Lourenço Mutarelli/Reprodução

Faltou luzno Bar das Putas.

 

É onde a gente vai comer carne, roer os ossos da bisteca. Marquei com alguns amigos escritores lá. No lugar também conhecido como Sujinho. À esquina da Consolação, pertinho da Avenida Angélica, em São Paulo.

 

Era a nossa confraternização de final de ano, digamos. Para um abraço curto antes das Festas. Estavam Andréa Del Fuego, Ivana Arruda Leite, Joca Reiners Terron, Michel Laub e Ronaldo Bressane. Depois apareceu Fabrício Corsaletti.

 

Ave nossa!

 

Aí faltou energia. O fogo não dava para acender. E demorou o blackout. Para valer. E Joca aproveitou para dizer que começou a ler o meu romance. “Nunca pensei, Marcelino, que você fosse tão sentimental”, falou. Ivana disse que se emocionou com a trajetória inglória de meu protagonista. Agonizante. Michel disse que o livro está na sua pilha de livros, à espera da devida dissecação. Bressane reforçou a melancolia das linhas, amargas, uma “beleza de tristeza”.

 

À falta do churrasco, seguimos desfiando à mesa o meu primeiro romance. Que eu não chamo de romance, chamo de “prosa longa”. Já de olho no cinema, ao que parece. “Daria um belo filme”, muita gente me diz. E eu sei. Já estou pertinho de vender os direitos. O romance já vai sair na Argentina, na França, na Itália. “É para ganhar o Oscar”, Ivana exagera. Papai Noel existe, ora essa.

 

De fato, o cinema me ajudou na feitura do livro. Explico: quando escrevo os meus contos, nunca tenho uma história para contar. Vou descobrindo a partir da escrita sendo escrita. Esse método já fez com que eu desistisse de outros romances. Porque eu não conseguia improvisar (caminhar, às cegas) por muito tempo. Daí fui eu buscar inspiração em filmes policiais, em reviravoltas de suspense, em tramas noir. Pegar a história pela mão até ela vir a vingar.

 

Ajudou-me também um pouco de autobiografia. E de autopornografia. Faria qualquer pacto para não perder o desafio: esse de estender o meu fôlego, de dar conta de contar algo mais enraigado, sei lá. Que o leitor ficasse fissurado para acompanhar a vida de meu dramaturgo (alter-ego) Heleno de Gusmão, desde o dia em que ele é avisado do assassinato de um michê com o qual ele tinha um caso. O menino, abandonado no IML, precisa ser entregue de volta à família, em Pernambuco. Heleno começa a se preocupar não mais com o corpo vivo, mas com o corpo morto do rapaz. Em planos gerais, é este o enredo. “Você, Marcelino, não teve medo de se arriscar”, falou Del Fuego. Pensei em Os Malaquias, livro de Del Fuego, sim, enquanto eu escrevia. E em outros livros curtos como Pedro Páramo, de Juan Rulfo; Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; O túnel, de Ernesto Sabato; O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli.

 

Também pedi socorro mais uma vez à minha linguagem, cheia de abismos sonoros. Não tem como eu abandonar, de uma hora para outra, essa minha voz. Construída de “ímãs” — sempre digo. Não de rimas. E bora embora. Eu sigo obedecendo, nessa minha prosa, maior, a um sistema magnético. Elétrico. Em que a palavra vai fazendo seus ligamentos, erguendo as carcaças de meu verbo. Eta danado! “Deve ter dado muito trabalho chegar à natureza deste livro”, disse o Joca, em que tudo está, segundo ele, devidamente no lugar. Tão generosos os amigos, sobretudo em clima tão fraterno de final de ano. Penso o quanto foram importantes para a feitura desta minha primeira aventura os queridos Lourenço Mutarelli (que fez o desenho da capa) e Paulo Lins (o primeiro a derramar lágrimas quando leu o meu original para escrever a orelha). Vários comentários eu tenho recebido desde que o livro foi lançado pela Editora Record em novembro do ano passado. Um chororô. Emocionante, de cabo e rabo. E brindamos!

 

Pensei em meu pai, por um instante. A quem o livro é dedicado. “É um livro sobre a morte e a esperança”, alguém buzinou. Bêbado que eu estava, nem me lembro quem falou. São Paulo, aos nossos olhos, à calçada, agonizando. “É muito barulho”, disse Corsaletti. E nos convidou para terminar o papo em sua casa, ali perto. Um poeta que eu admiro, o Corsaletti. Pensei idem nos poetas na hora de colocar esses Nossos ossos de pé. Bandeira, Cabral, Anacleto, Recife, Sertânia, São Paulo... Pensei no Brasil na hora em que eu construía esse meu relato. Fóssil e funerário.

 

O que será do Brasil neste ano de 2014? E nos próximos anos, como andará a nossa nação? Ali, ao lado dos amigos, no Bar das Putas (ou seria dos Putos?), eu me perguntava. Quais ossos nos sobrarão? Haverá uma luz no fim do túnel depois do apagão?