A primeira vez que vi Lêdo Ivo foi por volta de 1976, na Livraria São José, no centro do Rio, pouco depois que cheguei à cidade. Eu examinava as estantes da livraria, fascinado com o belo acervo, embora não dispusesse de dinheiro para adquirir tudo o que me interessava.
Na quina de um dos balcões notei um homem pequeno, que falava com intimidade com os vendedores, e que, de vez em quando, dava uma gargalhada, mexendo nos livros, conferindo as lombadas e fazendo algum comentário, ao mesmo tempo em que conversava com um senhor de bigodinho.
Fiquei por ali, atento, e acabei descobrindo que um era o poeta e romancista alagoano Lêdo Ivo, e o outro Carlos Ribeiro, o dono da livraria que também editou muitos livros importantes.
Na época eu trabalhava no com Aurélio Buarque de Holanda, o dicionarista, e dias depois, mexendo nas estantes dele, encontrei um volume de pequeno formato contendo os poemas de Um brasileiro em Paris e o Rei da Europa, publicado em 1955 pela Editora Orfeu, que trazia uma foto de Lêdo Ivo na capa. Então li o livro, e pouco depois, fiquei sabendo que não só era grande amigo do Dr. Aurélio, também alagoano, mas que este tinha por ele grande admiração intelectual. A partir de então, vez por outra, eu via o Lêdo em lançamentos, mas não houve oportunidade de maior aproximação. Isso só veio a acontecer mais tarde, nas conferências proferidas às quintas-feiras, no Salão Nobre da ABL, onde ele costumava aparecer, e para onde foi eleito depois de algumas tentativas.
Na época alguns acadêmicos diziam que ele era talentosíssimo, mas que sua irreverência assustava alguns imortais. Ou seja, o viam como anti-acadêmico.
Quando, finalmente, surgiu a oportunidade de sua eleição correu a notícia de que o presidente Austrégesilo de Athayde, que o apoiava, o aconselhou a ir para o seu sítio em Teresópolis e não falar com ninguém, especialmente acadêmicos, até a eleição. “Mas faço o que, então?”, perguntou o candidato. E Austrégesilo, que temia que algum comentário jocoso de Lêdo pusesse sua eleição em perigo, foi categórico: “Não faça nada! Só fique no sítio, calado, até a eleição”. Lêdo seguiu o conselho do presidente da ABL e acabou eleito em 13 de novembro de 1986 na sucessão do escritor Orígenes Lessa. A partir daí se transformou num dos mais ativos acadêmicos da Casa de Machado de Assis até sua morte em 2012, aos 88 anos.
No começo dos anos 80, depois de um encontro casual na residência de José Guilherme Merquior, então embaixador no México, país onde tinha boa relação com alguns grandes escritores locais, entre eles Octavio Paz, passamos a nos telefonar, e estreitamos a amizade, e acabei me tornando também o seu editor.
Lêdo era um homem de coragem. Dizia, brincando, ser descendente dos índios que devoraram o bispo Sardinha na costa de Alagoas. Escrevia com facilidade. O jornalista Murilo Mello Filho, que foi seu companheiro na redação da Manchete, me disse que Lêdo foi o mais rápido redator que ele conheceu. Ele era disciplinado. Quando combinamos a reedição de seu belo romance Ninho de cobras eu sugeri que escrevesse um posfácio refletindo sobre a história e a estrutura do romance. Dois dias depois Lêdo voltou com um excelente texto.
A cultura literária de Lêdo era abrangente e sólida, especialmente no tocante à literatura francesa e portuguesa. Conhecia bem a obra de Vieira e do padre Bernardes.
Tendo sido amigo do crítico Eduardo Portella, acabaram se desentendendo. Deixaram de se cumprimentar. Sentavam-se em lugares distantes tanto no chá quanto na sala de sessão da Academia Brasileira de Letras. Mas o clima esquentou foi na festa de aniversário do poeta Ivan Junqueira, em novembro de 2004, no seu apartamento no Leme (ele era, então, o presidente em exercício da ABL). Eu estava lá e vi quando, de costas um para um outro, cada um no seu grupo, acabaram se encostando. Quando se virou e viu Lêdo o baiano Eduardo Portella o empurrou, batendo com as duas mãos na altura do peito de Lêdo, que quase perdeu o equilíbrio, mas logo se recompôs e defendeu-se jogando o vinho que enchia um pouco mais da metade do copo que tinha na mão esquerda direto no rosto de Portella. A turma do deixa disso entrou em campo com rapidez e afastou os dois. Levaram Portella para um sofá, molhado, e trouxeram uma toalha para que se enxugasse, e Lêdo foi levado para o interior do apartamento pela mulher do anfitrião, a jornalista Cecília Costa. Pouco depois, um tanto nervoso, se despediu e desceu em busca de um táxi. No dia seguinte telefonou para alguns dos presentes e avisou que se quisessem presenciar uma sessão animada fossem à ABL na quinta-feira seguinte. Não fui, mas soube depois que Lêdo pediu a palavra e leu um texto contundente sobre o que tinha acontecido. Era sabido que Portela pintava os cabelos, então Lêdo não perdoou. Valendo-se de uma expressão que localizou num dos volumes da Nova Floresta do padre português Manuel Bernardes, caracterizou aquele que o agredida como “um tintureiro de si mesmo”. Apesar de estar na sala, Portella ouviu tudo calado.
Lêdo ia com frequência à minha editora, na rua Visconde de Inhaúma, no centro do Rio, conversar e discutir questões relativas aos livros que eu vinha publicando dele. Conversava animadamente com os funcionários, entrava no estoque para examinar as novidades, sempre dando a impressão de estar atento a tudo.
Quando a D. Lêda, a companheira da vida inteira se foi, os amigos ficaram preocupados com a sua reação à perda. Ele se isolou por umas semanas, mas não parou de trabalhar. Quando voltou, foi a me visitar na editora, usando tênis, e parecendo bem disposto, contou que estava terminando de rever um poema longo, um “Réquiem”, em homenagem a D. Lêda. Pouco depois o livro foi publicado com reprodução de pinturas do artista plástico Gonçalo Ivo, o filho cuja carreira tanto orgulho lhe dava.
A última vez em que estivemos juntos foi num jantar oferecido por sua grande amiga, a escritora Edla Van Steen, em Copacabana. Lêdo parecia alegre, com a sua verve e rapidez de raciocínio na melhor forma. Tomou vinho, comeu com gosto, contou histórias, e depois saímos juntos e caminhamos até à rua Nossa Senhora de Copacabana, para pegarmos um táxi. Ele parecia um pouco sonado, talvez devido ao cansaço e aos valores do vinho. Levei-o até a porta do seu prédio, na rua Fernando Ferrari, em Botafogo. Na despedida desejei-lhe boa viagem, ele agradeceu dizendo que na volta iria me visitar para contar “os babados” da viagem. Ele gostava dessa expressão. Muitas vezes se aproximava de mim num lançamento e dizia: “Quais são os babados de hoje?”, ou seja, “quais as novidades do dia”. Nunca imaginei que estivéssemos nos despedindo para sempre. Pouco depois veio a notícia triste: Lêdo se fora em Sevilha, cidade que conhecia bem, pois lá viveu o seu grande amigo e confidente João Cabral de Melo Neto.
Lêdo foi um homem de letras no melhor sentido dessa expressão. Viveu a vida literária do seu tempo intendente, e deixou em Confissões de um poeta algumas páginas admiráveis sobre situações que presenciou e escritores com quem conviveu.
Sua partida deixou um grande vazio na poesia, na ensaística, no romance, e no jornalismo literário do país. A alegria de viver e conviver, a dedicação ao ofício de escritor, a permanente inquietação intelectual, o humor e a irreverência, e a característica gargalhada de Lêdo Ivo fazem falta àqueles que foram seus amigos e com ele conviveram. No seu centenário de nascimento, frente à impossibilidade de sua presença, a melhor homenagem a Lêdo Ivo será a leitura de alguns de seus grandes poemas e páginas de prosa.