Este livro tem muitas versões. A primeira delas encontro com uma cartinha em lugar de prefácio dentro do e-mail; um e-mail deslumbrado para uma mulher cujo acento na voz talvez eu nunca veja, mas eu a ouço.
Deslumbrada demais era como pareciam minhas poemas há 10 anos, quando comecei a publicar, assim dizia certa crítica; crítica que hoje eu sei nomear bem: branca, masculina, rica, heterocisnormativa, da parte baixa do país – categorias muito mais ideológicas que físicas.
Talvez a adolescente que não fui no corpo, chamava o corpo do texto. Porém uma mulher quando escreve, ao mesmo tempo que tem no seu gesto um ato político, escreve e rasura o texto; ouve “deslumbrada demais” e rasura o texto.
Quantos desertos a atravessar até surgir um livro como um útero sangrando nas mãos?
Minhas matriochkas pareciam bem bonitas sozinhas, e soltei-as datilografadas, três versos por página branca em paisagem, como quem pede um pouco de tinta: a lésbica, a viúva, a refugiada, uma doente-terminal, uma mulher trans.
Foram minhas primeiras mulheres a ser limadas de livros. Eu podia ouvir: Longas demais, narrativas demais, não formam unidade. Ivonka é esquisita desde o nome e, além disso, é uma narrativa que não diz nada, ela não fica com o amigo? E essa Hollie? Você parece tão feminista e essa mulher sofrendo a ausência de um homem, ele foi embora ou está morto? Mas Esme sequer é mulher!
E limei também os fragmentos: recortes sem explicação, não têm por que existir, nada comunicam, coisa de mulher louca.
Quem já leu os diários de uma mulher no original? Por exemplo, de uma Alejandra Pizarnik: agonizantes as milhares de versões, sobre a letra miúda o sem-fim de rasuras e a incessante reflexão sobre o fracasso do fazer poético. É isto uma mulher que escreve. Quantos “deslumbrada demais” até chegar aos livros?
É claro que os livros que publiquei antes de sereia no copo d’água também são coisa de mulherzinha. E tem essas poemas todas muito típicas de uma mulher, desde os títulos: maravilhosas (risos). Atravessados os desertos, a paisagem é bem fresca, continuo a rasurar poemas, mas já não sou uma poeta que aceita ser chamada de menina sorrizzi. Eu sou uma poeta. Eu sei e também ouço esta voz que me diz, ela não vem de longe.
Eu estava lendo Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, um livro que me foi bem doloroso e atravessava esses desertos da alma, do corpo e da escrita e era difícil desaguar, mas me obrigava a terminar esta leitura, foi quando escrevi o poema-título sereia no copo d’água e naquele momento a escritura era algo profundamente performático, algo que eu queria fazer com o corpo e que, se não fizesse, me doía. Feita a poema pensei: tenho cá um livro, eu sempre quis escrever este livro; um livro escrito exatamente com todas as mulheres rasuradas, limadas.
“Minha fantasma” é uma experiência que comecei em quando vieres ver um banzo cor de fogo, uma mulher enclausurada que não posso tocar e que não sabe exatamente se dizer; tinha ainda alguns rascunhos sobre ela, resolvi concluir e coloquei como o segundo segmento do livro, com a ideia de que ela costuraria o todo, como uma contadora, a grande mãe que tudo sabe, te embebeda os lábios de água e mais nada.
Escavei minha pasta “poemas limados” do computador e tirei de lá todas matriochkas. Agora elas não são bonecas ou títeres, são mulheres-palavras que amam, vivem, morrem e, portanto, ressuscitam no encontro da leitura, têm vida própria, por isso iniciam o livro.
O terceiro segmento poderia se chamar “poemas tirados de notícias de jornal”. Para o poema célebre de Manuel Bandeira, encontramos duas notícias complementares que poderiam ter inspirado o poeta; já que na primeira, é apontada a morada de João Gostoso e na segunda, a fatalidade de sua morte:
1: “‘GOSTOSO’ ESTÁ NO XADREZ. João de Oliveira, vulgo ‘João Gostoso’, há muito que vive amasiado com Rosa Maria da Conceição, ambos moradores no morro da Babylonia. Hontem, por motivo de ciume, ‘Gostoso’, armado com uma pedra, fez um grande rombo na cabeça da amante. Aos gritos da aggredida acudiu a policia do 30° districto, que effectuou a prisão em flagrante de ‘Gostoso’, trancafiando-o no xadrez. Maria foi soccorrida pela Assistencia.” [nota 1]
2: “JOÃO GOSTOSO DESAPARECEU NO MAR. O carregador de feira livre conhecido pelo vulgo de ‘João Gostoso’, de cor preta, com 40 annos presumiveis, hontem, a tarde, ao banhar-se no canal da Lagôa Rodrigo de Freitas, cahiu ao mar e pereceu afogado. O corpo desapareceu, tendo vários pescadores da ‘Colonia 14’, se demorado a procura do cadaver, que até a última hora não havia apparecido. O facto foi levado ao conhecimento do commissario Carlos Machado, do 30º districto policial.” [nota 2]
Impossível pra mim não ler o poema, não ler as notícias e não pensar “quais as histórias que escolhemos contar?”; “quais poemas escolhemos escrever?”; eu escolhi escrever os “sortilégios pra matar o meu benzinho”, as minhas poemas são notícias da minha quebrada, das mulheres que não são fruto de ficção e que grito, presentes, ainda que eu faça ficção.
Na quarta parte, toda escrita enquanto pensava as mulheres deste livro, essas poemas muito íntimas que chegam a mim como chega a escritura; essa parte performática que vista de cima chamamos maternidade, chamamos aborto, chamamos menstruação; abro as pernas e tenho as filhas. E posso ser também as filhas e a parteira e o sangue, não olho só de cima: são tantas, mas tantas as camadas, como diz cá dentro essa voz com acento.
Curta e delicada, grave e rasgante. Esta voz, é também a voz de Mamie Smith e ainda das negras que cantaram antes dela. Eu ouço. Ouço Aqualtune e as mulheres escravizadas, ouço Ingaí e as indígenas assassinadas, ouço Jovita, Marielle, Cláudia e as mulheres torturadas; ouço essas mulheres cantando, quando não podiam escrever, ouço seus cantos de sereias toda vez que leio a palavra anônima.
Ouço M., m. é Maria, Maria que são todas as mulheres comuns, anônimas: a tiazinha que vende água de coco na praia ou chicletes no sinal, a lavadeira, a faxineira, a que anda apressada, a que é encoxada no metrô ou no beco, aquela que guarda tudo que escreve numa gaveta. Sou eu e é você.
Fazer um livro cujas personagens são todas mulheres não faz deste livro um livro feminino, não se pode encerrar estas poemas: faz um livro cujas camadas estão aí para ler, chegar ao prólogo que está em lugar de epílogo como um rabo de sereia que volta ao início, quebra o copo e tem um oceano inteiro pra nadar. As poemas são tuas, a voz é tua.
[nota 1]. Do jornal A Noite, 23/04/1916. Nesta e na próxima citação foi preservada a grafia original. A divisão em parágrafos foi suprimida por questões de espaço.
[nota 2]. Jornal do Brasil, 16/12/1925. O poema de Bandeira foi publicado pela primeira vez no jornal A Noite, em 31/12/1925.