Ó mar salgado!

Acostumado à cena literária cearense, às leituras de Eça de Queiroz e às declamações de Guerra Junqueiro – ainda sei decorado o poema “A lágrima”, de tanto recitá-lo nas festas do colégio –, quando cheguei ao Recife, fui tomado pela poesia de Fernando Pessoa. Antes, os poemas dramatizados em shows e discos de Maria Bethânia não me aliciavam para a legião de leitores e admiradores.

Em 1970, ano seguinte à minha chegada ao Recife, passei a dividir quarto na Casa do Estudante Universitário com o poeta Ângelo Monteiro, que carregava livros de Pessoa como os evangélicos carregam a Bíblia. Teve início a minha doutrinação nos heterônimos Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Pessoa era uma febre, até na faculdade de medicina, onde eu estudava. Nesse tempo, a formação do médico incluía as humanidades e havia entre os estudantes leitores de poesia, literatura e filosofia, coisa inimaginável nos tempos atuais, em que a técnica, do grego technikós, que quer dizer relativo à arte, passou a significar apenas o domínio de um instrumental científico, muitas vezes mecânico. Meus colegas desejavam ser válidos, lúcidos e inseridos no contexto, o que incluía ler Pessoa.

Na cena do Recife, entre os membros do movimento armorial a preferência era pelo poeta e dramaturgo Federico García Lorca, assassinado na guerra civil espanhola um ano depois da morte do poeta português. Os signos do andaluz se assemelhavam à estética armorial, o que não acontecia com a metafísica pessoana, mais interiorizada. Ariano Suassuna e alguns membros do movimento criado por ele preferiam o livro Mensagem, assinado pelo Fernando Pessoa sem heterônimo, pequeno épico escrito em homenagem a Portugal. Temas como as profecias do Bandarra, o Quinto Império, Dom Sebastião e o sebastianismo, contidos no livro, faziam parte do imaginário armorial, sendo fácil identificá-los no O Romance d’A Pedra do Reino, escrito por Ariano Suassuna.

Fernando Pessoa demorou a tornar-se conhecido no Brasil, Cecília Meireles foi uma das responsáveis em trazê-lo para nós. A poesia e a literatura, como todas as manifestações da arte, conhecem ondas de exaltação e consumo. Na década de 1970, num tempo em que ainda se lia, a literatura latino-americana conheceu seu esplendor. Era quase obrigatório exibir debaixo do braço um livro de García Márquez, Júlio Cortázar, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Juan Rulfo, Ernesto Sabato e outros, muitos outros. Esses autores e muitos outros passaram as ocupar a fila de trás nas estantes. Borges permanece lido com fidelidade pelos que leem mais do que as mensagens de WhatsApp.

A literatura de Portugal sempre fez sucesso no Brasil, tivemos clubes de leitores de Eça. O romancista José Saramago renovou esse interesse, provocando uma onda de lusofonia, moda e consumo de vários novos escritores portugueses, que publicam com êxito na ex-colônia, ganham prêmios e circulam pelo território brasileiro, atraindo multidões aos seus eventos.

Em meio à explosão lusófona, que dá os primeiros sinais de natural esmaecimento, surge uma onda gigantesca, que, segundo Marilena Chauí, fragmenta e ameaça a esquerda brasileira: o identitarismo. Seu crescimento natural e justo põe contra a parede os valores que nos acostumamos a considerar canônicos, alterando os pesos da nossa balança e a medida do que considerávamos de boa qualidade. Os novos critérios são os de que vale mais fazer justiça e pagar uma dívida pelo nosso passado.

Bethânia já não declama Pessoa nos shows, mas o poeta navega entre os seus leitores fiéis, antigos e novos. Navegar é preciso, viver não é preciso.