TSEliot dez.18 KarinaFreitas

 

Abaixo, o texto completo do tradutor Caetano Galindo sobre os bastidores da tradução de Poemas, de T. S. Eliot, recém-lançada no mercado pela Companhia das Letras. No impresso, o texto foi reduzido por questões de espaço. 

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Lembro detalhadamente o dia em que saí da universidade carregando um volume com a poesia reunida de T. S. Eliot. Devia ser 1994, 1995. E tinha decidido que era hora de ver o que tinha a dizer aquele poeta tão conhecido.

Lembro de passar pelos primeiros poemas sem entender muita coisa. Lembro de ter gostado da recorrência da persona(gem) Sweeney. E lembro com grande nitidez do momento em que topei com os versos de abertura de Ash Wednesday.

Because I do not hope to turn again
Because I do not hope
Because I do not hope to turn

Li, reli: sorri. O ritmo, o pentâmetro jâmbico perfeito (o “decassílabo” inglês) que depois se desfaz, a repetição, o uso algo estranho daquele verbo “to turn”. Tudo me seduziu inapelavelmente. Encantatoriamente. Mal sabia que aquele poema seria ainda mais complexo que os outros. Mas isso pouco importava naquele primeiro momento. O poeta me conquistou pela sonoridade. E no trecho final do poema, como se não bastasse, os versos reaparecem, agora transformados…!

Tende a sempre ser assim comigo. Poesia. Tende a se basear nesses momentos em que a junção de umas poucas palavras de repente se reveste de uma perfeição que parece vir de outro mundo, de repente emite luz, vibra quietinha e aquece. Me aquece. Tendo a funcionar “de ouvido”, e Eliot me pegou primeiro por aí.

*

Lembro claramente o dia em que chegou um email da Companhia das Letras perguntando se eu aceitava produzir uma nova seleção de Eliot. Foi em abril de 2017.

Lisonja, felicidade, impolgação. Responsabilidade. E medo.

Teria o delicioso (se você é desse tipo…) privilégio de lidar com aquelas sonoridades, de tentar produzir uma resposta brasileira àqueles tantos versos que me ninavam desde meus vinte e poucos anos. Ao mesmo tempo… teria a assombrosa responsabilidade (e eu sou desse tipo…) de lidar com aquelas sonoridades, de tentar produzir uma resposta àqueles versos.

Eliot só vai entrar em domínio público em 2036, e sua editora cuida de seus poemas como se fossem... bem: como se fossem uma das obras mais importantes da poesia do século XX. Logo, havia não poucas chances de eu estar sendo convidado a produzir algo que teriaa chance de ser lido por décadas. Por gerações. Algo que durante muitos anos representaria a imagem que vários leitores poderiam fazer daquela poesia, daquele poeta.

A tradução de Ivan Junqueira, afinal, teve um impacto gigante desde sua publicação. Mais ainda, durante os longos meses de negociação com a Companhia e com a Faber & Faber, decidimos incluir no volume O livro dos gatos sensatos do velho Gambá, outra obra quase mítica, que teve também uma tradução importante (de Ivo Barroso) no Brasil.

Era uma oportunidade rara. Mas era embate de gente grande.

*

E lembro assombradamente do dia em que sentei aqui na sala de casa com o grande Paulo Henriques Britto, vários livros, cadernos e canetas, e fui mostrar a ele em que estado estavam os meus primeiros esboços. Pedir palpites. Pedir a bênção.

Foi só depois que o Paulo voltou pro Rio que eu comecei a me sentir capacitado a ir em frente. Mas já estávamos em novembro de 2017.

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Porque foi a primeira vez, em toda a minha atividade de tradutor, que eu tive um bloqueio.

Meses e meses sem andar. Sem produzir grandes volumes de texto. É claro que a tradução de poesia demanda um ritmo todo seu. Mas neste caso a coisa extrapolou o típico, o soído e costumeiro. Eu estava, de fato, tremendo diante da tarefa.

Foi basicamente no primeiro semestre de 2018, no entanto, que o trabalho fluiu. Foram longas sessões de tradução, a que se seguiu um longuíssimo processo, já no segundo semestre, de releituras, revisões, negociações de alterações pontuais. Foram meses de imersão absoluta naqueles versos, naquelas ideias. Meses durante os quais eu finalmente me convenci de que conseguiria produzir “uma” versão defensável da poesia de Eliot. Meses durante os quais aprendi com os seus mecanismos de concatenação de forma e sentido, e desenvolvi algumas ferramentas com que responder a eles.

Do jogo entre tradição, oralidade, forma fixa e liberdade de seus primeiros poemas até a (aparente) dissolução da forma em argumentação filosófica em certos momentos dos Quartetos. Da densidade absurda da poesia dos anos 1930 até a leveza triunfante e musical dos Gatos. Eliot dominou a forma poética como poucos. Seu ouvido era infalível, seu sentido rítmico era fascinante. E a isso tudo ele aliou uma intensidade filosófica e uma riqueza estilística que…

Por vezes até o Nobel acerta a mão.

*

Lembro perfeitamente o dia em que fechei os últimos detalhes da revisão da revisão da revisão da revisão da tradução de Eliot, depois de longas séries de emails e telefonemas com a Alice Sant’Anna, a editora, o Guilherme Gontijo e a Heloísa Jahn, que prepararam o texto, a Lucila Lombardi, que coordenou a revisão… Foi na verdade há pouco mais de uma semana, isso.
Foi rápido, até. Mas, para mim, como leitor e como tradutor, foi uma vida longa ao lado de Eliot. Me vi forçado a crescer velozmente. Me vi forçado a ver quando, e quanto, ainda sou pequeno. Aprendi com Prufrock. Aprendi com o Gato Bento.

Me forcei a escolher entre as 143,7 alternativas com que me debati (e com que me bati com o Guilherme, na releitura) e a ficar com

Porque eu já não espero tornar mais
Porque eu já não espero
Porque eu já não espero tornar

E me forcei a aceitar que não vou achar definitivo o que fiz. Mais intensamente do que nos casos dos livros de prosa. Me acostumei com a ideia de que eu apenas tentei o que pude.
(Mas algo convicto, cá entre nós.)

*

E ainda penso esperançosamente no dia em que uma leitorinha, que pode estar agora dentro da barriga da mãe, venha a catar esse livro bonito (ficou bonito…) num sebo e talvez a criar, por ele, uma relação com uma obra que pode, sim, mudar sua vida inteira.

É uma responsabilidade que dá lá seu medo. Ainda hoje.

Mas é um privilégio.

Pelo qual agradeço a todo mundo que se envolveu nesse longo (breve?) projeto Eliot. Agradeço a ele, Thomas. E agradeço a essa nossa leitora por vir.

Tomara que goste.

 

>> Caetano Galindo é tradutor e professor (UFPR)