Há um verso de Ana Cristina Cesar que está no meio do poema de abertura de seu livro intitulado A teus pés, que diz: “É sempre um pouco tarde.” Esta linha convulsa, uma espécie de aviso diferido sob uma unidade de tempo inespecífica, nem passado nem futuro mas um presente vivo, conversa diretamente com outra que aparece mais adiante no mesmo poema: “Agora é a sua vez”. Esta, de outra maneira, se apresenta como uma espécie de deslocamento da frase, agora retirada de seu uso comum para compor o poema — quando vem como uma frase de guerra — e imediatamente devolvida pelo poema para seu uso comum — quando volta a se instalar no espaço da fala e do vulgo também como uma frase de guerra exatamente porque gera no Outro uma atenção obrigatória, uma vivência mesmo que anódina. Quando Ana Cristina se suicidou aos 31 anos, em 1983, tinha publicado apenas esse único livro de poemas, que desde o título — A teus pés — é uma espécie de lançar-se ao Outro seguindo a ideia de que toda poesia — além da sua dimensão de fracasso em si — é também uma tarefa para o futuro (se entendemos que toda volta ao passado é também uma projeção para o futuro e para o agora no presente vivo) porque se desvia da Lei exatamente nesse gesto indistinto de lançar-se ao Outro como anterioridade para cumprir alguma hospitalidade incondicional.

 

É numa antologia de poemas de Carlos Drummond de Andrade que pertenceu a Ana Cristina Cesar,¹ por exemplo, que se pode ler uma série de anotações que indicam a sua escavação em torno do poema como um lançamento a esse um Outro a partir de um segredo que se arma numa dissipação do real e, principalmente, numa dissipação do sentido. O que nos leva a ler e ver que o que interessava a ela, como princípio, não era apenas tentar pontuar um papel para o escritor (para o poeta) na sociedade que busca interpelar, mas sim o ato de escrever; ou, melhor dizendo, a experiência simples e sofisticada que é escrever. Tem-se nas anotações que aparecem precisamente ao lado do poema de Drummond intitulado “Ontem”, que é do livro A rosa do povo (1945), a presença de uma singularidade de leitura, da leitora preocupada com a precisão indispensável da literatura como uma instituição que “guarda um segredo que, de certa forma, não existe”, como sugere o pensador francês Jacques Derrida. No poema de Drummond lemos:

 

ONTEM
Até hoje perplexo/ ante o que murchou/ e não eram pétalas.

De como este banco/ não reteve forma,/ cor ou lembrança.

Nem esta árvore/ balança o galho/ que balançava. Tudo foi breve/ e definitivo./ Eis está gravado

não no ar, em mim, /que por minha vez/ escrevo, dissipo.

 

As anotações de Ana Cristina são distribuídas numa página lateral seguindo a ordenação de itens, em tópicos, numa espécie de percurso de leitura do poema acima; e anota: “FRAGILIDADE”, “— marca a cisão”, “— o verso não atinge, não recupera as coisas, “— o real é inatingível, é um impossível”, “— a escritura é perda” e, por fim e principalmente, seguindo a última linha do poema de Drummond, “— escrever é dissipar o real (ler “Ontem”)” e “— imagens em que o real foge, se imobiliza”. O que parece chamar a atenção da leitora, isto a partir dessas suas anotações, é primeiro a potência visceral da poesia de Drummond ao demonstrar a incapacidade do poema para reter qualquer microcosmo de vivência, para trazer ou recuperar qualquer vivência; depois, que só como experiência incorporada de escrita é que o poema pode grafar o tempo e uma história (mas se na carne), mesmo como perda; e, por fim, a justaposição diferida armada pelo uso impertinente da vírgula: “escrevo, dissipo”. Por isso também é importante levar em consideração que esse poema de Drummond aparece, na tal antologia, ao lado de outro mais conhecido, intitulado “Áporo”, também com uma linha que repete o mesmo uso da vírgula agora numa proposição shakespereana, entre parênteses, na penúltima estrofe: “(oh razão, mistério)”.

 

Estas pequenas cartografias marcadas pela anotação indelével da leitura de Ana Cristina Cesar apresentam uma poeta muito sofisticada e muito preocupada com a experiência de escrever; experiência que só se configura como alteração de rótulos, como intervenção crítica e política, e como uma remontagem da instância da própria literatura. Mas o fato é que as questões que fazem sua poesia girar e, principalmente, o seu suicídio, fixam demais os olhares que se voltam para sua poesia apenas sobre os impasses provocados por uma espécie de biografia extremamente contemplada, tanto pela inserção de uma subjetividade que parece ter sido gerada por um ato radical, o de retirar-se, quanto pelo aparente movimento de um sem-número de outras subjetividades em direção a uma dimensão política potente da poesia moderna: a do fracasso.

 

Mas em 1980, dois anos antes de A teus pés, Ana Cristina Cesar publicou um pequeno livro de ensaios intitulado Literatura não é documento que pode ser uma chave de acesso muito mais interessante ao seu procedimento e à articulação de seu pensamento para o poema, pensamento que desembocaria de vez no seu único livro de 1982. Os ensaios deste livro tratam basicamente de uma crítica às visões determinadas da literatura a partir, principalmente, da composição de um certo modo de documentá-la, ou seja, de construir documentos fixos e encaixados numa espécie de dominação ontológica da nacionalidade exaltada. Ana Cristina se refere à produção de documentários cinematográficos feita sob a tutela dos governos ditatoriais (Vargas e Militar), principalmente, para instituir a figura definitiva do “autor nacional”: monopolização da memória e cultura como patrimônio seguro. São cinco ensaios muito interessantes que, me parece, apresentam uma clave crítica das mais pertinentes e que têm muito a ver com o gesto da poesia de Ana Cristina Cesar. São gestos de intervenção contra uma ideia de literatura lida como monumento ou patrimônio e estabelecendo linhas de fuga que propõem outro jogo: da premissa do engajamento para uma inferência de acolhimento (daí os modos de operação que usa em sua poesia, todos efêmeros: o diário íntimo, a anotação de caderneta, a carta, a confissão, o bilhete, a opção pela prosa — esta queda no prosaico —, a imagem oblíqua do texto que é sempre uma visita, a presença incessante de um Outro, a conversa, uma interlocução, um “qual-quer” e o poema como um corpo beligerante etc.), das imagens localizadas que constituem um vulto sublimado numa ambiência originária e num valor da cultura nacional para uma perspectiva circulante da literatura e, enfim,entre tantas outras articulações, da literatura como função derivada e derivante de um sistema escolar historicista e autoritário ou como ponta de lança de prestígio e material publicitário em direção a um arejamento e a uma suspeita, a uma aprendizagem do político e a uma desconfiança, a um apagamento
e a uma festa da inteligência.

 

Assim, a poesia de Ana Cristina Cesar tem a ver, diretamente, com um posicionamento e uma política em torno da captura e da retenção de imagens diferidas que escapam a uma vinculação direta com a instituição da literatura ou com qualquer tentativa de institucionalizá-la. É muito mais um flerte, umn amoro imprevisto com a ambivalente circunstância da possibilidade e da impossibilidade de instituir o documento, do documento instituído. Assim, partindo do exemplo desses documentários como uma reduplicação do mesmo e das circunstâncias em que surgem como um problema da cultura brasileira, a ideia de “namorar o documento” passa a ser uma espécie de operação com o poema para tomar uma consciência do corpo da escrita, e aí também do corpo do poeta como um risco ou como uma dança:“Namorar o documento, o local, o testemunho; brincar com eles; reinvesti-los; ir lá; desejar uma impossível reconstituição [...]”, diz ela. A questão é o poema como uma encenação da palavra viva e sagrada, fiel e infiel, tomando para si os usos da palavra que trai e que perjura. O poema como um corpo livre, logo capaz de dançar.

 

Daí, importante notar que a poesia de Ana Cristina Cesar tem a ver com uma forma fragmentária, uma respiração fragmentada, porque procura acompanhar os impasses de seu corpo político no risco de se posicionar como poeta. E aí, não como sigla (Ana C.), não como o mito de uma iconografia peculiar,não numa consagração a partir do suicídio exemplar ou localizada numa estrutura cartográfica etc, mas muito mais como um “pé de guerra” ou uma ingerência do mundo nos “passos em falso no vazio do céu”. Diz Enrique Vila-Matas: “Se você cai merece a mais convencional das orações fúnebres. E não deve esperar nada além disso, porque o circo é assim, convencional. E seu público é descortês. Durante os movimentos mais perigosos, fecha os olhos. Saltar no vazio não é um ato exatamente sereno.”

 

Este é um ponto, e é preciso desviar qualquer leitura da poesia de Ana Cristina Cesar desse circo convencional, descortês e que fecha os olhos diante do perigo que sua poesia apresenta. Por outro lado, Pascal Quignard afirma que é preciso saber como desligar, e que esta definição de como desligar é muito profunda porque a vida não é terminada com a morte, que a vida não é mais do que interrompida pela morte. E de outra maneira, ainda, Georges Bataille sugere que a verdade não é a morte, que num mundo em que a vida tivesse que desaparecer a verdade seria apenas e exatamente um ‘não importa que’. Ou seja, impossibilidade e retirada. Isto tudo incorre nos intervalos das imagens da poesia de Ana Cristina Cesar, uma espécie de assimetria do próprio espaço e do corpo do poema como uma rarefação que vem no uso descabido do fragmento — sempre “ruiniforme e depressivo” —, como uma compulsão para o farrapo e para o descontínuo, depois uma dissipação do real e uma irregularidade da língua. O fragmento é aquilo que rompe a unidade do poema e o desagrega: o poema passa a ser “desvairado, nervoso, elíptico, infantil, narcísico, decidido e seco”, por isso também é a figuração de uma “minúscula catástrofe, de um minúsculo destroço, de uma minúscula solidão”. Uma poesia de linhas convulsas, como já disse, de traços irreconciliáveis, feita daquilo que se arranca e se desloca do corpo, como no poema intitulado “Nada, esta espuma”:

 

Por afrontamento do desejo/ insisto na maldade de escrever/ mas não sei se a deusa sobe à superfície/ ou apenas me castiga com seus uivos./ Da amurada deste barco/ Quero tanto os seios da sereia.

 

O poema procura tocar o desvio do sentido, o silêncio e o obs-ceno do corpo da sereia, tudo contrário ao mito e à institucionalização do poeta e da literatura. Quando escrever é — no dizer de Quignard — “uma insistente tensão entre uma lembrança e um desejo que permanecem misturados e obscuros um ao outro”. Tanto que podemos ler no pequeno poema intitulado “Recuperação da adolescência” (que tem apenas duas linhas) uma proposição seminal de sua poesia que aparece numa manobra desequilibrada composta por uma imagem infraleve, entre afirmativa e interrogação, como uma renga:

 

é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço.