
No dia 07 de abril de 2021, foi divulgado um documento criado pela Receita Federal com perguntas e respostas sobre a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), imposto proposto pelo governo federal que pretende encerrar a isenção tributária sobre o valor dos livros (vigente desde 2004) pela aplicação de uma alíquota de 12% sobre o produto. O documento gerou reações contrárias nas redes por abrir brechas para acabar com benefícios fiscais que afetariam diretamente o mercado editorial sob o argumento de que “apenas ricos leem no Brasil”. Uma explicação falaciosa, muito comum de se ouvir nos espaços ditos “eruditos”, mas que não dá a dimensão real da complexidade da questão: quem é leitor no Brasil?
Partindo de questão semelhante, Felipe José Lindoso, mestre em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), escritor e editor, decidiu investigar o estado da leitura no país. Na publicação Entre livros, recentemente lançada pela Zazie Edições, Lindoso coloca a trajetória da leitura e do leitor brasileiro sob um prisma: desde o mercado, as políticas públicas, até postulações incrustadas na opinião pública como essa apontada pela Receita Federal.
Entre suas colaborações, foi assessor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do Centro Regional do Livro para América Latina e Caribe da Unesco. “A ideia de que ‘brasileiro não gosta de ler’ é filha de uma ‘elite’ bacharelesca, que acha que só lê quem é ‘culto’ e ‘formado’, e além do mais despreza a literatura popular, para início de conversa”, pontua.
Em entrevista ao Pernambuco, o escritor e pesquisador fala do seu novo livro e adentra as nuances do mercado editorial no Brasil.
No livro, você narra sua trajetória pessoal sempre entrelaçada aos contextos políticos que o país viveu, inclusive, em uma das partes mais sombrias que foi a ditadura militar. Quando chegamos nos anos 1980, próximo a redemocratização, você abre a editora Marco Zero, em um período ainda difícil, mas diferente do auge da ditadura. Queria saber quais conexões você faz entre o contexto político e aquela fase editorial sua e do país?
Nas duas situações vivíamos em um contexto de muita instabilidade.
Só que, no governo Figueiredo (1979-1985), havia uma clara percepção de esgotamento da ditadura e o rumo para uma transformação democrática. As organizações de esquerda (ainda clandestina ou semi-clandestinas) haviam modificado suas posições a respeito da luta armada (algumas com autocríticas explícitas, como foi o caso da Ala Vermelha do PCdoB, na qual militávamos, outras nem tão explícitas.); o surgimento da imprensa independente; as greves do ABC e as greves dos canavieiros de Pernambuco, etc. Mas houve também o atentado no Rio Centro, as bombas na OAB e em bancas de jornais e os movimentos pelas eleições diretas e pela Anistia. Enfim, uma sensação de que, apesar de tudo, a ditadura estava agonizando e isso criava também um pano de fundo para iniciativas como a da fundação de uma nova editora.
Hoje a situação é bem diferente, com movimentos sociais anêmicos, os sindicatos perderam muita força e capacidade de atuação, a direita escancara suas faces e, na verdade, pouco se sabe onde isso tudo vai parar. Essas diferenças de contextos, que não eram apenas subjetivas, tiveram seu peso, acredito. E, para além do contexto objetivo, a verdade é que éramos jovens, e otimistas.
É bom lembrar que a Marco Zero foi fruto principalmente da Maria José Silveira, e que eu e o Márcio Souza embarcamos na tripulação desse sonho, que sem ela não teria existido.
Com o Governo Collor (1990-1992), você menciona a política do confisco e congelamento de preços, que levou o mercado editorial a um duro golpe econômico. Hoje, vivemos um outro governo de direita – bem mais à direita – com a possibilidade de taxação do livro, sob o argumento leviano de que “podemos taxar porque só rico lê no Brasil”. Quais pontes, semelhanças e diferenças, você consegue levantar entre o que vivemos hoje e esse momento dos anos 1990?
Acho que há diferenças básicas entre o Collor e o Bolsonaro. Collor era de direita, claro, e foi o precursor de várias políticas que até hoje prejudicam o país. O início do processo de destruição da indústria nacional, as iniciativas de privatização e outras. Mas o Collor não era um anti-ciência como o Bolsonaro. Tinha na cabeça uma ideia de modernização do Estado; o Bolsonaro só pensa em destruir. O Collor extinguiu o INL [Instituto Nacional do Livro, criado em 1937, no Estado Novo], mas transferiu suas funções para a BN [Biblioteca Nacional] e por aí foi. Só isso faz uma diferença enorme mas, sinceramente, não consigo imaginar o exercício de trocar um pelo outro, sem contar que o nível de imbecilidade e falta de tato desse presidente de agora e de seu ministério são imbatíveis.
No início do livro você faz cinco postulações muito interessantes como lugar de partida. Trago três delas: 1. “o brasileiro não gosta de ler”; 2. a confusão sistemática entre acesso e compra; 3. a questão da compra de livros e o preço do livro. Como você enxerga a relação entre essas três questões citadas?
Em primeiro lugar, o nexo entre essas coisas parte da ignorância dos fatos e o traço elitista e a ideia de que “brasileiro não gosta de ler” é filha de uma “elite” bacharelesca que acha que só lê quem é “culto” e “formado”, e além do mais despreza a literatura popular. A falta de informações também pesa. É bom lembrar que só tivemos as primeiras informações qualificadas sobre a produção editorial em 1990 e sobre os hábitos de leitura no ano 2000.
Some isso à visão elitista e absolutamente errônea que tenta justificar a taxação dos livros com essa visão.
Vale uma anedota ou duas. Uma profissão hoje quase extinta, é a do ascensorista de elevador, quando havia a pessoa que abria e fechava as portas em cada andar. Pois bem (talvez hábito de antropólogo...), comecei a notar, anos atrás, que muitos ascensoristas abriam a porta quase que automaticamente em cada andar marcado, pois estavam lendo, sentados em seus bancos. Não importa que livro, às vezes já estava bem deteriorado. Estavam LENDO e trabalhando ao mesmo tempo. Outro caso que me surpreendeu. Estava eu pela Santa Ifigênia, uma rua paulistana onde você encontra tudo que imagina em eletrônicos e, enquanto parei para perguntar alguma coisa para um vendedor, vi chegar uma senhora puxando um carrinho com livros que se dirigiu à pessoa que conversava comigo: “Olhe, fulano, não achei o livro que você me pediu, mas trouxe este aqui que é bem parecido”. A mulher aceitava encomendas dos vendedores, procurava em sebos ou no seu estoque particular (ela também trocava livros) e levava para a pessoa que ficava em pé o dia inteiro, havia feito o pedido e levava para ler em casa. Era, de fato, uma “sebista” espontânea. Ou, para usar um termo mais na moda, uma verdadeira “agente de leitura”.
A questão do preço. Fiz um comparativo, uma vez, dos preços de alguns livros no Brasil e nos EUA. Tome-se, por exemplo, o Tom Sawyer, do Mark Twain. Nos EUA você encontra o texto completo, impresso, com preços variando entre US$ 3 (R$ 15, aproximadamente) e US$ 47 (edição anotada). No Brasil encontrei uma edição resumida e adaptada por R$ 18 até edições a mais de R$ 50. Agora um exemplo inverso, o Dom Casmurro. Encontrável aqui em edições escolares, em português e com texto completo a R$ 25 (US$ 5, aproximadamente), e em inglês, nos EUA, encontrei em paperback [livro de capa mole ou brochura] a US$ 18. E quem quiser que faça as contas das porcentagens.
A razão dessas diferenças é muito simples. Nos EUA, Tom Sawyer é livro escolar, da mesma forma que aqui o é Machado de Assis. Então, sem contar a diferença de salários médios entre um operário brasileiro e um norteamericano, temos as diferenças de formato e de direcionamento de mercado. Quando se comparam livros cujas condições sejam similares nos dois países, digamos um romance de Thomas Mann, o preço por página é praticamente equivalente. Tome-se Morte em Veneza a US$ 16.99 = R$ 84,95 e no Brasil (aliás, junto com [a novela] Tonio Kröger), a R$ 67. Todos esses preços sem desconto, [ou seja, são] preço de capa.
Vemos assim que o preço de capa dos livros é muito mais equivalente entre si, um fenômeno internacional provocado principalmente pelo fato do papel ser matéria prima de preços internacionais. O problema real são as diferenças salariais entre o Brasil e o resto do mundo capitalista. O preço de capa, o famoso “o livro é mais caro no Brasil”, assim, não é o principal problema das dificuldades de acesso.
As diferenças entre acesso e compra são muito mais brutais que as eventualmente provocadas pelas diferenças de preços. São ditadas pelas redes de bibliotecas, especialmente as bibliotecas públicas. No meu livro anterior (O Brasil pode ser um país de leitores), apresentei dados da época (2002) sobre número de bibliotecas e disponibilização de acervos em vários países. Dá vergonha de ser brasileiro. Importa menos o preço dos livros para compradores individuais do que as possibilidades de acesso ao livro nos países que têm índices de leitura muito melhores que os nossos, porque têm sistemas de bibliotecas maiores e melhores.
Para os editores, no entanto, os índices de venda são muito importantes, embora também vendam para as bibliotecas (quando elas têm recursos). Daí os eixos que proponho como necessários (não exclusivamente) para políticas de difusão do livro e da leitura em nosso país. Sem excluir, é claro, a importância de baratear o custo dos livros.
Em um dado momento, você atenta suas questões para a pirataria de livros acadêmicos. Desde as xerox até a situação particular das bibliotecas públicas - que, entre várias coisas, denuncia uma questão de desigualdade social e de políticas públicas. Qual lugar a pirataria ocupa na crise do mercado editorial e da leitura acadêmica?
Não existem estatísticas sobre pirataria dos livros. Mas isso não quer dizer que o problema não exista e afete de modo trágico a formação dos alunos, particularmente os do ensino superior, e as editoras de livros. Outro problema sério é a falta de recursos e a burocracia para aquisição de livros pelas bibliotecas universitárias. O fato é que a simples repressão dos ditos piratas não resolve o problema de ninguém. Há exemplos bem interessantes sobre modos criativos de encaminhar esse problema. Mesmo nos EUA, o Copyright Clearance Center tem um papel importante para viabilizar a impressão de trechos ou capítulos de livros pelas universidades. O exemplo da norueguesa Kopinor é fantástico, como cito no livro.
Entrando em questões que surgiram de duas décadas pra cá, ao falar da Amazon e os impactos dela para o mercado, você diz: “A grande ameaça da Amazon é que ela aplica ao limite extremo a dinâmica própria do capitalismo: expansão ilimitada, não apenas (mas em grande medida) com a eliminação da concorrência (...)”. Você acredita existir uma tendência monopolista diferente do que tínhamos no passado? Quais desdobramentos você enxerga pro caso da Amazon?
A Amazon está enfrentando, nos EUA, dois problemas significativos. O primeiro é a regulação, que é comum com as outras grandes empresas de tecnologia (Apple, Google, Microsoft, Facebook, etc). A legislação dos EUA há muito está cimentada na questão de preços e na ameaça de monopolização ou diminuição da concorrência no segmento. Se tal ou qual empresa fornece a seus clientes um preço mais baixo, tudo ok. Se não existir impedimento para que outras empresas atuem no mesmo mercado, tudo ok novamente. Na Europa há uma tradição diferente, que não está centrada exclusivamente nisso, mas inclui também condições de trabalho, paraísos fiscais, relações intracomunitárias e outras. O Facebook já foi multado várias vezes e a Amazon já enfrentou problemas também. Se alguém quiser comprar a versão Kindle de um livro publicado na Europa não consegue. O estranho é que consegue no Kobo.
O outro problema que afeta a Amazon são as péssimas condições de trabalho em seus armazéns. As denúncias se multiplicam e as ações da empresa contra a sindicalização de seus funcionários são constantes. Dois livros recentes analisam essa situação, Amazon Unbound, escrito pelo mesmo autor de The Everything Story, Brad Stone, e Fulfillment, de Alec Macgillis.
Quanto à Amazon Brasil, acredito que as virtudes da matriz estão sendo aplicadas com relativo sucesso, diante das dificuldades logísticas do país. Na área de livros nem sempre o preço da Amazon é o menor, mas o serviço continua sendo o mais eficiente.
A legislação antitruste brasileira está muito ligada aos princípios do “vender mais barato” e de não chegarmos numa situação de monopólio das empresas. Mas a legislação terá que ser modernizada diante das novas condições trazidas pelas Big Techs [Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft]. Em suma, quanto mais tarde o funcionamento dessas empresas for regulamentado, mais elas continuarão a se expandir sem o menor respeito a restrições de monopolização de fato e [mais elas irão continuar] a manipulação da administração fiscal dessas empresas, que usam amplamente os paraísos fiscais.
As tendências de concentração de empresas não são exclusivas nem da Amazon nem do mercado de livros e existiram sempre por aqui também. Só que a voracidade e eficiência da Amazon ultrapassam todos os limites, com efeitos deletérios particularmente para as livrarias independentes. Dessa maneira contribui, também, para o esgarçamento da rede de distribuição, que já é precária.
Da experiência editorial e pessoal, você conta que surgiram algumas inquietações sobre o estado do livro e da leitura no Brasil. “(...) continuo nessa faina de tentar entender por que tantos livros bons são lidos por tão poucas pessoas neste nosso país”, escreve. Ainda que sem respostas finais, como você enxerga o horizonte do mercado editorial e da leitura no país?
O Brasil tem uma população jovem em crescimento constante (quanto, realmente não sabemos, já que o censo foi cancelado esse ano) e isso, por si só, garante a continuidade e o crescimento do mercado de livros no nosso país.
Entretanto, algumas características são problemáticas. Não sabemos se o nível de aquisição de livros (principalmente do governo federal, via PNLD e seus derivados) continuará o mesmo. Não acredito que mude muito no que diz respeito ao livro escolar, mas programas como o Biblioteca na Escola e o Biblioteca dos Professores parecem ter um risco maior. Isso poderá exigir das editoras mudanças profundas no sistema de produção e distribuição de livros escolares.
A compra centralizada nas editoras para o atendimento das escolas provoca uma séria distorção no sistema de livrarias, que estão privadas desse canal. Para mim, isso é lamentável, mas a mudança é muito complicada.
A pandemia já provocou uma aceleração da leitura digital, segundo dados mais recentes. Acredito que isso deverá continuar, até porque os problemas de logística do país continuam sendo seríssimos e caros. Os sistemas de impressão sob demanda ainda não tiveram todas suas potencialidades aproveitadas pelos editores e ainda não dispõem de uma geograficamente ampla de empresas que façam esse serviço.
Os programas de incentivo à leitura dependem de iniciativas de ONGs e de instituições municipais, principalmente, e sempre correm o risco da descontinuidade. Segundo o IPL (Instituto Pro Livro), esses programas de estímulo à leitura continuam crescendo. Parabéns àqueles que enfrentam e superam as dificuldades para executá-los.
A ampliação e melhoria das bibliotecas públicas e escolares, para mim, continua sendo o maior desafio a ser enfrentado. Os mediadores (professores, bibliotecários e voluntários) são sempre muito importantes, mas se o público não tiver onde buscar os livros, a coisa complica. E há o problema gigantesco da melhoria do sistema educacional e da diminuição do analfabetismo funcional.
O governo federal (e a maioria dos governos estaduais e municipais) não desenvolveram estruturas permanentes para a aplicação de programas de incentivo à leitura. Essas estruturas são importantes para que se possa ter um PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura) efetivo e eficaz, inspirador dos planos estaduais e municipais - que hoje dependem em grande medida de ações da sociedade civil e de governos municipais.
Essas questões são completamente imbricadas com os grandes problemas do país e não serão resolvidas sem que essa situação seja modificada. Mas espero que algum dia possamos ser um país onde a educação de qualidade seja garantida e que todos que quiserem possam ler o que desejam sem ter que adquiri-los. E quem pode e quer comprar tenha uma rede de livrarias forte, que alcance melhor todo o território nacional.