Quando conversamos sobre a escritora e tradutora Maria-Mercè Marçal (1952–1998), nascida em Barcelona e criada em Ivars d’Urgell, alguns temas nos são incontornáveis, como o seu empenho em visibilizar genealogias de escritoras e artistas, a mística dos oráculos, a militância política como socialista e feminista lésbica, o envolvimento editorial com pessoas de seu tempo — foi uma das fundadoras da coleção de poesia Llibres del Mall — e com a língua catalã, que ensinava. Essas tensões-desejos são anunciados no poema que abre o primeiro livro da escritora, sua Divisa: “A l’atzar agraeixo tres dons: haver nascut dona,/ de classe baixa i nació oprimida./ I el tèrbol atzur de ser tres voltes rebel”. (“Ao acaso agradeço por três dons: ter nascido mulher,/ de classe baixa e nação oprimida./ E o turvo azure de ser três vezes rebelde”).[nota1] Esse livro, intitulado Cau de llunes (Covil de luas), nos leva para a primeira imagem noturna que conduzirá a travessia deste texto, aqui enxergada pelo arcano XVIII do tarô, A Lua, tal como aparece no Tarô de Marselha.
Duas figuras caninas estendem suas línguas na direção da lua, para a qual parecem rumar gotas coloridas (o sentido das cores varia), sob a qual existe um tanque cheio de água, no qual há, dentro, uma lagosta. Ao redor, há vegetação, mas duas torres delimitam o espaço da carta, sem a fechar. Apesar da presença de intervenção humana estabelecendo contornos, o destaque desse arcano são suas formas animais e como interagem entre si e com o ambiente que habitam: linguagens animais, vegetais, elementais e entre si. A lua, ela mesma, se encontra tanto cheia quanto crescente, assumindo rosto humano. Como conversam essas criaturas da noite, na noite? O que dizem? O que escutam?
Acreditamos que a poesia de Marçal fala nas línguas dessas criaturas, reconhecendo-se com/ ao lado das monstruosidades, das animalidades, das mulheres, das lésbicas, das vidas vegetais e de todas as existências tidas por abjetas pela norma patriarcal, inclusive das místicas, das bruxas. Escolhemos falar com o tarô — puxando outras cartas junto, como uma tiragem — porque a própria autora tinha os arcanos como parte de sua vida, assim como a astrologia: seu primeiro livro de poemas dedicado ao desejo lésbico, Terra de Mai (1982), contém propositalmente 15 sextinas, para que fosse o número da carta O Diabo; e seu único romance, vencedor do Prêmio Carlemany de prosa catalã de 1994, La passió segons Renée Vivien, envolveu um estudo dos mapas astrais das escritoras e artistas do círculo lésbico e bissexual na Paris da virada do século XIX para o XX — Renée Vivien (1877-1909), Natalie Clifford Barney (1876-1972), Djuna Barnes (1892-1982) e mais outras — para que uma narrativa ficcional que as incluísse pudesse estar mais alinhada para além das historiografias convencionais. Conforme biografia escrita por Lluïsa Julià,[nota2] sabe-se que a escritora constantemente fazia tiragens de tarô para si e para outras pessoas e não havia ninguém nos anos 1970 e 1980 — décadas de profunda militância para ela junto ao independentista Partido Socialista de Libertação Nacional (PSAN) e junto a coletivos feministas — que não a visse com um baralho. Afinal, latzar em catalão também é sorte, A Roda da Fortuna, palavra ambígua do destino como linguagem intuitiva de outras gramáticas, orientada por relações poéticas, lunares, o que para Marçal se fazia junto de suas causas. Uma encruzilhada onde mística e política se vertiam em literatura e vice-versa.
Como uma importante elaboração dessas relações, foram publicados recentemente nos Cadernos de Leituras da editora Chão da Feira, os ensaios Elogio do dragão e Sob o signo do dragão (ambos no caderno n. 150), e Fragmentos do discurso sobre a autoridade feminina e Entre mulheres (n. 149), em nossa tradução. A partir desses textos, poderemos conhecer mais do projeto literário-político de Maria-Mercè Marçal e puxaremos cartas adiante.
Elogio do dragão chega para nós como um tecido em que Marçal explica uma de suas imagens mais impactantes, feita a partir de uma reapropriação subversiva da narrativa patriarcal de São Jorge. O ensaio, transcrição de uma fala da autora no Dia do Livro no Ateneu Barcelonês em 1996, se faz entrelaçando as referências da data em questão, o 23 de abril, entre livros, suportes da literatura, e a história de São Jorge, padroeiro da Catalunha celebrado no mesmo dia. A festa, de tradição medieval, a princípio era voltada ao amor e tinha como presentes as rosas, mas, em 1930, considerando a morte de Miguel de Cervantes (e de Shakespeare) na mesma data, o marco do Dia do Livro foi instaurado. Assim, em meio a essa nação de tradição trovadoresca que celebra sua poesia nos Jogos Florais, Marçal teceu seu elogio feminista ao enredar a literatura, as rosas e o mito do santo, imortalizado por seu feito de matar um dragão que afligia uma cidade e exigia sacrifícios para aplacar sua raiva: “Porque é do sangue do dragão que se nutrem as rosas de São Jorge. É do sangue do dragão que bebe a palavra viva de quem escreve”.
Conforme Marçal nos conta, ao invés de se sujeitar à hierarquização binária e violenta segundo a qual a cultura (São Jorge) derrotaria a natureza (o dragão), ela recupera a imagem do dragão sofredor como símbolo da paixão, o monstro que pulsa dentro de cada pessoa que escreve, retirando-o do exílio que a abjeção lhe impôs. Como ela escreve em seu Elogio: “Porque o dragão é, para mim, a imagem de tudo aquilo que é excluído, e aquilo que é excluído retorna em forma de ameaça, de forma obscura, de inimigo. Todo processo civilizatório exclui e limita o seu domínio sobre a natureza, e sobre as mais diversas facetas da experiência, o seu controle sobre os impulsos primários de vida e de morte comporta o exílio para além da consciência e da linguagem daquilo que é negado, e implica, portanto, sofrimento soterrado, paixão. E tudo aquilo que fica de fora, irredutivelmente outro e desconhecido, é associado com as forças do mal”.
No entanto, são essas forças que podem mover quem escreve, ainda mais ela, reconhecendo-se como escritora feminista: “Se, como escritora, sinto que minhas raízes se afundam no sangue do dragão, como mulher não posso esquecer que o feminino, para além da pobre representação da donzela salva pelo herói, permaneceu excluído historicamente da nossa civilização e se encontra, também, ao lado do monstro, de todo aquele pedaço de experiência caótica — o continente negro — dirá Freud — que não se deixou dizer de todo pela linguagem colonizadora”. Essa passagem, que muito nos lembra O riso da Medusa, cuja tradução foi publicada no Brasil pela Bazar do Tempo em 2022, mostra como Marçal era afetada por pesquisadoras como Hélène Cixous; não é por menos que dedica outro ensaio à Medusa e a menciona neste próprio texto. Tantas figuras monstruosas que, entre tempos e espaços, recebem outros olhares, outras escutas, outras vidas, através de uma re-visão — para usarmos um conceito de Adrienne Rich (1929-2012), uma das pensadoras mais influentes para Marçal, segundo Mercè Ibarz[nota3] — que dê guarida à literatura escrita por mulheres e de tantas outras pessoas e existências que foram invisibilizadas pelo cânone.
Assim, Marçal toma para si essa imagem e inscreve sua poesia Sob o signo do dragão. Escrito em 1989 como introdução ao volume com sua poesia completa, chamado Llengua abolida (Língua abolida), o texto da autora realiza uma travessia pelos símbolos de sua obra, definindo-os com seus próprios termos e em diálogo com as autoras que lia. Em outro entrelaçamento, Marçal retoma a narrativa do dragão ferido por São Jorge em conversa com os escritos de Virginia Woolf (1882- 1941) em A room of one’s own (Um quarto todo seu na tradução brasileira mais recente, da Bazar do Tempo), para sua releitura feminista: “Dragão mudo, língua estilhaçada que se sabe sobrevivente, ainda, enquanto a ferida jorra. Donzela amortecida, colonizada e sem língua. Dois lados da moeda onde se gesta o meu — o nosso — passado. Que deve ser a poesia senão o espelho que me faz retornar uma e outra vez mais a esse cenário e, ao mesmo tempo, a tentativa também reiterada de arrancá-lo de mim, com as palavras, e recompor-me um espaço próprio, um teto próprio?”
Nessa casa que é o livro, na qual se fala em língua abolida, Marçal confere destaque para alguns de seus trabalhos e coletâneas de poesia: Cau de llunes, com poemas de 1973 a 1976; La germana, l’estrangera (A irmã, a estrangeira), que reúne composições criadas de 1981 a 1984 — dentro do qual se encontra o já citado Terra de Mai — e Desglaç (Degelo), com trabalhos de 1984 a 1988. Partindo da Divisa mencionada no começo deste texto, Marçal situa sua rebelião tripla nascida da ferida sob a lua, em um jogo de luz e sombra fora do tempo que tensiona o eu poético como triangulação do conflito diante da solidão. Segundo Caterina Riba,[nota4] o sal, outro elemento tão importante da poética de Marçal, substância associada tanto à esterilidade quanto ao sabor, realiza a alquimia para que os ferimentos se transmutem, o que nos lembra a carta da Temperança, o arcano XIV.
Como etapa desses processos, o eu-lua-sombra em La germana, l’estrangera se faz com-e-contra suas heranças e arquétipos míticos para devir mulher, “Fogo e água, anfíbio estranho, aranha que tece uma ponte do peixe ao pássaro, em bosque marinho ou em ilha de montanha. Através do amor, a paixão, o desamor, a maternidade incipiente, e da solidão sem sapatos”. Entre essas transmutações, Terra de Mai — Mai sendo tanto a palavra catalã para nunca quanto o nome da mulher por quem Marçal se apaixonou — inaugura uma utopia do desejo lésbico, apagando limites para que outras vulnerabilidades se mostrem no livro em que está contido (La germana, l’estrangera): “A lua estará então ausente, somente presente através da saudade. A lua, bem-entendida, como imagem plena, com luz própria. Há, por outro lado, onipresente, uma outra lua, em sua acepção mais oca: a do espelho que reflete. E aquilo que o espelho reflete, como a hidra, petrifica. Pelo espelho desfilam imagens que desafiam a fragilidade do eu e lhe impõem o próprio caos: o assassino, pelo espelho sem fundo, a infanticida pelo espelho do fundo, a impostora, a culpável, a prófuga, a mãe, a filha, a amante, a irmã, a estrangeira”.
É da crise exposta entre essas relações especulares — e aqui intuímos as influências de Luce Irigaray e seu Speculum de l’autre femme (1974) — que chega Desglaç, que nós traduzimos como Degelo (Editora Urutau, 2019).[nota5] A hora do degelo é a hora de desarmar-se, do fracasso das estruturas que tanto prendem quanto protegem, em que a morte — tanto a do próprio pai e sua Lei, quanto a dos afetos passados — possibilita um renascimento para amores possíveis, ainda que sob o peso do vivido: “Talvez o Degelo consista em re-nascer, ainda outra vez, no envoltório líquido do espanto”. Escrever sob o signo do dragão fala dessa linguagem alquímica do sal, das mulheres e do desejo lésbico, de ritmos lunares: linguagem vivida porque há sangue por fluir nas mortes que se fazem entre o eu e a relação com outras pessoas, ao re-nascer à contra-lei.
No entanto, vislumbramos uma outra carta do tarô, o arcano XIX, O Sol, como imagem que também se relaciona com os vínculos entre mulheres para Maria-Mercè Marçal. Essa carta, assim como sua irmã, A Lua, apresenta também o astro no centro, oferecendo luz a duas figuras humanas seminuas. Elas recebem a energia em companhia, olhando-se uma a outra, tocando-se. Atrás há uma mureta, com diferentes cores e materiais, que lembra a ação humana, o jogo da cultura sinalizando limites mais definidos. Esse calor, esse contorno, essa visibilidade, é reclamado por Maria-Mercè Marçal para as escritoras, em gestos de aproximação e afeto.
No ensaio Meditações sobre a fúria, traduzido por be rgb e que em breve será publicado pela Revista Letras (UFPR), Marçal, ao pensar na mulher que escreve, evoca a figura mitológica das Fúrias, outros seres monstruosos, abjetos, mas que guardam toda a potência negada pela deusa Atena, nascida de pai “completamente vestida e armada”, mulher-exceção que afirma a lei que a constrange. É com fúria que Marçal pensa na falta de tempo, em triplas jornadas, em mudez, em modelos impostos, em reconhecimento negado e percebe a orfandade das escritoras mulheres. Porque, como diz no ensaio, são elas “filhas sem Mãe”, em uma instituição que só as admite como espelho inusitado: “a genealogia da Cultura — tal como, por outro lado, a das famílias — é uma genealogia masculina, dentro da qual algumas mulheres estiveram ‘cooptadas’, ‘adotadas’, ‘legitimadas’, sempre de uma em uma, sem aparente relação entre umas e outras e sempre no nome do Pai”.
Por isso, afirma a necessidade de uma genealogia de mulheres, comunidade que se escuta e apoia, que se olha e se acolhe como as figuras do tarô, e assim afirma a própria existência. Em Meditações sobre a fúria, ela pensa em uma genealogia de escritoras pelas quais podia transitar — em sua língua, nas que sabia e as traduzidas ao catalão — e nomeia Felícia Fuster, Virginia Woolf, Jane Austen, Harriet Beecher Stowe, Clementina Arderiu, Maria Barbal, Ana Iriarte, Luce Irigaray, Marguerite Yourcenar, Adrienne Rich, Phyllis Chesler, Jean Rhys, Mercè Rodoreda, Ursula K. Le Guin, Constance Marie de Salm-Dyck, Mercè Ibarz, Caterina Albert, Anna Dodas, Sylvia Plath, Emily Dickinson, Rosa Leveroni, Montserrat Abelló, Tillie Olsen, Maria Antònia Salvà e Luisa Muraro. Realiza, portanto, uma busca por “mães literárias”, procurando “colocar em relevo uns nomes, uns textos, umas obras — poderiam ser muitos mais, poderiam haver uns outros — uns temas, uns silêncios, umas feridas, dignas de converter-se em memória. Em memória articulada”.
Uma forma de tecer essas redes de escuta e escrita é incorporar nos próprios versos os versos de outras mulheres. Marçal faz isso em Degelo, por exemplo, trançando seus versos às palavras de Sylvia Plath ou às imagens de Frida Kahlo. Já em Meditações sobre a fúria, parte de um monstro imaginado pela poeta e tradutora Maria Antònia Salvà (1859-1958), um velho cacto rejeitado por quebrar seu vaso e sair dos limites demarcados. Esse monstro vegetal é uma imagem da mulher que escreve, mas é precisamente sua resistência à rejeição, sua teimosia, o que o transforma em um emblema. Marçal continua os versos de Salvà em um poema compilado postumamente no livro Raó del cos (Razão do corpo), que será publicado no Brasil ainda em 2022 em nossa tradução pela editora Gralha, formulando a genealogia nessa imagem: “sei de ti. E saber-te me dá terra, raiz./ Sei de ti e sei de mim, no espelho fiel/ do seu poema, aferradamente/ trincar pedra de silêncio opaco/ – mulher réptil, mulher monstro, mulher dragão – / como o cacto, como você, sobrevivente”.
No seu apelo às monstras em Meditações sobre a fúria, ao que espreita nos limites da articulação da lei, percebe-se a vontade de subverter o “mecanismo implacável, androcentricamente seletivo, da ‘Literatura-Instituição’, da ‘Cultura- Instituição’”. Ao mesmo tempo, em Fragmentos do discurso sobre a autoridade feminina, Marçal esboça um outro tipo de relações dentro do campo literário que não aquelas baseadas na concorrência. Dando o exemplo dos vínculos sutis que unem as poetas russas Marina Tsvetáieva (1892-1941) e Anna Akhmátova (1899-1966), invoca uma mediação que surge da admiração, citando o próprio diário de Tsvetáieva: “meus versos sobre Moscou, que se seguiram à minha passagem por Petersburgo, eu os devo a Akhmátova, a meu amor por ela, a meu desejo de lhe dar algo mais eterno do que amor.” Esse reconhecimento não é paralisador pois, no espelho, afirma a capacidade de criação das mulheres e constitui uma “alavanca eficaz para o próprio desejo”. Ao invés da rivalidade instituída pelas dinâmicas cis-hétero patriarcais, como podemos ver denunciada na fala de Adrienne Rich a respeito do suicídio de Anne Sexton (1928-1974),[nota6] Marçal visibiliza entre Tsvetáieva e Akhmátova uma forma daquele continuum lésbico[nota7] sobre o qual Rich argumentava.
Marçal reivindica esse desejo de modo literário e erótico no texto Entre mulheres. Nesse ensaio, a escritora lembra a sua difícil busca por textos literários que falassem do amor lésbico e do risco que comporta esse apagamento: “se uma das funções da linguagem e da literatura é dar sentido, articular aquilo que previamente estava balbuciado e desestruturado, ordenar a experiência arrancando-a do caos e oferecer espelhos onde reconhecer a própria vivência elaborada, acabamos concluindo que uma experiência convertida em ‘inefável’ se vê privada assim de toda dimensão simbólica e cultural e, portanto, condenada, não somente à invisibilidade e à mudez, mas também, inclusive, em um certo sentido à inexistência”. Em sua obra, Marçal elabora essa experiência nos textos que já comentamos – Terra de Mai, La germana, l’estrangera, Degelo, e, sobretudo, o romance La passió segons Renée Vivien. A descoberta da obra de Renée se dá ao mesmo tempo que a de O bosque da noite (1936), de Djuna Barnes, e ambas alicerçam uma ficção construída com múltiplas vozes, que é ao mesmo tempo uma homenagem a essas autoras, uma leitura íntima, uma reconstrução de seu universo criativo no início do século XX e de relações lésbicas perturbadoras e complexas. Ante o descaso da crítica tradicional, Marçal conclui desafiante: “quem tenha orelhas para escutar que escute e, definitivamente, quem possa entender, que entenda”.
Enquanto escrevíamos esta matéria, o acaso (como destino) pelas mãos de Fred Spada nos levou a conhecer uma antologia de Renée Vivien, com epílogo de Maria-Mercè Marçal, em tradução para o castelhano por Aurora Luque. E, lendo os versos da poeta britânica, que assumiu o francês como sua língua de escrita, os percebemos impregnados pelas imagens que Marçal fez suas no romance e nos poemas. Aí compreendemos vividamente como a genealogia enunciada pela autora catalã questiona as formas lineares de pensar a literatura em torno de um cânone. A genealogia rompe os binarismos, desfaz as linearidades, altera a ordem dos tempos, vivifica criações até então apagadas. A morte literária, isto é, o esquecimento, fica suspensa com esse exercício de procura de mães, tias, irmãs. Como comentamos, uma dessas irmãs que Marçal leu atentamente foi Adrienne Rich, que assinala a necessidade de uma prática radical de revisão, a contrapelo dos valores recebidos: “re-visão — o ato de olhar para trás, de ver com um novo olhar, de entrar em um texto a partir de uma nova direção crítica — é, para nós, mais do que um capítulo na história cultural: é um ato de sobrevivência. Até que possamos entender as pressuposições em que estamos enraizadas, não podemos conhecer a nós mesmas. E essa vontade de autoconhecimento, para as mulheres, é mais do que uma busca de identidade: é parte de nossa recusa de uma sociedade autodestrutiva dominada pelos homens”.[nota8]
A ação de impugnação dos moldes estabelecidos, como a do cacto de Maria Antònia Salvà, aliada à busca de relações solidárias com as quais fortalecer a própria criatividade, que demonstram Tsvetáieva e Akhmátova, implica também um engajamento com a transformação do mundo. Autora de uma genealogia afim desses temas, Donna Haraway, no livro Staying with the trouble (2016), destaca que a habilidade por criar parentescos inéditos (com seres diversos, vivos e mortos) é o que pode nos levar a formar potentes alianças multiespécies que nos sustentem neste mundo precarizado: “Ficar com o problema requer a feitura de parentescos estranhos; isto é, precisamos umas das outras em colaborações e combinações inesperadas, em pilhas de compostos quentes.”[nota 9]
Essas alianças chamam os dragões, os animais, as monstruosidades, todas as existências falantes de línguas abolidas, como pessoas LGBTQIA+, negras e indígenas e muitas outras, o que nos leva a encerrar este texto com o arcano XXI do tarô, O Mundo. A carta, no Tarô de Marselha, nos mostra uma figura humana andrógina que dança dentro de uma grinalda, cercada de animais, comumente associados com os evangelistas, e pode muito bem nos sugerir a celebração da vida como a possibilidade de que todos os seres tenham direito a vivê-la bem. Assim, evocando o nome de grande capítulo dedicado ao amor lésbico em Degelo, podemos dizer que a obra Maria-Mercè Marçal realizou um contrabando de luz em prol dessas vidas, desse Mundo.
NOTAS
[nota1]. Maria-Mercè Marçal, Llengua abolida-Poesia Completa 1973–1998. Barcelona: Edicions 62, 2017, p. 19.
[nota2]. Lluïsa Julià, Maria-Mercè Marçal: Una vida. Barcelona: Galàxia Gutenberg, 2017.
[nota3]. Mercè Ibarz, “Silencis, interrupcions, mites”. Em: Maria-Mercè Marçal, Sota el signe del drac — A cura de Mercè Ibarz. Proses 1985–1997. Barcelona: Proa, 2004.
[nota4]. Caterina Riba, L’obra poètica de Maria-Mercè Marçal: Una aproximació des dels estudis de gènere i la literatura comparada. 2012. 318 f. Tese. Universitat de Vic, Vic, 2012.
[nota5]. Maria-Mercè Marçal, Degelo. Tradução de Beatriz Regina Guimarães Barboza e Meritxell Hernando Marsal. Bragança Paulista e Pontevedra: Urutau, 2019.
[nota6]. Disponível online em: https://pontesoutras.wordpress.com/2018/02/16/um-ensaio-de-adrienne-rich-sobre--anne-sexton-traduzido-por-beatriz-regina-guimaraes--barboza/
[nota7]. Adrienne Rich, “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”. Tradução de Angélica Freitas. Em:_____. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica & outros ensaios. Tradução: Angélica Freitas e Daniel Lühmann. Rio de Janeiro: A Bolha Editora, 2019 (original de 1980), p. 25–108.
[nota8]. Adrienne Rich, “Quando da morte acordarmos: A escrita como re-visão”, tradução de Susana Bornéo Funk. Em: Izabel Brandão, Ildney Cavalcanti; Claudia de Lima Costa; e Ana Cecilia Acioli Lima. Traduções da cultura. Perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: Editora Mulheres; UFSC, 2017, p. 66.
[nota9]. Tradução de be rgb. No original: “Staying with the trouble requires making oddkin; that is, we require each other in unexpected collaborations and combinations, in hot compost piles.” Em: Donna Haraway, Staying with the trouble. Making kin in the Chthulucene. Durham; London: Duke University Press, 2016, p. 4.