraria e da distribuidora. Não se pode entregar tudo à Amazon, que é o que está acontecendo.”
Tahan: “Retomada, para mim, será da relação do livreiro com o leitor. Precisa parar com a pasteurização, olhar para a consignação com moderação, precisa ser muito bem pensada de acordo com a identidade das livrarias. Livrarias têm que se segmentar, têm que ser espelho de algo. A gente não sabe como vai estar o Brasil. É tão paradoxal o Brasil, porque ele aguenta. É a grande ruína também, porque a gente vai se virando dentro dessa ruína.”
EPÍLOGO
No meio desse roteiro de terror, como fica o público das livrarias de rua? Aquele que tinha, num mundo pré-pandêmico, esses estabelecimentos como locais de pouso e de passagem. Perguntamos ao jornalista e escritor Alvaro Costa e Silva, o Marechal, autor de Dicionário amoroso do Rio de Janeiro, sobre a relação entre as livrarias e as cidades. Entre as livrarias e as pessoas. Começamos essa história oral com o Rio de Janeiro e terminamos de volta às terras cariocas:
Marechal: “O Carlito Azevedo, meu amigo e guia de livrarias, me disse que deixou um pouco de ir a livrarias — e talvez ao entender isso a gente entenda por que as livrarias estão em baixa. Ele disse que passou a sentir que se tivesse ido a uma, teria ido a todas, porque são os mesmos livros sempre: os lançamentos das grandes editoras. E se você quiser um livro diferente, vai ouvir a mesma resposta: “Não temos, mas podemos encomendar” — que é a frase que mais odiamos de ouvir numa livraria. Ele lembrava justamente quando as livrarias eram diferentes, e não todas iguais (como a das grandes redes). O grupo das Livrarias Cariocas oferece essas diferenças, porque cada um tem a sua especialidade. Mas especialmente para sair da chatice dos livros mais vendidos, que é igual no mundo inteiro. Nova York, Cidade do México, Paris, Pequim. É uma chatice mercadológica. Mas sou otimista. Num mundo melhor, o caminho será esse tipo de comércio menor, livrarias que não são dos grandes conglomerados. Eu conheci o Carlito numa livraria, que é uma das minhas livrarias de eleição aqui no Rio. A Berinjela, um sebo, bem em frente à histórica Livraria Da Vinci. Como as livrarias antigas, ali funciona como um ponto de encontro, de bate papo e discussões. Lá, aos sábados de manhã, a gente ia em turma, também o [tradutor] Rubens Figueiredo, a repórter Kamille Viola, que levava uma pasta de berinjela para a gente comer com pão. O que é bom lá? A Berinjela a cada visita é uma surpresa. Daniel e Silvia [Chomski, sócios] são craques nessa renovação de estoque. Esta é uma livraria da qual sou devoto, assim como a Folha Seca. O Rio de Janeiro sem as suas livrarias? O Rio não seria bem o Rio.”