Era, talvez, março de 2012. Eu frequentava uma disciplina de escrita para teatro na Universidade Nova de Lisboa, ministrada pela escritora e dramaturga Luísa Costa Gomes. E tive minha ingenuidade revelada: apresentei as primeiras cenas de uma peça que se passava, toda ela, em um tribunal. A Luísa, com sua costumeira objetividade, pouco afeita a conversinhas de café, não deve nem ter me dado boa tarde, foi logo perguntando se alguma vez eu havia passado pela calçada em frente a um tribunal. Porque entrar em tribunal era certo que eu nunca tinha entrado. Ela estava absolutamente certa. Minha idoneidade e minha sorte nunca haviam me obrigado a lidar com justiça. Não fazia ideia de como era um júri para valer. E ela me alertou: eu estava fazendo um arremedo de corte norte-americana, ou pior, hollywoodiana, naquele meu texto. E tinha total razão: eu vinha escrevendo sem base nenhuma, a partir de estereótipos que eu tinha gerado a partir de mais estereótipos (agora penso que isso, com intenção, pode até virar algo interessante, mas não era o caso) e estava saindo um texto bem mais ou menos.
Então é janeiro de 2014. Já fazia uns meses que eu tinha começado a trabalhar no meu livro Só faltou o título (Editora Record). E, na época, as cenas de tribunal e os processos que hoje estão no livro eram ainda mais importantes. Explico: cheguei a escrever umas 40 páginas de uma versão do livro (que não vingou), que se passava só no tribunal. E, CDF que sou, lembrei da professora portuguesa, me informei com amigos advogados, e descobri que podia assistir a julgamentos do tribunal do júri – aqueles em que jurados ouvem o promotor e o advogado de defesa interrogando testemunhas e expondo versões dos fatos; e, em geral, julgam casos de homicídio.
Não sou necessariamente tão adepto da mimese realista, do baseado nas coisas como ela são. Pelo contrário, acho que uma das delícias de escrever é inventar. Ou mentir. Escolham vocês as palavras. Mas para a mentira de Só faltou o título, tinha chegado à conclusão de que meu personagem precisava estar metido num cenário bastante convincente. É o que chamei numa apresentação acadêmica (o livro foi escrito em um mestrado em Escrita Criativa na PUC-RS) de dupla verossimilhança: como é preciso convencer o leitor não só da minha mentira, mas das mentiras que criei para Edmundo tentar convencer os outros, achava que o livro tinha que soar, em tese, próximo ao real. Ficção sobre alguém tentando fazer ficções tem que ser bem convincente. Sei lá, coisas minhas.
Só sei que fui ao Fórum Central de Porto Alegre armado de câmera, caderno e caneta. E chegando lá, o óbvio: precisava passar por revista, detector de metais e o caramba para acessar a sessão. O segundo óbvio veio em seguida: “Não pode entrar com câmera”; “Não? Mas é pra uso particular, eu não vou...”; “Uso particular? Por que o senhor veio aqui, é advogado, estudante de direito?”. Pensei um pouco no que dizer e achei melhor não mentir no tribunal: “É que sou escritor e...”; “Escritor? Escritor de quê, o que o senhor escreve?”; “Pois é, livros, ficção, histórias”; “E por que precisa gravar?”. Nem tinha entrado e já vivia um interrogatório. Tentei explicar: o personagem enfrentaria um tribunal, eu queria observar, quem sabe gravar só o áudio e... “Só um pouquinho, senta ali”, me disse o sujeito que cuidava da porta. Acomodei-me num banco junto à parede, e o camarada avisou que ia verificar a situação. Fiquei vendo um pouco dos bastidores, lembro de um policial dizendo para um oficial de justiça, cheio de um humor mais suspeito que muito réu, “Deixei dois guri-bom aí, cuida deles”, e estava nessas observações quando vi uma funcionária indagando o cara que havia me atendido sobre o que diachos eu queria. Ele me olhou de canto de olho, como se fosse Edmundo, meu personagem que detesta literatura contemporânea, e explicou: “Ele diz que é escritor”. Porém, em seguida alguém veio, cochichou com ele, que, com um gesto, chamou aquele que diz que é escritor: “O juiz quer saber que história é essa, pode entrar”. Não, não era o enredo do meu livro, era só o meu enredo que o juiz queria conhecer.
Enquanto advogado e promotora se aprumavam, família do réu chegava, um ou outro estudante de direito escolhia onde sentar, pude fazer como num filme americano de tribunal, daqueles que eu imitava mal: tive autorização para me aproximar do juiz. Atravessei o espaço onde testemunhas são ouvidas e, depois de um bom-dia simpático do meritíssimo, escutei: “Me disseram que tu é escritor e quer gravar o julgamento, é isso?”. Tentei explicar sobre jargão, lugares comuns a registrar, ritmos, ele foi fazendo que sim com a cabeça, foi fazendo que sim, até que fez que não: “É, entendo, mas não pode gravar. Mas, olha, guri, te senta aí, assiste tudo, anota, e depois te consigo a transcrição da sessão. Ajuda?”. Opa, fiquei faceiro. Meses antes, minhas leituras de cabeceira eram os processos. Registros impressos de julgamentos que amigos haviam me conseguido, e eu já tinha na cabeça a ideia de emular a forma gráfica de inquéritos. Essa oferta do juiz, bom, eu sairia com um inesperado souvenir.
Depois de almoçar no tribunal, de passar o dia inteiro naquele prédio, desenhando o mapa do júri, anotando as coisas mais aleatórias, observando semelhanças que teses jurídicas têm com a construção de um romance, o jogo de versões, ao fim do julgamento (réu condenado por homicídio, mas a defesa conseguiu um atenuante), o juiz me chamou de novo. Afinal, ali não era lugar de mentiras, cumpriria a promessa e me deu sua cópia dos registros, mas me fez dois alertas: 1) Não me vai usar o nome, nem nenhuma fala daqui, né, guri? 2) Quando o livro sair, quero um exemplar.
Fico pensando como seria o encontro do Edmundo com esse juiz que acredita em escritores. E parece gostar de literatura.
O livro que me levou ao tribunal
- Detalhes
- Categoria: Bastidores
- Escrito por Reginaldo Pujol Filho