Muito antes de ler A arte da narrativa bíblica, de Robert Alter, eu já me encantava com os conteúdos artísticos e narrativos da Bíblia hebraica, sem deixar-me doutrinar por valores teológicos, morais e dogmáticos. Seduzia-me no livro a ficção, a dramaturgia, os enredos, a predominância da prosa e dos diálogos, a imaginação dos autores.
Nas casas sertanejas, era comum se encontrar A História Sagrada com os relatos mais populares do Antigo Testamento e trechos dos evangelhos. O nome História Sagrada camuflava a censura que a Igreja Católica sempre fez à Bíblia, mesmo em conventos, mosteiros e seminários, sobretudo depois da reforma protestante e da inquisição, tolerando apenas que se lesse o Novo Testamento.
Cordelistas do Nordeste transformavam em versos as narrativas mais conhecidas, cheias de drama, suspense e heroísmo. Nas feiras, atraíam os curiosos lendo os folhetos A casta Suzana, José do Egito, Sansão e Dalila, Davi e Golias, Daniel na cova dos leões, Judite e Holofernes, A história de Rute e passagens dos evangelhos adaptadas ao nosso cenário deserto.
A tradição oral transpôs para o mundo sertanejo, imaginado semelhante ao mundo hebreu, histórias da tradição universal e da Bíblia. Segundo os poetas e o povo, depois que ressuscitou, Cristo viveu 40 dias vagando pelo sertão, na companhia de Pedro, sem se darem a conhecer e metidos em aventuras que às vezes lembram as de Dom Quixote e Sancho Pança. Numa delas, um casal rico nega abrigo aos viajantes e um casal pobre os acolhe e alimenta. Os velhinhos recebem como prêmio a graça da saúde, da fortuna e o reino dos céus depois de morrerem. Existe uma história na Índia, em que o Senhor Yama, deus da justiça e da morte, perambula por vilas onde as pessoas passam fome num ano de seca. A versão semelhante e com o mesmo desfecho popularizou-se nas terras sertanejas, trocaram Yama por Jesus e acrescentaram humor e jocosidade.
O povo iletrado reimagina os evangelhos e as histórias do antigo testamento, os poetas populares as reescrevem. Prosadores eruditos, que leram a Bíblia como um livro de boas narrativas, terminaram influenciados pelos valores dessa escrita, para onde convergiram mitos e lendas de egípcios, cananeus, mesopotâmios e do oriente próximo. Destacam-se nela a interação de fragmentos poéticos, tradição folclórica, notações de arquivo, estilo elaborado, argumento político, cultural e religioso.
Cordelistas e violeiros, ao seu modo, criaram uma vulgata da História Sagrada, popularizando-a, apropriando-se e incorporando lendas e acontecimentos nordestinos aos originais, num processo semelhante ao dos autores bíblicos. Há um exemplo de apropriação no livro II Samuel, 1, 26, quando Davi chora a morte de Jônatas, filho do rei Saul: A angústia me oprime / por ti, ó meu irmão, Jônatas! / Tu eras toda minha delícia; / teu amor era para mim mais precioso / que o amor das mulheres. Os mesmos versos aparecem na Epopeia de Gilgamesh, poema mesopotâmico do século XIII A.C., no lamento de Gilgamesh pela morte do seu amado Enkidu.
Mas tudo isso aconteceu num tempo que ficou longe, quando o catolicismo exercia poder sobre as populações nordestinas. A leitura da Bíblia ou História Sagrada já não é feita como uma sucessão de narrativas, escritas em períodos diversos da história por muitos autores e, aleatoriamente, organizadas em um único volume. Hoje, as religiões evangélicas, pentecostais e neopentecostais leem a Bíblia como se ela tivesse sido ditada pelo dogmático e radical deus Iahweh da Guerra, que, raivoso, não permite a recriação artística de um único versículo.