Um dia desses me ligou o Schneider, editor do Pernambuco, perguntando se eu poderia escrever alguma coisa sobre o Jóquei (Editora Tinta da China, de Portugal. Ainda não publicado no Brasil). O Jóquei é meu primeiro livro, que foi publicado há alguns meses em Portugal. Me lembro do dia em que fui pegar ele na editora. O livro tinha saído da gráfica naquele dia mesmo, deviam ser umas duas horas da tarde, e depois disso eu passei muito mais de 24 horas acordada. Acho que é sempre assim quando a gente vê finalmente nascer uma criança, há um soco de susto e de surpresa que não nos deixa dormir. Há um pouco de abismo também. No final desse dia distendido, em maio de 2014, fotografei a capa dele e na parte de trás do retrato escrevi assim:
“Aconteceu que escrevi um livro. Passei os últimos anos fazendo uns quantos poemas (meu amigo Luca diria bastantes poemas) e agora há um livro. Se chama Jóquei e durante os 12 meses que passaram ele foi minha maior companhia. Tratei-o por tu de tempos a tempos, briguei com ele, espirrei do lado dele, deixei que ele me levasse por alguns caminhos que antes eu nem imaginava possíveis. Caminhos assim entre as veredas, sabe? Este livro me levou na floresta. Como um bom ladrão. O Jóquei riu de mim bastantes vezes e me fez rir com o mundo, eu nunca esquecerei isso. Foi o melhor dos companheiros. Hoje, subitamente, ficou tudo diferente. Alguma coisa aconteceu. De repente ele tem uma cara e eu descobri que preciso aprender de novo a dizer o nome dele. Que nem aquilo que a gente faz com as pessoas quando as pessoas vão e voltam diferentes. Você sabe, coisas do amor. Então, olhe, este é o Jóquei. Ainda não está nas livrarias mas já está na minha mão. E agora eu ando passeando por aí com ele, em jeito de agradecimento e de novo reconhecimento. Já fomos comer tremoços, visitamos uns amigos, mostrei para ele as canções do Bob Dylan, frequentamos alguns lugares de paz e também lugares que já foram de dor. Achei justo. Tomamos café e Coca-Cola, andamos bastante debaixo do sol. Às vezes ainda é tudo muito estranho, mas sei que a estranheza pode ser própria dos bons começos. Seja como for, ainda nos falta ir até o mar. Olhe: este é o Jóquei físico, nós nos encontramos há 37 horas em Lisboa, e desde então ainda não dormi. Vou lá agora. Boa noite, mundo bom.”
Tenho esse retrato comigo até hoje, junto com a inscrição. Já dormi muitas noites depois disso, algumas em Lisboa, outras no Rio de Janeiro, umas no Recife e outras ainda numa pequena cidade de Minas Gerais. Dormi em não sei quantos quartos de hotel e também dormi ao relento. É que entraram alguns verões no meio disso tudo. Essa é uma das maravilhas de ficar cruzando hemisférios o tempo todo - as estações se multiplicam, o tempo também. Acho que o coração da gente também. Em todas essas viagens o Jóquei foi comigo e eu fui com ele. Mas agora é diferente. A verdade é que esse livro me acompanhou durante uma temporada longa: mesmo antes de ter uma capa e uma gramatura no papel ele já era a casca de árvore sobre a qual eu ia anotando a vida que passava. A vida, ela ia passando na janela do ônibus. Sobre a tal casca há nódoas de café, marcas de sal, desenhos distraídos, rabiscos feitos por minha mão e por outras mãos, há retratos de pequenos povoados costeiros, de casas antigas, do mar do sul. Essa casca tem nódoas de vida e pedaços recortados das histórias que eu li nas bibliotecas. Cruzei tantas avenidas para chegar nas bibliotecas, e dentro daqueles livros infinitos eu achava mestres e companheiros que iam me indicando o caminho entre as pedras. Aprendi quase tanto com os livros como com a vida. Vida essa que trazia meus amigos dentro, ainda bem - meus amigos foram a casa e a guarida, o lugar onde eu pude deixar cair a cabeça quando fazia frio demais para conseguir escrever. Porque chegou a fazer frio nesta temporada, então era preciso achar um fogo onde encostar a mão e deixar o gelo cair. O tempo do degelo, a pausa, foi também muito importante. Aprende-se muito nas horas em que tudo parece suspenso no vácuo e no silêncio. Foi muitas vezes de um grande silêncio que nasceu o poema - é no silêncio telúrico que a gente consegue escutar com alguma clareza o barulho do passado, e certos textos aparecem como uma declinação ficcional feita dessa louca equação passadopresentefuturo. Ou pelo menos assim me pareceu. A verdade é que tem muita coisa que eu não lembro mais. Só sei que foi uma boa época, aquela que permitiu o Jóquei crescer em mim, primeiro na cabeça, nos acontecimentos vorazes e mansos do dia a dia, e depois nas não sei quantas páginas feitas e refeitas. Foi uma temporada longa, durante a qual eu passei anos dando nós e mais nós numa corda sem saber exatamente onde a corda terminava, ou até se ela teria um fim. Mas ela teve. Agora é diferente. O Jóquei foi o livro que eu soube fazer no fim de minha juventude, foi meu pai e foi meu filho, me ensinou a ser mãe e filha de mim mesma. Hoje ele está no mundo, independente, fora de minhas mãos. Esse livro foi o presente que o mundo me deu, e agora eu o devolvo ao mundo, com muita ternura, com toda alegria. Agradecendo-lhe por uma boa estação.
No dia em que Gabriel García Márquez terminou um de seus livros, aquele que foi escrito durante dezoito meses sempre das nove da manhã às três da tarde, ele quis contar para sua mulher. Ela não estava. Quis ligar para alguns de seus amigos, mas ninguém respondia. Eram onze da manhã. Gabriel conta numa entrevista que se viu desconcertado, porque não sabia o que fazer com o tempo que sobrava, e que ficou tentando inventar alguma coisa para poder viver até as três da tarde. Li essa história recentemente e ela está em minha cabeça até agora - é que eu terminei aquele meu primeiro livro há mais de um ano, e o relógio ainda não bateu as três da tarde. Estou aprendendo muito com esse desconcerto do tempo que sobra, com as invenções que a gente precisa arrumar para chegar nas três horas, com a temporada intermédia. Sei que o toque do relógio virá na altura certa, mas até lá eu guardo uma velha corda cheia de nós em meu bolso. Seja como for, tenho dormido em paz.