Em romance, Enrique Vila-Matas teoriza que sumir pode ser um grande dom.
“É próprio de um espírito de segunda categoria não poder escolher entre a literatura e a ‘verdadeira noite da alma’”. O espírito de segunda categoria, segundo palavras do devastador Emil Cioran, aqui, pertence a Scott Fitzgerald.
Na sua coletânea de ensaios e cartas, Crack-up, o “successful literary man” escreveu sobre sua ruína pessoal. Queixava-se de um golpe “vindo do interior”, que percebeu “tarde demais para remediar”: a revelação de que nunca mais seria “o que era antes”. “Viver é desmoronar progressivamente”, concluiu.
Samuel Beckett, em seu inglês intraduzível, diria que o americano encontrou-se desarmado pelo vazio, ou melhor, “lessness”, mistura de vacuidade e apoteose, fronteira da privação e do infinito.
Lessness é a graça predestinada de alguns e o baque tardio de outros. Fitzgerald, incapaz de pressentir o vazio de suas evidências, foi lançado à força no mundo do conhecimento e viveu a transparência de si mesmo como um golpe e não como um dom.
Havia uma grande noite que lhe tirava o sono. “A escuridão da alma” que lhe mostrava verdades nocivas, “irrespiráveis”. Mas não havia, como houvera para Nietzsche ou Dostoiévski, para Walser ou Kafka, a força de ultrapassar a própria experiência, a energia para reconhecer a superioridade do destino em relação à vida.
Cioran escreveu que o esforço de Fitzgerald para conviver sob sua própria demolição foi patético. O desejo pelo sucesso velou seu despertar; roubou-lhe a graça de perceber o apagamento completo de seu rastro. Nunca mais seria o que era! Poderia desejar um êxito maior que esse?
Fitzgerald, no entanto, lançou-se na autopiedade, na desilusão, porque infiel à sua má sorte. Só um espírito saudável (ainda que isso signifique falar da “frágil saúde irresistível” de quem ouviu coisas demasiado grandes, fortes demais) poderia reconhecer o desastre enquanto método, a “a situação-limite como ponto de partida, o fim como meta!”. Uma pessoa fraca se desilude, apenas. Um espírito saudável, pelo contrário, mira o abismo até que ele o olhe de volta, vive o fim como o único limite possível. A negatividade é o alimento que resta para o artista da fome.
O eterno retorno de Robert Walser
“Poderíamos dizer que ele, ao escrever, se ausenta”, declarou, certa vez, Walter Benjamin sobre o escritor suíço Robert Walser (1878-1956). Autor de centenas de contos e de nove romances, dos quais cinco perdidos, desaparecidos, simplesmente, Walser tinha uma verdadeira repulsa ao sucesso: por vontade própria, vejam só o paradoxo, passou mais de 25 anos em instituições psiquiátricas.
Trata-se de um caso, comparado aos de J. D. Salinger e W.G. Sebald, de um escritor cuja ausência, física além de tudo, tenha aumentado o interesse sobre sua escrita. Nada mais romântico.
Doutor Pasavento, narrador de obra homônima de Enrique Vila-Matas (Cosac Naify, 410 págs), segue Robert Walser. Não a trilha, na neve, em que morreu depois de viver longos anos no hospício de Herisau (o mesmo destino melancólico de Hölderlin), mas o segue em seu desaparecimento. Seu ponto de partida é uma pergunta feita a si por um fantasma, seu alter ego e inventor do gênero ensaio, Montaigne: “de onde vem a sua paixão por desaparecer?”
Pasavento, um escritor que decide sumir durante uma viagem que realiza à Sevilha, não amaldiçoa o abismo. Quer desaparecer, fazer desaparecer sua escrita. Vive uma “forte vontade de dissimulação” para libertar-se de si. E talvez não haja melhor forma de ser empurrado para frente: recusar-se a avançar.
Como escreve Cioran, Vila-Matas não ignora que “nossos pontos de partida importam, naturalmente, mas só damos o passo decisivo em direção a nós mesmos quando oferecemos tão pouca matéria para uma biografia quanto Deus...”. Walser ou o Doutor Pasavento esperam o momento em que nada acontecerá, renunciam, ao contrário de Fitzgerald, a qualquer esperança de sucesso, esperam avidamente “ser ninguém”. À pergunta de Montaigne, Pasavento responderá com romantismo: “não sei, ignoro de onde vem, mas suspeito que paradoxalmente toda essa paixão por desaparecer, todas essas tentativas, digamos, suicidas são por sua vez desejos de afirmação do meu eu”.
Walser tinha uma grafia pequena e cada vez menor no final da vida. Eram letrinhas em pequenas histórias, microgramas, ilegíveis sem uma lente de aumento. Queria se aproximar do eclipse pela escrita. Tinha a consciência de Maurice Blanchot, seu pensamento do fora, para quem a literatura, sempre uma minoração, “vai em direção a si mesma, em direção a sua essência que é o desaparecimento”.
Pasavento, por sua vez, também deseja que sua escrita se aproxime de linhas de sombra, de abismos incontornáveis. Repete frequentemente a fórmula aprendida com Walser, seu herói moral: “quem quiser ir além deverá desaparecer”.
Kafka, para quem Walser também foi guru, sabia que esta educação pelo abismo era um dom, e não objeto de explicação: “Tente explicar a alguém a arte da fome! Não há como torná-la compreensível a alguém que não a sente”. Pasavento, em sua aventura de desaparecimento, como um personagem de Kafka, enseja cultuar o jejum como necessidade, a fome como a arte de “transcender o imponderável”. Conseguirá?
Trata-se de “preferir não”, como outro eclipsado, Bartleby, novela de Herman Melville: pelo tédio, pela recusa completa a qualquer movimento, fazer a linguagem “cair no silêncio”, confrontá-la com esse silêncio, com uma espécie de língua estrangeira, arrasando a linguagem maior, abandonando as qualidades de si, desvanecendo qualquer particularidade.
Bartleby é um homem sem referências que surge e desaparece “sem referência a si mesmo nem a outra coisa”, que faz crescer não uma vontade de nada, mas um intransponível “nada de vontade” (a autoridade do patrão de Bartleby não tem nenhum poder sobre ele, pelo contrário, é Bartleby quem enlouquece os atos de fala do agenciamento patrão-empregado).
A escola de Walser lançou, em vastos subterrâneos a céu aberto, sua “pulsão pelo nada”. Criou espaços feitos de ausências, onde são suspensas essas figuras sobreviventes do vazio.
O Doutor Pasavento busca Bartleby em seu tédio, em sua “poética da extinção”: surge e desaparece “sem referência a si mesmo nem a outra coisa”. Liso: sem posses, sem qualidades, sem propriedades. É impossível atribuir-lhe qualquer particularidade. Por isso, Gilles Deleuze, aquele que torcerá Nietzsche e seu eterno retorno, sugere que o complemento de “I prefer not to” seja “I am not particular”. Desaparecer pelo “infinitamente pequeno”, eis o grande desafio e a aventura que Fitzgerald recusa: “em vez de pensar em sua salvação, se jogar por completo no que o ameaça”, encontrar a si mesmo como o morto que já é.
A vagabundagem radical do Doutor Pasavento quer fazer falar todo esse “cansaço do eu”, toda a saturação pelo gosto, toda a acédia e todo tédio que lhe é consubstancial. Como Walser, parece afirmar: “eu não vou andando sem rumo, vivo sem sentir, não tenho acesso a nenhum tipo de experiência”. Pasavento deseja fazer crescer um nada de vontade que o permita ser “uma entidade perdida e esquecida na imensidão da vida”. Passeio à Virgínia Woolf ou à Roberto Bolaño: no tumulto, onde não se é ninguém, para avançar é preciso desaparecer.
Para usar palavras de Antonin Artaud, a grande noite da alma é o “apetite do não ser”. É preciso, para aceitá-la, como um dom ou destino, sumir, superar a condenação da literatura à fotografia: encontrar a invisibilidade da escrita capaz de fazê-la igualmente intensa, no isolamento ou na vagabundagem.
É mais do que a ausência de Deus. É a ausência do próprio sujeito, seu desvanecer, seu eclipse. A literatura de Vila-Matas (o interesse temático dela, pelo menos) caminha para esse abismo, onde o jejum é uma necessidade e não há como evitá-lo, não por qualquer outro motivo, senão por inexistir comida que lhe agrade (enquanto que para os animais dá-se tanto alimento que a falta de liberdade nem é percebida).
Da escritura particular que encontra as digressões nauseantes de Pasavento, tão entediada de tudo e de si mesma, não é possível traçar qualquer distinção entre a superfície e profundidade. É uma escrita que se quer neutra, como define Blanchot. Neutra ou plural porque capaz de ir ao próprio encontro, ao próprio limite, à origem de si.
O eterno retorno é o mais abismal dos pensamentos. Para atingi-lo é preciso dizer sempre o mínimo, não tagarelar, como escreve Heidegger, não ceder às tolices, buscar, a custo de desaparecer, o silêncio enigmático, a própria morte.
A loucura do bairro walseriano não é um extravio da razão, mas vertigem de um longínquo-próximo que é sempre perigosamente antirracional. Quem atuou no insuportável território da finitude (do ilimitado possível) não furtou-se ao aquém, à região informe do silêncio, do que está Fora, do que não pode ser significado e por isso é tão libertador para a linguagem. A finitude do homem tornou-se seu fim.
Para Blanchot, o importante era fazer sua letra passar por fora de si, negando seu discurso. Nada em sua escrita se confundia com seu “querer-dizer”. Era como se estivesse sempre pronto a nos fazer a começar ler um romance do qual faltasse a primeira página: livre para um começo, de pura origem, e ao mesmo tempo recomeço. Qual o início do vazio senão o próprio vazio? Daí a imagem de uma linguagem que escava a si mesma, a erosão infinita do Fora, o discurso inconcluso, que não representa, não narra, que não possui máscara ou verdade.
Walser ou Pasavento trilham a transvaloração de todos os valores. Não se trata aqui de niilismo negativo (que nega o mundo em nome de valores superiores) ou de niilismo reativo (negação dos valores divinos em nome dos demasiados humanos). Falamos, como Nietzsche (ou seria Deleuze?), de um niilismo passivo, daquele pertencente ao “último dos homens” que ao exemplo de Bartleby ou do homem subterrâneo “prefere um nada de vontade a uma vontade de nada”. Prefere “extinguir-se passivamente”.
O retraimento de Pasavento não é omissão ou derrota, como para Fitzgerald, mas dom. Ele quer ser capaz de cavar a si mesmo e nesse “impoder”, nessa ausência de si, criar uma movimentação, um devir que não havia antes. Nesse desastre de pura passividade o humano se ausenta, é tudo inumanidade (daí que a figura de suas digressões sejam loucos...), enquanto que a coloração do novo tempo surge do impessoal de toda escritura. Doutor Pasavento, como escreve Vila-Matas, é uma história “de alguém que agora se vai, mas fica, mas se vai. Mas volta”.
Paulo Carvalho é mestre em comunicação social