Tradução ilustra WalterVasconcelos

Dionne Brand (1953) é uma renomada poeta, escritora e documentarista. Nascida em Trindade e Tobago, imigrou para o Canadá aos 17 anos, onde vive desde então. Foi a poeta laureada de Toronto, de 2009 a 2012, e, em 2017, foi nomeada na Ordem do Canadá e, atualmente, atua como professora de inglês na Universidade de Guelph. Dionne recebeu diversos prêmios por sua produção poética e ficcional. Escreve, principalmente, sobre raça, gênero, sexualidade, origens, acontecimentos atuais e passados, utilizando-se de uma linguagem própria, de modo que, a partir de suas experiências consegue encontrar pontos de
conexão com outras pessoas, como veremos a seguir com o poema e com os trechos dos ensaios coletados dos livros Nenhuma língua é neutra (poemas) e Pão tirado de pedra: lLembranças, sexo, reconhecimentos, raça, sonho, política (ensaios), que serão lançados no próximo mês pela editora Bazar do Tempo, com nossa tradução, — Jade Medeiros e Lubi Prates.

Trabalhar em contato íntimo com a obra de Dionne Brand foi uma experiência rica, desafiadora e de muito aprendizado para nós. Poder traduzi-la em conjunto, em um coletivode duas pessoas, em um pequeno quilombo, nos permitiu trocas valiosas no processo de imersão em sua escrita e, consequentemente, em nossas escolhas tradutórias. O seu estilo é carregado de oralidade, com uma linguagem ora fragmentada e pausada, ora densa e repleta de referências intelectuais e artísticas, que variam de James Baldwin a Sojourner Truth, passando por Charlie Parker e Nina Simone. Dionne, de seu lugar de mulher negra, lésbica, afro-caribenha e canadense, influenciada por aqueles que vieram antes dela, por seus contemporâneos e também por seus amores, é capaz de fazer um passeio profundo, e nos levar com ela, pela produção cultural e pelos movimentos políticos da diáspora africana, que se volta contra a colonialidade, nas Américas. O público brasileiro, latino-americano, tem mais em comum com ela do que se pode imaginar. Apesar de Nenhuma língua é neutra ter sido publicado pela primeira vez em 1990, e Pão tirado de pedra: lLembranças, sexo, reconhecimentos, raça, sonho, política em 1994, seus textos seguem com muita relevância no cenário atual, e acreditamos que têm a capacidade de oxigenar o debate sobre raça, sexo, gênero e política no Brasil de 2023 e nos anos que virão.

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Canção de blues para Mammy Prater

Ao fitar ‘a fotografia de Mammy Prater, ex-escravizada,
fotografada aos 115 anos de idade’

ela esperou que o século virasse
esperou até que tivesse cento e quinze
anos para ser fotografada
para ter sua fotografia e pôr seus olhos nela
esperou até que a técnica da fotografia estivesse
adequadamente desenvolvida
para ter certeza de que a imagem ficaria nítida
ter certeza de que nenhum daguerreótipo rudimentar perderia
sua imagem
perderia suas linhas e acima de tudo seus olhos
e suas mãos
ela tinha a paciência de cento e quinze anos
sabia que se tivesse a paciência
para não matar um homem branco,
eu veria essa fotografia
ela esperou o tempo que foi necessário
para ter sua fotografia e pôr seus olhos nela

nos cento e quinze anos que ela teve que
esperar por essa fotografia, aperfeiçoou sua pose
a esculpiu sobre um ombro de dor,
algo como desespero, que nunca nomeou

pois não teria resistido
nas lavouras, aquelas que lavrou
nos dias em que foi mula, marcaram
seu caminhar a ferro quente
por querer e sem querer
ela esperou, nem sempre em silêncio, nem sempre paciente,
por seu retrato
na hora que ela sentou com seu vestido preto, colarinho e
lenço brancos, os pés tinham virado mármore,
o coração lustrado de vermelho,
e os olhos.

ela esperou cento e quinze anos
até que a ciência da fotografia avançasse do estanho
e da talbotipia até uma superfície sensível o suficiente
para conter seus olhos
tomou cuidado de não perder os sinais
para escrever naqueles olhos o que os dedos não poderiam roteirizar
um pacto de sangue por um século, uma década e mais
sabia então que seria eu a encontrar
sua vontade, seu relato meticuloso, seus olhos
os dias esperando por essa fotografia
foi o que a manteve sã
ela planejou tudo, o dia,
a luz,
o fotógrafo supérfluo
seus seios,
suas mãos
esse momento meu
virando as folhas de um livro,
observando seus olhos.

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Trecho de “É só a chuva, Bacolet”

Então, eu fui chamada para algo grandioso. A tartaruga-de-couro apareceu assim na praia naquela noite. Todo mês de maio, elas apareciam na praia das tartarugas para pôr centenas de ovos. Eu tinha me esquecido disso. E quando os ovos eclodem, depois de seis semanas, tartarugas diminutas saem correndo para o mar sob as investidas predatórias de pelicanos e fragatas. O hotel, sua luz e clientes invadem a praia, mas essa parte do mar está inscrita em todas as gerações de tartarugas-de-couro, então elas vêm mesmo que corretores imobiliários e de investimento abocanhem a areia e a água. Uma veio fazendo círculos e
cavando a areia com suas nadadeiras traseiras e então ela se foi sem pôr os ovos. A areia ali estava muito quente, disse Vi. Então, ela voltou para o mar para esperar por outro momento. Mais tarde, pela praia, veio outra. Quando meus olhos se acostumaram à escuridão, eu a vi. Ela era antiga, a cabeça maior do que a de um ser humano, mas, por alguma razão, parecia humana, e os olhos cheios de lágrimas prateadas, a pele, preta com pontinhos brancos, enrugada. Ela cavou um ninho na areia atrás de si, medindo, medindo com o comprimento da nadadeira. Então, eu ouvi o seu suspiro, o som de uma velha mulher trabalhando no campo, um som mais humano do que humano e antigo, de muita vida ou muitos problemas e de necessidade de muito descanso. Eu gostaria de ser velha assim, tão velha a ponto de chorar prata, de suspirar humano. Mas devo dizer aqui realmente como me senti, como se ela fosse mais do que eu ou mais do que humana, mais elevada na escada evolutiva, além de qualquer suposição ou cálculo, nada que pudéssemos experimentar, maior do que nós, não porque o
tínhamos dito, mas porque ela era. Eu assisti a ela por mais de uma hora, cavar e medir, cavar e medir e então pôr os ovos. Me aproximei para vê-los e me lembrei de ter comido um ovo quando criança em outra praia. ‘Já vi isso antes’, contei à Vi. ‘Quando eu era pequena’, comendo algo que a tartaruga-de-couro tinha levado cinquenta ou às vezes setenta anos para produzir, delicado e macio após mais da metade de um século. Lembrei-me das luzes das tochas rompendo a sombra ao longo daquela outra praia e de meu avô cavando a areia atrás dos ovos dessa espécie agora em risco de extinção. Pelo tamanho, ela tinha setenta anos, tão grande quanto a minha envergadura e tão alta quanto eu deitada, e quando ela tinha terminado e suspirado de novo, cobriu o buraco na areia e começou a girar, a camuflar o lugar onde tinha posto os ovos, fazendo com que outros lugares parecessem o mesmo, até eu não poder dizer onde ela os tinha posto. Uma tartaruga-de-couro chora em uma noite dessa, suas lágrimas são prateadas, e, quando ela termina de girar, de fazer tudo o que pode, avança
laboriosamente para o mar. Ela parecia cansada. Rodou em direção à praia, esperou por uma onda e então mergulhou, se banhou, esplêndida, viajou mar adentro.

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Trecho de “Brownman, Tiger… . . .”


Então, eles não ficam em casa chorando com os filmes de Martin Luther King ou Malcolm X nem ficam imobilizados pela perda, eles são mais inquietos. A tristeza não os paralisa. Não são imigrantes, por isso não são gratos pela existência marginal que suportam. Eles nasceram aqui, ou não se lembram de nenhum outro lugar; vêm a conhecer as mães aos três, quatro, dez anos. Ensinaram meninos italianos e meninas portuguesas a falar patoá e a dançar de Bogle a
Shaba. Mudaram o sotaque nos ônibus que vão para Eglinton, Trethewey e Jamestown. Falam um idioma na sala de aula e outro em casa; acham suas mães trouxas por irem brigar em hospitais e asilos. Veem nisso e nas promessas de fazê-lo uma fraqueza. Foram espancados, desencorajados e afastados das salas de aula nessa cidade. É impossível saber o que eles realmente pensam mas não dizem, exceto nas festas em porões apertados ou em salões de baile, com detectores de metal, que eles frequentam de qualquer jeito, com ou sem grana –— moças e rapazes. Não estão na rua como a minha geração, anterior à deles,
esteve; a visão deles é introspectiva e nutre a ira. Estão nervosos e infelizes e não leram Fanon ou Walter Rodney para saber das causas e soluções. Na verdade, quando eles chegaram, Fanon já tinha morrido, Rodney já tinha sido assassinado, seus pais e muitos negros que lutaram pela libertação na América
estavam com medo, com medo de não se safarem e com medo de seus filhos não se safarem, assustados com toda a matança –— Malcolm X, Martin Luther King, George Jackson, Jonathan Jackson –— e com as prisões –— as prisões em massa apenas por se sentarem, protestaraem ou estarem no lugar errado com a cor errada, as outras prisões apenas por falarem, apenas se levantaram, Angela Davis. Assustados simplesmente por serem negros.

Quando eles chegaram, o que restava eram as ruínas comercialmente alteradas da revolução negra dos anos 1960, e quem ficou em casa tinha dois empregos e estava só tentando sobreviver. Agora, eles ouviam os ecos sem sentido, como mantras, de Malcolm, “por todos os meios necessários”, e eram guiados por gravadoras na unção de seus novos líderes revolucionários: gangsta rappers…... bem. Agora, a revolta entrou em ação, derretendo e corroendo qualquer vitória, por menor que fosse. Agora, os revisionistas entraram em ação, o grande maquinário legitimador da democracia liberal tratou de se inserir, como sempre, a favor da igualdade racial, vendendo-a na cultura popular, fazendo filmes — Mississipi em chamas, com o FBI liderando o Movimento, e vários outros clones cinematográficos, o idílio racista Conduzindo Miss Daisy, só para colocar as coisas de volta onde estavam, Faça a coisa certa, de Spike Lee, só para dizer que a ação em massa foi uma reação exagerada, tola e responsável pela tragédia.

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Trecho de “Nada do Egito”
“Quando saí da casa da escravidão, deixei tudo para trás. Eu não ia guardar nada do Egito em mim, e então pedi ao Senhor que me desse um novo nome. O Senhor me deu Sojourner, porque eu deveria percorrer a terra de alto a baixo, mostrando ao povo os seus pecados e sendo um sinal para eles. Depois, pedi ao senhor outro nome, porque todo mundo tem dois nomes; e o senhor me deu Truth, porque eu deveria declarar a verdade às pessoas.” ¹ Como ela deve ter se sentido, o rosto tão límpido quanto aquela resposta, sem nada em seu passado que pudesse fazê-la querer se virar e olhar, como, sem sentimento de
maldade ou de pesar, ela caminhou em direção a si mesma.

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Jade Medeiros é poeta, tradutora, revisora de textos e coordenadora editorial da editora
Claraboia. Bacharel em História da Arte pela UERJ e especialista em Tradução de Inglês pela
Estácio de Sá.

Lubi Prates é poeta, tradutora, editora e curadora de Literatura. É doutora em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP).

 

¹ Sojourner Truth, citação em Daughters of Africa, editado por Margaret Busby, Pantheon Books, New York,
1992, p. 141.